Será que as « elites africanas » ainda são... africanas? (1/2) Nação, africanidade, modernidade: quando as noções são manipuladas
Maputo, vista de Catembe, do outro lado do estuário. A paísagem da capital moçambicana é dominada por grandes torres em construção, símbolas do forte crescimento económico do país esses ultimos 15 anos.
« O MDM é o partido dos pobres, das pessoas do campo... A Frelimo cuida das pessoas mais ricas », explicava desajeitadamente, em Setembro de 2014, W., uma moça de então 25 anos, cuja família é historicamente ligada à Frelimo (e cujo avô foi prefeito de Maputo, na década de 1980); ela tentava então, numa conversa informal, justificar o seu apoio ao partido no poder, e a sua oposição ao MDM. O pai dela, um militar, e a mãe dela, juíza, devem tudo à Frelimo. Além da dimensão partidária, a sua observação reflete uma reação de classe muito ilustrativa: os que apoiam a Frelimo têm as melhores posições e consideram o partido como garante dos seus padrões de vida. Como também acontece na Europa ou nos Estados-Unidos, as elites africanas tornam-se uma nova classe capitalista mundial, e portanto desprezam, como no Ocidente, o povo e as identidades locais. Isto traduz-se, em África, por um desprezo em relação às culturas e línguas pré-coloniais, e por uma preferência por a cultura ocidental e as línguas europeias, supostas representar a « modernidade ».
Movimento político e social que promoveu a solidariedade entre os Africanos e os povos afro-descendentes, o Pan-africanismo tá agora num declínio irreversível. Nasceu no final do século XIX, no contexto da abolição da escravidão nas Américas e do mito do retorno dos Afro-descendentes em África – até foi por isso que nasceu o Estado de Libéria, em 1847. Em 1900 teve lugar em Londres a Conferência Pan-Africano, num clima de racismo e no contexto da última fase de colonização da África: os socialistas europeus, nos quais o russo Lenin, se opuseram claramente à partilha do continente pelas potências coloniais, em vão. Em 1914, quando inicia a Primeira Guerra mundial, a quase totalidade do continente está sob dominação européia. Só faltava ainda esperar 1936 para ver a Etiópia, um dos últimos símbolos de independência africano, laboriosamente (e brevemente) conquistada pela Itália fascista.
A descolonização do continente e a aparição do Movimento dos Não-Alinhados permitiu então, nas décadas de 1950 e 1960, um « renascimento Africano », simbolizado por líderes como o Senegalese Léopold Sédar Senghor, defendedor do movimento intelectual conhecido como négritude (em francês), o antigo presidente tanzaniano Julius Nyerere, e os dirigentes independantistes Amílcar Cabral no Cabo Verde, e Eduardo Mondlane em Moçambique. O objetivo aqui não é espalhar-se numa apresentação exaustiva deste movimento, também defendido por Aimé Césaire, Léon Gontran Damas e outros intelectuais negros de África e das Antilhas, nem fazer digressões sobre os pensadores afro-americanos que tentaram criar « pontes » com os « irmãos » negros de África, como o tentou Malcolm X. A identidade africana, ou « negra », é obviamente um conceito complexo, e poderíamos – já foi feito muitas vezes até a década de 1970 – assimilar a ele as identidades mestiças dos continentes americanos, ou até mesmo os povos árabes e berberes do Norte da África – o próprio ditador da Líbia Muammar Gaddafi considerava-se como um dos porta-vozes do movimento pan-africano. O movimento da négritude, lançado por Aimé Césaire (em obras publicadas em 1939 e 1950), tinha como objetivo « virar o estigma » induzido pela dimensão pejorativa da palavra « negro »; dai, o uso, a reapropriação da palavra, com o desvio do insulto com alvo revindicar uma identidade e uma cultura negras. Em 1967, Léopold Sédar Senghor definiu a négritude como « o conjunto dos valores fundamentais comuns a todos os povos negros e que fazem a unidade daqueles povos ». Provavelmente esses movimentos políticos e intelectuais tiveram ás vezes uma visão muito simplista da unidade negra, enquanto que o termo negritude tende a incluir povos extremamente diversos (incluindo se tomamos em conta só os da África subsaariana). Por exemplo, uma das críticas formuladas contra Senghor foi que ele fantasiou uma cultura e uma identidade negras, no sentido da categorização dominante que opõe os Africanos negros (colocados em um bloco monolítico) e Europeus brancos. Enfim, a sua visão reduzeria os Africanos unicamente à sua color de pele.
