Guerra larvada em Cabo Delgado: por trás da cortina, os desafios energéticos e de soberania de Moçambique
Desde 2017, a província de Cabo Delgado, no norte de Moçambique, conhece violências importantes conduzidas por um grupo terroristo islâmico. No início de 2021, o conflito já tinha feito 2 500 mortos, metade sendo civis, segundo a ONG ACLED (Armed Conflict Location & Event Data Project), et mais de meio milhão de pessoas tinham sido deslocadas. Naquela altura, a ONU exprimiu a sua preocupação sobre a situação do país, que, desde 2017, também tinha conhecido dois ciclone e uma pandemia.
Além das desafios estritamente humanitários, com as suas consequências dramáticas, induzidos pelo movimento jihadista, também leva outras questões. Pois, nesta província de Cabo Delgado, uma das mais pobres do país, encontra-se um imenso projeto de exploração de gás natural liquefeito, na bacia de Rovuma. Será que os problemas de segurança podem impedir a realização dessa empresa, criticada pelas ONG pelo seu impacto ambiental e a problemática do bom uso da futura renda do gás? Por enquanto, o exército moçambicano revelou-se incapaz de conter a guerilha islâmica, que controlou uma parte da área costeira, inclusive em 2020 o porto de Mocímboa da Praia, indispensável para a chegada de material necessário às instalações de gás, e em 2021 a localidade de Palma. Vários países, em particular uns que têm interesses relativos ao gás offshore da bacia de Rovuma, mandaram um apoio logístico e até armado às autoridades moçambicanas. Por trás desta seqüência toda, impõem-se a questão central da soberania de Mozambique e da sua segurança, ao benefício (ou ao custo) da população.
Enquanto o Moçambique acabou, em Dezembro de 2016, de sair de uma guerra dita de baixa intensidade (2013-2016) entre as Forças armadas nacionais e o ramo armado do principal partido de oposição, a Renamo, conflito que já tinha provocado o deslocamento de milhares de pessoas, principalemente no centro do país, o cessar-fogo proclamado então não consagrou o retorno da paz. Pois, em 5 de Outubro de 2017, no distrito de Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado, observou-se um ataque de cerca de 30 homens armados sobre três unidades de polícia; mataram-se dois policiais, e o grupo apoderou-se de mil munições e um número não especificado de armas de fogo. Nos dias a seguir, novos casos de violências foram notados no distrito de Palma, localizado na mesma província.
Dois fatos marcavam essas primeiras violências. Primeiramente, não se podia identificar nem a verdadeira identidade desses homens, nem os motivos do ataque. Rapidamente no entanto, apareceu nas mídias nacionais e estrangeiros a atribuição dos ataques aos Shebabes, um grupo terrorista e fundamentalista islâmico (afiliado a Al-Qaeda) que atua primordialmente no Sul da Somália, mas também no Quénia. (A notar porém que, finalmente e apesar da coincidência do nome, o grupo dos Shebabes moçambicanos, treinado e equipado para atos de sabotagem e banditismo, distingue-se do Al-Shebab na Somália.) Em segundo lugar, nota-se que o governo negou a realidade da violência e pretendeu que tudo estava sob controlo; pois já haviam sinais há vários meses da presença de membros de um grupo fundamentalista, que promoviam a desinformação e chamando ao desrespeito às autoridades, nas aldeias de Cabo Delgado. O Estado pretendia ver ai um simples « conflito interno à comunidade muçulmana », preferendo fechar os olhos sob o pretexto que « não intervem em assuntos internos de uma confissão religiosa ». A atitude do governo moçambicano nos últimos meses de 2017, de negação e de opacidade, claramente não permitiu conter essa guerilha nascente (Moçambique: três anos depois da tomada de posse, qual é o balanço da presidência Nyusi?).
A cronologia da guerilha jihadista em Cabo Delgado: um drama humanitário
Desde o ataque do 5 de Outubro de 2017, o grupo multiplicou as violências, umas contra instituições oficiais representando o Estado, como postos de polícia, outras gratuitas contra comunidades civis, matando à cego, queimando as casas, decapitando cidadãos lambda, roubando comida e bens, conduzindo milhares de pessoas a fugir. São particularmente afectados os distritos de Macomia, Quissanga, Mocímboa da Praia, Muidumbe, Nangade e Palma. Durante muito tempo, nenhuma revindicação política foi formulada pelo grupo, aumentando a dimensão gratuita dos ataques. A enumeração exaustiva dos ataques não é possível, ainda mais porque permanece do lado do exército moçambicano uma certa opacidade na transmissão da informação. Para ter uma ideia, um exemplo pelo menos: no final de Maio e início de Junho de 2018, umas quarenta pessoas são matadas em ataques nas aldeias, certas delas decapitadas, e as habitações sendo muitas vezes incendiadas.
