Moçambique: o ressurgimento político da Renamo, e depois?
Para muitos observadores da vida política moçambicana, os resultados das eleições de Outubro de 2014 foram uma surpresa, enquanto na verdade, poucas coisas mudaram em comparação com as votações anteriores. A Frelimo, mesmo com um resultado abaixo daquele que teve em 2009, chegou em primeiro lugar (com maioria absoluta, segundo os resultados oficiais), a Renamo manteve-se como a primeira força de oposição, e o MDM recentemente criado ficou em terceiro lugar, bem longe atrás dos dois principais partidos. Por lembrança: Eleições de Outubro em Moçambique: quando a democracia sai a perder
No entanto, a situação pré-eleitoral não permitia prever esse resultado. Afonso Dhlakama surpreendeu com uma campanha dinâmica e populista, como também com um resultado final (36,61% dos votos) bem acima daquele de 2009. Após o declínio eleitoral dos anos 2000 e o boicote das autárquicas de 2013, essa ressurreição da Renamo dá a ilusão duma « vitória na derrota ». Mas será que essa boa jogada do Dhlakama serva a democracia moçambicana? A questão é agora a continuação a dar a esse ressurgimento político da Renamo.
Acostumada a perder as eleições (ou a ver roubado a vitória, depende do ponto de visto), a Renamo abordava muito mal o ano 2014. Depois duma votação contestável em 1999 (naquele ano, Joaquim Chissano ganhou com apenas 52,29% dos votos contra 47,71% para Dhlakama), o líder da Renamo levou duas bafadas eleitorais em 2004 e 2009, caindo respectivamente a 31,74% e a 16,41% dos votos. Enquanto isso, a força militar renamista continuou excluída, ao contrário do que tinha previsto o acordo de paz de 1992, dum qualquer processo de integração no exército nacional moçambicano.
É provavelmente em reação a esse declínio eleitoral, e porque ele entendeu que nunca ganharia as eleições, que, em 2012, Afonso Dhlakama ordenou aos seus homens de voltar a pegar as armas, a partir do Parque nacional de Gorongosa (província de Sofala), onde fica a sua sede histórica. Foi na verdade uma estratégia difícil para o líder da Renamo, pois o movimento não tem em 2012 as mesmas capacidades como em 1992. Perdeu seus apoios estrangeiros, falta-lhe dinheiro e armas, e, segundo o governo, conta com apenas 300 homens – a direção da Renamo recusa-se a divulgar um número oficial.
A ação da Renamo resultou portanto em ataques dispersas, apenas para atirar em chapas, em machibumbos e em militares moçambicanos. Acabou também perturbando a circulação na estrada principal no sul da província de Sofala. O boicote das eleições municipais de 2013 isolou ainda mais a Renamo, e ofereceu uma ocasião ao MDM de tornar-se, o tempo duma eleição, o primeiro partido de oposição. Num país onde as feridas da guerra civil não estão completamente fechadas, e onde só há uma única estrada utilizada para ligar o norte e o sul do país, esses eventos afetaram a imagem da Renamo, como também a da Frelimo, acusada de « soprar nas brasas ».
Afonso Dhlakama iniciou a campanha eleitoral após a assinatura, dia 5 de Setembro de 2014, dum acordo assinado em Maputo com o presidente Guebuza, sob mediação dos embaixadores dos Estados Unidos, da Itália, do Portugal e do Zimbabue. Frelimo como Renamo tentaram apropriar-se o sucesso desse acordo, que prevê um cessar-fogo imediato, a integração das forças renamistas no exército nacional e a possibilidade para cada partido de enviar observadores nas assembleias de voto na eleição de Outubro. Afonso Dhlakama considerou que o governo tinha aceitada as suas exigências, enquanto o presidente Guebuza pretendeu ter restabelecido um clima de paz propício à organização das eleições. Embora, na verdade, o desarmamento da Renamo ainda permanece até hoje um processo paralisado.
A teatralização da sua chegada no aeroporto, no dia 4 de Setembro, como também a assinatura do cessar-fogo o dia a seguir, resultaram numa inversão da opinião pública, enquanto as sondagens previam, antes da campanha, resultados elevados para o MDM e a Frelimo, e uma Renamo muito fraca. Certamente, pode-se levantar sérias dúvidas sobre a fiabilidade das pesquisas eleitorais moçambicanos, especialmente porque são feitos somente em áreas urbanas, no entanto parece claro que a tendência entre a Renamo e MDM inverteu-se a partir do 5 de Setembro.
As multidões que reuniram-se à volta do Dhlakama durante os seus meetings de campanha, especialmente em Quelimane e Nampula, ilustram a implantação do seu partido no centro e norte do país, e a ligação especial que o candidato da Renamo conseguiu, ao longo das semanas, recriar com o seu eleitorado tradicional.
Do topo dos seus 61 anos de idade e 37 anos de liderança do partido, é um Dhlakama envelhecido que entrou na campanha, frente a um Daviz Simango com 51 anos e um Filipe Nyusi com 55 anos). O líder da Renamo tem no entanto um carisma que faz claramente falta aos dois outros candidatos. Muitos dos seus militantes estão em adoração com o seu tom messiânico, que às vezes aproxima-se mais com um sermão evangélica do que com um discurso político. Eles o veem como um grande líder e « bebem » suas palavras. Mesmo com somente 36,61% dos votos, o candidato renamisto enviou uma mensagem clara para o resto da classe política: ainda vão ter que contar com ele por alguns anos.