Um exemplo é ilustrativo: Cheikh Anta Diop, físico e historiador senegalesa, procurava provar, em Nações negras e cultura (1955) e As fundações culturais, técnicas e industriais de um futuro Estado federal de África negra (1960), as origens negras dos primeiros faraós do antigo Egito, isso para dar aos Africanos um orgulho comum sobre um passado de prestígio, como também a perspectiva de uma possível unidade futura. Se a idéia de que todo o continente africano tem conhecido desde o século XIX dinâmicas comuns – é o resultado da colonização –, no entanto, falar de orgulho e de passado comuns (e sobretudo idealizar um passado precolonial « comum ») pode parecer problemático em si, porque esta visão esqueça a diversidade dos povos e a complexidade das sociedades da África subsaariana. Ainda mais, colocar como passado comum a todos os povos negros africanos a herança de um império como o antigo Egito pode parecer absurdo, pois um país como o Sudão ou o próprio Egito podem orgulhar-se de ter tido grandes faraós, incluído faraós negros, no entanto um povo como os Congoleses, os Marfineses, ou qualquer outro não tem mais legitimidade do que os Russos ou os Portugueses a revindicar esta herança... além do fato de ser negros, e nesse caso é um critério baseado somente sobre a raça, o que nunca pode ser relevante.
Além disso, porquê valorizar tanto a história do Egito, e não da Etiópia, do Monomotapa, do Gana ou dos Zulus? Valorizar tanto a realidade de faraós negros no Egito antigo (ou seja numa civilização super-valorizado em Europa), enquanto o continente africano apresentou na sua história tantas grandes civilizações, é mesmo integrar os padrões de valor histórico europeus.
Então, será legítimo procurar, como o fez Cheikh Anta Diop, construir uma narração histórica comum a um conjunto dos povos negros do continente? Podemos pelo menos considerar que, na medida em que os os diferentes povos africanos partilharam, para a maioria deles, experiências similares (desde a escravidão até a colonização) com base a desumanização do « homem africano », de maneira global, como homem negro, entende-se que a rehabilitação histórica de alguns reinos ou civilizações do continente africano pode ser objeto de uma (re)apropriação por todos os Africanos, inclusivo os que não são herdeiros diretos daquela(s) história(s). Pois a rehabilitação histórica daqueles reinos, daquele passado, corresponde a um reconhecimento da sua contribuição ao « património da humanidade », e portanto a uma forma de rehabilitação do Negro como ser humano. Numa tal configuração, os histórias dos povos africanos são vistas como um tudo aninhado e indissociável, que todo Africano, e até todo afro-descendente, poderia apropriar-se. Claro, a postura de Cheikh Anta Diop não era sem ideologia (e até ele recebeu críticas por isso); sobre este ponto em particular, cada um pode fazer-se uma opinião, indo descobrir no detalhe a sua produção literária.
De qualquer jeito, uma coisa é clara: a chamada a uma unidade africana não é o fruto do acaso, e provavelmente ela foi tanto desejada, pensada, como também uma obrigação, de uma certa forma. As elites africanas que, duma forma ou duma outra, defenderam a solidariedade entre os Africanos e promoveram as identidades africanas, como aqueles que tentaram emancipar economicamente seu país frente ao imperialismo econômico ocidental, especialmente na década de 1970, tiveram de lidar com a realidade das fronteiras herdadas da colonização europeia. Daí a dificuldade de defender a própria noção de « identidade(s) africana(s) », uma vez que os novos líderes africanos, aceitando essas fronteiras impostas por colonizadores estrangeiros, eram naturalmente obrigados a promover, para assegurar a unidade política desses novos Estados, o sentimento de pertença a uma nova « nação » artificial. Casos concretos trazem luzas para ilustrar esta ideia.