Em Junho 2019, finalmente, o Estado Islâmico, rede terrorista internacional famosa, revindica as suas primeiras ações em Moçambique, e em Julho do mesmo ano, o grupo moçambicano Ahlu Sunna Wal Jamaa, também chamado Ansar Al-Sunna, ainda conhecido localmente pelo nome de « Shebabes » declara-lhe a sua fidelidade, proclamando Cabo Delgado a « Província de África central » do Estado Islámico. Só em 2019 é que as Forças armadas de Moçambique assumem oficialmente tomar a liderança das operações em Cabo Delgado, para conter os jihadistas. No único mês de Novembro de 2019, pelo menos 31 ataques acontecem. Em 6 de Dezembro do mesmo ano, uma emboscada na aldeia de Narere faz pelo menos uma dezena de mortos nos soldados moçambicanos.
O ano 2020 viu uma aceleração e uma aumentação dos ataques, que foram multiplicados por três, apenas nos quatro primeiros meses do ano, em relação com a mesma altura em 2019. A rebelião assume a partir dai ambições mais sérias. No meio de Novembro de 2020, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 33 000 pessoas já tinham sido deslocadas por causa das violências em apenas uma semana. Em 13 de Maio de 2020, o exército moçambicano afirma ter matado 42 jihadistas, entre as aldeias de Chinda e Mbau, e oito outros no dia a seguir no distrito de Quissanga. Em 27 de Maio seguinte, as Forças armadas conseguem repelir um ataque de três dias contra a cidade de Macomia, revindicando ter matado uns 78 terroristas. Fato estratégico capital, em 12 de Agosto de 2020, os jihadistas consegam, após uma ofensiva iniciada em 5 do mesmo mês, pegar o porto de Mocímboa da Praia, a 60 km da península de Afungi, sítio determinante para a exploração do gás – havemos de voltar neste ponto mais longe. Enquanto a localidade já tínha sido atacada duas vezes (em particular em 23 de Março do mesmo ano, dois dias antes de uma outra incursão em Quissanga), desta vez, os rebeldes a ocupam duravelmente. Esta vitória é importante para o grupo terrorista, por duas razões pelo menos: é a primeira tomada de uma cidade, o que confirma a ancoragem do movimento na província; e a durabilidade desta ocupação confirma as suas pretenções, tal como confirma também a fragilidade militar do Estado moçambicano. As tropas do governo acabam por retirar-se após terem ficado sem munições; a no final do mês, notava-se ainda combates naquela área, contudo o poder não conseguiu retomar a localidade. A conquista da costa continuou a partir dai. Em 8 de Setembro de 2020, os jihadistas capturaram duas pequenas ilhas, Mecungo e Vamisse, antes de pegar, uns dias depois, o controlo de uma importante via de ligação entre sul e norte de Cabo Delgado, através do distrito de Montepuez.
Em 27 de Março de 2021, a cidade de Palma, com então 75 000 habitantes e 40 000 deslocados, é tomada pelos jihadistas, após três dias de ataques por três frontes – as forças governamentais tinham evacuada a localidade na véspera. Com a conquista desta aglomeração, vizinha (com apenas dez km de distância) da península de Afungi, então transformada em campo fortificado, onde o consortium de exploração de gás estava pronto a retomar a construção das instalações de liqueficação de gás explorado em offshore, os Shebabes ganharam ainda em visibilidade, ainda mais porque o ataque foi acompanhado por grandes violências e dezenas de mortos. Cinco dias depois, o organização Estado Islâmico revindicou a operação sobre Palma, e elogiou o grupo moçambicano na sua publicação semanária, Al-Naba. Os Shebabes podiam desde então retirar-se de Palma, tendo provado que a sua ação militar era capaz de supreender o governo moçambicano e de ameaçar o projeto de exploração de gás próximo. Em 7 de Abril, o presidente Filipe Nyusi fez saber, sem gabar-se, que os rebeldes tinham sido expulsados da cidade de Palma.