A Renamo: um papel contraprodutivo para a democracia moçambicana
« Ele vai ganhar no primeiro turno », afirma um ativista renamisto durante uma pequena marche do partido em Maputo, no início de Outubro. Antes de acrescentar: « Pelo menos é o nosso objetivo ». Os militantes da Renamo consideram legítima a atitude do líder da oposição desde 2012. « Se não tinha-se escondido no Gorongonsa, já estaria morte », repita várias vezes um deles numa reunião do partido na capital. Este é o eterno argumento da Renamo desde varias décadas: o movimento não cria violência, é somente vítima da opressão frelimista. Melhor: « a Renamo é o garante da democracia em Moçambique », declaram muitos Renamistos. Ou seja, as poucas conquistas democráticas realizadas em um quarto de século são o resultado da ação da Renamo – incluído a ação armada, e ai vê-se bem a dimensão perversa desse argumento, que permita esquecer todas os horrores cometidos pela Renamo durante a guerra civil.
Claro, a realidade é mais complexa. Primeiramente, porque a existência da Renamo nem impede a Frelimo de dominar todos os órgãos de decisão nacionais e locais (fora dos 4 Conselhos municipais que pertencem ao MDM...), e de controlar toda a vida administrativa e econômica do país; pior, através a sua participação nas eleições, a Renamo legitima um sistema profundamente clientelista que torna quase impossível uma alternância. Acima de tudo, as aspirações « democráticas » da Renamo estão mais parecidos com um desejo de tomar o poder, ou pelo menos de o compartilhar com a Frelimo, do que com uma vontade sincera de democratizar o país.
O processo de decisão totalmente vertical dentro da própria Renamo confirma a personalidade clientelista e autoritária do Afonso Dhlakama. As deserções sucessivas da Renamo esses últimos anos também o comprovam: a ruptura do Raul Domingos em 2004 e do Daviz Simango em 2008 são as mais famosas, mas não são as únicas. De facto, o Dhlakama impede desde 1979 a emergência de outras personalidades dentro da Renamo.
Os eventos pós-eleitorais reforçaram essa imagem: quando o partido apresentou resultados cuja origem seria uma contagem paralela da Renamo que não tem nenhuma credibilidade (dando essa formação com mais de 80% dos votos nas províncias do norte e do centro); e sobretudo quando o próprio Dhlakama, frente aos mídias, declarou após a votação recusar os resultados oficiais, mas que aceitaria um compromisso com a Frelimo para partilhar o poder... Essa pequena frase confirmou aos mais desconfiados (ou aos mais espertos?) que, por trás do cessar-fogo do 5 de Setembro, estava escondido um acordo entre a Frelimo e a Renamo para partilhar o poder.
Um acordo que legitimará as eleições e consolidará o regime frelimista?
Os atuais debates na Assembleia da República sobre a criação dum « Estatuto Especial do Segundo Candidato Mais Votado ao Cargo de Presidente da República » parecem confirmar esta teoria. A proposta de lei atualmente em discussão, que alguns deputados da Renamo queriam transformar num estatuto para o líder do segundo partido mais representado no Parlamento, prevê um orçamento anual de 71,6 milhões de meticais (1,79 milhões de euros) para a pessoa que ocupará essa função. Ela será envolvida duma forma ou duma outra no protocolo das cerimônias do Estado. O ocupante desta carga também terá um assento no Conselho de Estado, e adquira vários benefícios (passaporte diplomático para ele, seus esposa e filhos, uma residência de função, e um serviço de segurança). Por fim, a lei prevê que « o primeiro cidadão que beneficiará deste estatuto » (ou seja: Afonso Dhlakama) terá « o direito de definir [sua] remuneração e benefícios relacionados ». Deixando a ideia duma verdadeira partilha do poder, o líder da Renamo conseguiu pelo menos garantir-se uma confortável aposentadoria paga sobre o dinheiro publico, ou seja, à custa do povo moçambicano. Agora, vamos ver como os militantes da Renamo vão digerir este pacto com a Frelimo, para quem esse compromisso permite legitimar as eleições.
Pois sem dúvida, dentro da própria Renamo, as opiniões divergem sobre o que fazer agora, entre os parlamentares que querem tomar posse no conforto do Parlamento em Maputo, e os guerrilheiros renamistas que estão pronto a voltar a pegar as armas para contestar os resultados da votação do 15 de Outubro. É importante lembrar-se que o Dhlakama, sem meios suficientes para iniciar uma verdadeira luta armada, tem que lidar com essas duas tendências internas à Renamo.
Com uma postura ao mesmo tempo autoritária e carismática, Afonso Dhlakama concentra todas as atenções. Para o Frelimo, é o inimigo ideal, que nunca ganhará as eleições, mas também que impede outras personalidades de propor uma alternativa séria. Herdeiro dos crimes da guerra civil, em grande parte cometidos pelo seu partido, o líder da Renamo impede uma democratização do sistema político moçambicana, que continua num bipartidarismo apenas fragilizado pela chegada do MDM desde 2009. Aliás, o relativo bom resultado do Dhlakama nas eleições não lhe serve para nada, fora das suas reivindicações partidárias. O dia que ele já não estará presente na política, vai oferecer um novo espaço político na cena política moçambicana. Obviamente, não é para jà.