Por exemplo, os descendentes dos moradores do antigo reino de Daomé, que vivem hoje em dia no Togo ou Benim, têm visto os seus líderes promover, desde a independência em 1960, o sentimento de adesão e de identidade relativo às « nações » do Togo ou do Benim (ou seja, a Estados que não existiam antes dos Europeus colonizar a África), e não à « nação » (o termo até pode ser inadequado) pré-colonial que tinha no entanto lutado contra o colonizador no século XIX. Até em Moçambique os exemplos ilustram bem esta ideia: observamos a história das três províncias do Sul de Moçambique (Inhambane, Gaza e Maputo), onde os moradores atuais falam línguas semelhantes (matsua, shangane e rhonga). Aos descendentes dos habitantes do reino de Gaza, que caiu contra os colonizadores portugueses em 1895, o Estado diz desde a independência em 1975 que eles pertencem, apesar da diversidade étnica e linguística do país, à « nação moçambicana » – o termo também é usado com freqüência no hino nacional, o que, tal como a imagem do mapa de Chipre ou do Kosovo nas bandeiras desses dois países, não é por acaso. Outro exemplo, talvez mais óbvio ainda: os Tuaregues no norte do Mali ouviram por mais de meio-século que constituam uma só nação com os negros do sul do país, e que todos constituam a nação maliana.
As elites africanas pós-independência apropriaram-se a herança dessas fronteiras, ainda mais porque essas elites foram formadas no âmbito colonial, e ás vezes até na própria metrópole (Londres, Paris, Lisboa ou Bruxelas), adoptando um padrão ideológico colonial. A ambiguidade de uma defesa do africanismo, da identidade africana, encontra-se portanto neste paradoxo: será que se defenda as identidades africanas quando se promova o sentimento nacional em fronteiras que foram desenhados por povos extra-Africanos (os Europeus) no contexto da colonização?
O que achar de um Mobutu Sese Seko, presidente do Congo-Kinshasa (1965-1997), que defendeu a zaïrização (« zaïrianisation » ou « authenticité zaïroise » em francês), ou de um Henri Konan Bédié, presidente da Costa-de-Marfim (1993-1999), que promoveu o conceito de identidade costa-marfinense (marfinidade, ou « ivoirité » em francês)? Ou ainda de um Armando Emílio Guebuza (2005-2015), cuja presidência defendeu a idéia de moçambicanidade, ou seja: « o valor de identidade, auto-estima e o sentimento de comunhão do destino que caracteriza os Moçambicanos » (2014)? Os próprios conceitos de marfinidade e de moçambicanidade, evocados como se fossam ramos da africanidade para promover um sentimento de pertença nacional especificamente africano, são uma herança, uma criação direta da colonização, ou seja, de uma leitura verdadeiramente europeia da história e da realidade do continente africano.
Independentes, os povos africanos foram então colocado em situação de esquizofrênico identitária, acentuada pelo modelo político de Estado-nação centralizado imposto e herdado pelos Europeus: para defender sua independência política, económica e cultural, foram obrigados a promover uma identidade artificial no âmbito das suas novas fronteiras. No Zaire (atual Congo-Kinshasa), o « recurso à autenticidade » (recours à l’authenticité) decretado pelo partido único nos anos 1970 não impõe só de vestir-se de roupa « tradicional »: também proíba qualquer cultura estrangeira, ou seja, durante uns 25 anos, estilos musicais diferentes por exemplo, como a soul, o disco, o reggae, ou ainda o afro-beat, que ficaram muito populares neste país de África central, só chegaram às orelhas dos Congoleses pela interpretação e apropriação pelos grupos locais. A final, os Zairenses tentaram completar a descolonização, proibindo os nomes cristãos, mudando os nomes das ruas e das praças públicas, ou nacionalizando empresas detidas por estrangeiros, enquanto a identidade zairense-congolesa não tem sentido, nas fronteiras atuais, se não é colocada em perspetiva direta com a história colonial que a criou.
Esses nacionalismos pós-coloniais, exacerbados com objetivos políticos, servem sobretudo a unir a maioria da população à volta do clã no poder, em nome da exclusão de tal ou tal categoria de indivíduos que não pertenceriam realmente à « nação », como os Marfineses de origem burkinabé, ou os Moçambicanos mulatos ou brancos – e provavelmente, desde o golpe de Março de 2013, os Centro-Africanos muçulmanos.