No entanto, exacções continuam acompanhando os ataques, o objetivo sendo sempre alimentar o terror nas populações que não juntam-se à rebelião. Em 6 de Novembro de 2020, o ataque contra a aldeia de Nanjaba foi acompanhada de violações (ou estupros em português do Brasil) de mulheres e de decapitações de homens, como também de incêndios de habitações; o mesmo dia, numa ataque na aldeia em Muatide, mais de 50 pessoas fugitivas foram reunidas num campo de futebola e decapitadas. Em 3 de Janeiro de 2021, numa emboscada conduzida numa área de mato, no distrito de Muidumbe, pelo menos 25 soldados foram matados e vários feridos pelos terroristas. « Os terroristas dispõem de informações precisas sobre os movimentos dos nossos soldados », declarou então um alto responsável militar em Maputo.
Em 7 de Outubro de 2020, ou seja, três anos após o início do conflito, Amnesty International deplorou a ausência de justiça, verdade e indemnização em direção às vítimas das violências, que então já tinham feito mais de 2 000 mortos e mais de 300 000 deslocados; 712 000 pessoas necessitavam então de uma ajuda humanitária, mais de 350 000 sofrendo de insegurança alimentária grave (segundo o Escritório da coordenação dos assuntos humanitários da ONU). Na sua declaração, Amnesty International explicava portanto que as autoridades não tinham traduzido em justiça todos os supostos responsáveis dos crimes de direito internacional e de violações dos direitos humanos envolvidos. Naquela altura, a ONG também explicou: « Elementos provem que as forças de segurança também cometerem crimes de direito internacional e violações dos direitos humanos, em particular desaparecimentos forçados, atos de tortura e execuções extra-judiciárias. Esses crimes são facilitados pelo fato que as autoridades moçambicanas não permitem aos jornalistas nem aos pesquizadores, tanto locais como estrangeiros, de recolher informações sobre a situação sem subir conseqüências. » Atos de tortura foram cometidos contra prisoneiros, como também maus tratamentos e até assassinatos por decapitação ou desmembramento... Amnesty International confirmou ter várias provas e testamunhos de esse tipo de exacções extra-judiciárias. Desde então, claro, nenhuma pesquisa independente foi autorizada pelo Estado moçambicano para identificar a realidade nem os responsáveis dos abusos.
Pouco depois, num comunicado publicado em 13 de Novembro de 2020, a Alta Comissária da ONU para os direitos humanos pediu « medidas de emergência » para proteger as populações civis, julgando a situação local « desesperada », no contexto de uma intensificação dos ataques, de descoberta de valas comuns e de decapitações atestadas. Em menos de um mês, entre o 16 de Outubro e o 11 de Novembro de 2020, segundo o bispo de Pemba, chegaram de barco mais de 14 000 deslocados na única cidade de Pemba, a capital da província. Uns dias antes, em 1 de Novembro, um barco com civis virou-se entre as ilhas Ibo e Matama, causando a morte de pelo menos 40 pessoas, segundo a ONU. Na continuidade da chamada da ONU, as ONG locais alertavam também, na mesma altura, a ausência do Estado para ajudar, nem para registrar, os deslocados fugindo pela terra ou pelo mar e chegando em Pemba. As necessidades em termos de saúde, de habitação, de apoio psicológica, de alimentação e de proteção são consideráveis. Em Novembro de 2020, já estávamos a 355 000 deslocados, contra 88 000 no início do mesmo ano. A maioria fugindo ou na província mesma (entre os quais uns 100 000 somente na cidade de Pemba!), ou nas de Nampula e de Niassa vizinhas. As pessoas chegam de barco, de caminhão, de chapa ou a pé. No total, em um pouco mais de três anos, a ONG ACLED identificava então mais de 700 ataques. O acesso à saúde torna-se impossível localmente, como o ilustrou o ataque de Maio de 2020 contra um posto de saúde do distrito de Macomia, onde trabalhava também a ONG Médicos Sem Fronteiras (MSF); o pessoal que trabalhava lá também teve que fugir com as suas famílias.