A questão da identidade em África cristaliza-se então, a nosso ver, na preservação das identidades locais (e línguas e dialetos locais), para muitos Africanos para quem a nação herdada com as fronteiras coloniais significa a dominação de uma cultura que não é a deles. As elites políticas e econômicas da África subsaariana, fora de algumas exceções, evoluam em quadros de pensamento modelados por paradigmas ocidentais, e cujo ideal de desenvolvimento e de modernidade é o promovido pelo Ocidente, capitalista sobretudo. Uma realidade que tem consequências directas sobre o respeito das diferentes comunidades e identidades que compõem essas sociedades.
O exemplo de Moçambique: a emergência de uma classe média ocidentalizada
O filósofo norte-americano Francis Fukuyama escreveu em Junho de 2013, no Wall Street Journal: « O crescimento econômico mundial [...] mudou a ordem social em todo o planeta. Nos chamados "mercados emergentes", as classes médias são mais numerosas, mais ricas, mais instruídas e mais conectadas do que nunca através das tecnologias. [...] Exigem uma sociedade mais livre, mas nada diz que, no curto prazo, necessariamente reclamarão uma democracia baseada no sufrágio universal. » Esta nova classe média africana é a nova « elite », política e econômica, do continente. Eles são líderes de empresa, jornalistas, juízes, militares, etc. enfim são aqueles que controlam os meios de produção (quando esses não são controlados por investidores estrangeiros), que consumam (muitas vezes produtos importados) e que, em muitos aspectos, são criadores de opinião. Esta elite erige paradigmas que enquadram a sociedade, a via de desenvolvimento adoptado pela nação, e estabelece quais são os modelos e os ideais do país.
Obviamente, em oposição às ondas ideológicas que surgiram aqui ou ali até a década de 1980 para promover um certo « orgulho africano », os paradigmas que moldam a conduta e as referências das elites africanas são agora fortemente inspiradas daqueles propagados pela cultura ocidental. Possuir bens de consumo « modernos », como qualquer cidadão americano ou europeu deve ter (isto também é uma boa ilusão), isto é a vida ideal. O materialismo (e particularmente nos países onde as necessidades materiais foram ou ainda são consideráveis) e a cultura da antiga potência colonial são muitas vezes erguidos como modelos. Isto significa uma coisa: a Europa mantém uma importante influência cultural sobre muitas das elites africanas, que, sofrendo de um sentimento de inferioridade, olham o Ocidente como um modelo em todos os aspetos – político, administrativo, tecnológico, económico, etc. O ex-país colonizador (e o Ocidente em geral) é a referência a seguir e copiar. E os fundos da ajuda ao desenvolvimento, pela via das ONG ou das cooperações, confortam este sistema, onde o Norte continua dizendo ao Sul qual é o caminho mais relevante a seguir.
Antes de tudo, é preciso relativizar a definição proposta « elites africanas ». De acordo com o Banco Africano de Desenvolvimento (2013), um Africano sobre três seria « entrado na classe média ». Ou seja, umas 350 milhões de pessoas... potenciais consumidores. Claro, a realidade é mais complexa, porque a classe média « africana » abrange uma realidade extremamente diversificada. O Banco Africano de Desenvolvimento inclua dentro da sua definição os Africanos que gastam entre 2 e... 20 dólares por dia. E isso, qualquer fora o meio de subsistência, e sem importar-se se a estabilidade financeira das pessoas dependa do setor formal ou informal, legal ou ilegal, etc. O site-web de notícias pan-africano Africa is a country trouxe então umas dúvidas quanto à existência de tal nova classe média, sobretudo quanto se trata de pessoas que gastam apenas 2 dólares por dia: « Eles têm um telefone celular, um endereço-mail, mas não um seguro de saúde. Eles têm talvez um carro, mas têm que esperar meses antes de poder trazer a garagem. »
Então, dependendo da definição escolhida, ou esta classe média é muito grande, se incluímos todos aqueles que têm um celular, ou ao contrário é muito embrionária, se incluímos apenas as pessoas em situação intermediárias ou em posição hierárquica alta, que lhes permita ter poder nos outros e, como já foi dito antes, serem criadores de opinião. Considerando esta definição estreita, a fronteira é, portanto, pouco clara entre esta classe média nascente, os « novos ricos » que aproveitam do recente boom econômico, e os que dominam o partido no poder (e as crianças deles). O caso de Moçambique ilustra perfeitamente esta situação. Neste país que conheça desde uma década um crescimento anual de cerca de 7% do seu PIB, a classe média é de fato embrionária, e concentrada principalmente em Maputo, a capital – no Grande Maputo aliás, dada a expansão da cidade nos últimos anos. Mas a « ocidentalização » das mentes atinge tanto esses novos consumidores que os caciques do regime cujas famílias detêm há décadas o poder.
A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), ex-partido socialista que está no poder em Maputo desde 1975, e que foi partido único até 1990, tem o poder desde a independência. Seus caciques, muitas vezes políticos ou militares que apoiaram a luta pela independência e que, em seguida, ocuparam cargos importantes, seguram firmemente o regime e tornaram-se os novos « capitalistas negros » que exploram o povo e que eram anunciados pelo primeiro chefe do Estado após a independência, Samora Machel (1975-1986). A África do Sul (e suas grandes metrópoles) é vista pelas crianças destes caciques como um ideal de desenvolvimento, que nem Portugal, a antiga potência colonial, e mais em geral a Europa; o Ocidente representa a modernidade, segundo essa nova geração, que representa o melhor exemplo de « elite » ocidentalizada, ou seja, com modo de vida ocidental. Talvez até a palavra « elite » é um pouco forte para essa banda de crianças materialistas, sem clara convicção ideológica, sem ideia política, mas cujos país e eles próprios devem os seus empregos e sua condição social ao partido no poder; portanto, eles elogiam a Frelimo quanto possível. São ser Frelimistas sinceros, eles são os maiores apoios do regime Frelimo, porque este representa para eles uma garantia de estabilidade e, portanto, uma garantia das suas liberdades individuais, incluído a de enriquecer-se sem limites.
No caso de países como Moçambique, mas também Argélia ou Angola, onde o partido no poder desde a independência é aquele que liderou a luta de descolonização, essas elites económico-políticas acham que o país lhes é devido (mesmo 50 anos depois da luta pela independência...), que é a propriedade deles, e que o povo – que o partido representa integralmente, claro, e isso mesmo depois do fim do partido único – tem uma dívida eterna a lhes dever. Para ir mais longe sobre os problemas ligados à permanência da Frelimo no poder: Moçambique: a hegemonia da Frelimo, um freio à redistribuição das riquezas
Quando desprezo pelo povo e ocidentalização misturem-se bem...
A campanha eleitoral de 2014 em Moçambique foi bastante ilustrativa. Certamente, os jovens moçambicanos que apoiam o partido do governo estão conscientes dos abusos de corrupção e de clientelismo acerca do partido Frelimo, no poder há quarenta anos. Mas o realismo rapidamente domina quando se trata de defender os seus interesses. Em redes sociais, especialmente em Facebook, as fotos em que aparecem com uma camisa e um boné da Frelimo multiplicam-se, para provar que mamã e papai merecem os seus empregos, assegurados pelos laços ao partido.
Até verbalmente, as discussões acabam muitas vezes com a ideia de que a Frelimo é finalmente o « menos mau » dos partidos moçambicanos, e que nenhum dos dois outros principais partidos moçambicanos é capaz de o substituir para governar o país, nem o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), que seria jovem demais, nem a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), que seria demasiado radical ou violente para governar. Tais argumentos poderiam ter sido usados pelos colonizadores portugueses à Frelimo em 1975, mas pronto. No meio desta hipocrisia acontece, mas muito raramente, que essas pessoas admitam que suas famílias têm os seus padrões de vida e empregos dependente do partido no poder, e que isso é suficiente para motivar o seu voto em favor do candidato da Frelimo à presidência da República.
A visão que eles têm da modernidade inscreva-se num âmbito consumista (de luxo, se for possível) que representa o sucesso do capitalismo. Esta elite não quer alternância política, porque tal cenário poderia significar a contestação da sua situação social e dos seus privilégios. Claro, os Africanos (com toda a diversidade que a palavra « Africanos » supõe) não são condenados ao imobilismo social ou cultural, nem identitário, mas a paixão com a qual estas elites africanas abraçam os códigos sociais e os ideais de desenvolvimento ocidentais tem traduções concretas nas relações e balanços políticos e económicos em muitos países do continente, em particular o abandono de elementos importantes da cultura das sociedades africanas, que são muitas vezes as grandes perdedores da globalização. Esta elite não vive mais com a população, mas ao lado dela. « De certa forma, eu não me sinto moçambicana, eu não sinto que eu sou deste país », contava também Nilza, uma outra moça, esta de então 30 anos, pertencendo à alta classe média. Assim, muitas pessoas de classe superior viajam, estudam ou trabalharam no exterior (em Portugal, em África do Sul, no Brasil, etc.), movem-se só de carro, entendam mal como funcionam os transportes públicos (o chapa), passam muitas das suas férias na Europa (em Portugal, em particular, onde às vezes têm família), e não fala mais um dos dialetos do país (até ás vezes são os país deles que quiseram só falar o português para eles esqueceram-se da língua dos antepassados). Em O hibiscus roxo, da autora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, a narradora, a jovem Kambili, fala assim do pai dela, Eugene: « Ele praticamente nunca falava ibo, e mesmo que [meu irmão] e eu falássemos em ibo em casa com Mamãe, ele não gostava de nos ver o usar em público. Tínhamos de parecer civilizados em público, dizia ele; tínhamos que falar inglês. »
Claro, este cocktail não nos permite julgar e condenar esta « elite ». Mas esses elementos colocam a questão do futuro e da governação das jovens « nações » africanas, cujo desenvolvimento é levado por uma classe que não entende mais o povo (muitas vezes eles até não falam a mesma língua...) e que não têm mais consciência das suas preocupações ao dia-ao-dia. Isto é ainda mais verdade num país como Moçambique, extremamente pobre, a 80% rural, e onde, além disso, a capital, Maputo, é altamente « isolada » dum ponto de visto geográfico (e muito perto de África do Sul); é bom recordar que Moçambique ainda era classificado ao 180° lugar mundial em termos de desenvolvimento humano (IDH) em 2015, sendo ainda um dos países mais pobres do mundo, com uma expectativa de vida inferior a 50 anos, um nível de alfabetização oficial de apenas 50% da população, e ainda casos de desnutrição crônica no centro e norte do país. Em muitos aspetos, Maputo é uma bela vitrine que não reflete a realidade « nacional ». Ela deve sobretudo ser a vanguarda da globalização, uma futura megalopole super-conectada ao mundo, uma cidade sem alma mas não sem dinheiro e altas tecnologias.
Numa cidade como Maputo, isto traduz-se por uma transformação urbana baseada em alguns grandes projetos emblemáticos, muitas vezes sobre-facturados e assumidos por construtores chineses, como a via circular para aliviar o tráfico automóvel (300 milhões de dólares), ou ainda a ponte Maputo-Catembe (750 milhões). Claro, este tipo de projetos conduzem expropriações e deslocamentos de comunidades cuja presença pode ser um freio às obras de tal ou tal projeto. Observa-se também a vontade de ver desaparecer vestígios do passado colonial, incluído casas de pequeno tamanho que dão um certo charme ao centro da cidade, ao benefício da construção de grandes torres de vidro e de betão. « A final, o que faz a especificidade da cidade é sacrificado no altar desta obsessão da modernidade, com base a idolatria do betão, do asfalto e do vidro, com modelo o que é feito em Dubaï. A filosofia atrás desta formatação não é outra coisa que uma forma de engenharia social positivista [...] que ambiciona criar um homem novo e uma cidade limpa [...]. » Essas palavras do jornalista Cengiz Aktar, escritos num jornal turco em Junho de 2013, falando de Istambul, aplicam-se perfeitamente a muitos países « em desenvolvimento », que nem Moçambique.
Em Pemba, na província de Cabo Delgado. Esta máscara branca no rosto é uma herança de séculos de cultura, no norte de Moçambique.
Para ir mais longe sobre a questão identitária das novas elites capitalistas africanas: Será que as « elites africanas » ainda são... africanas? (2/2) O imobilismo intelectual das novas elites « globalizadas »