Em Janeiro de 2021, já conta-se mais de 2 500 mortos (entre os quais metade de civis) e mais de 565 000 pessoas deslocadas, abandonando casa e horta. Os acapamentos improvisados estão rapidamente sobrelotados e ultrapassados pelas necessidades sanitárias, escolares, de abastamento, de saneamento, etc. Condições que favorecem os riscos de transmissão de doenças como o cólera, o sarampo e a COVID-19, ou até o paludismo, logo que chega a temporada das chuvas. Paralelmente, os testemunhas multiplicaram-se ao longo dos anos, de homens, mulheres e crianças que ficaram dias e dias escondidos no mato, ou que caminharam durante vários dias para chegar em um lugar seguro, ou que disseram ter visto crimes de massa contra os seus próximos (decapitações em particular, que revelam-se a assinatura do grupo terrorista...). Em Abril de 2020, uns cinquenta jovens são fusilhados e descapitados, aparentemente para ter recusado juntar-se ao movimento. Em Março de 2021, Save The Children alerta que há crianças a serem decapitadas em Cabo Delgado; a ONG, enquanto o número de deslocados atinge os 670 000 pessoas e o número de mortos os 2 600, fala em relatos « horríveis » do que se está a passar naquela província no norte de Moçambique. Um mês depois, no final de Abril, o número de deslocados já tinha passado a 700 000.
Ainda mais, é confirmada – em Outubro segundo a ONG Centro de Integridade Pública (CIP) e em Novembro de 2020 segundo a ONG Care –, o fato que meninas deslocadas de Cabo Delgado, às vezes com apenas 11 anos, são casadas a força com homens mais velhos, entre 40 e 50 anos de idade, para elas e as famílias poderem sobreviver, alerta a ONG: « As meninas casam-se entre os 12 e 17 anos, mas nalguns casos até se casam antes disso. Com 11 anos, explicou então uma agente moçambicana às mídias. Às vezes, os pais oferecem-nos em casamento porque precisam de recursos e ficam com menos uma boca para alimentar. » As meninas ficam separadas dos pais, e torna-se necessário para elas achar um meio de subsistência. Uma situação que não é nova, pois Moçambique, onde as guerras foram muitas desde os anos 1960, já era um dos países do mundo com maior taxa de casamentos precoces, mas está agravando-se em Cabo Delgado com o contexto atual, como também o fenômeno de gravidez precoce e de abusos sexuais de menores. Finalmente, em Junho de 2021, umas ONGs informavam as mídias que pelo menos cinquenta crianças teriam sido raptadas em Cabo Delgado em um ano, as meninas sendo casadas a força e submetidas a violências sexuais, os meninos endoutrinados e treinados para juntar a insurreção.
O gás de Rovuma, objeto de interesses estrangeiros: Cabo Delgado no « olho do furacão »
Por lembrança, o Cabo Delgado constitui uma província altamente estratégica para o Moçambique e até para muitos dos seus parceiros estrangeiros. O motivo: o projeto de exploração dos 180 trilhões de metros cúbicos de gás natural descobertos em offshore na foz do rio Rovuma. A promessa da renda dos hidrocarbonetas leva imensas perguntas, neste país cuja gestão das finanças públicas é regularmente denunciada pela sua opacidade, caracterizado pelo nível considerável de corrupção a todas as escalas, desde o pequeno funcionário até os ministérios e potencialmente a própria presidência do Estado (Presidência Nyusi (1/2): em Moçambique, a continuidade de práticas políticas e financeiras opacas). Até quando criou-se, em 21 de Agosto de 2017, um Fundo soberano financiado através das receitas fiscais provenientes da exploração dos recursos naturais, oficialmente para financiar projetos de desenvolvimento, ninguém ficou confiante no governo: de fato, a administração moçambicana não tem as capacidades, hoje em dia, de gerir de forma justa e transparente o lucro proveniente dos recursos naturais. Dado os casos anteriores de abusos e de corrupção (Instituto Nacional de Segurança Social, Ematum, MAM, ProIndicus...), parece óbvio que o povo moçambicano não irá aproveitar da renda do gás, a qual vai provavelmente acentuar os problemas de corrupção, de clientelismo e até de disfuncionamentos económicos que conhece o país, tal como foi o caso da exploração mineira, por exemplo a de rubi em Montepuez (Cabo Delgado). Ainda no final de 2017, o governo captou uma receita de 350 milhões de dólares como resultado da venda de 37% das ações da multinacional italiana ENI à norte-americana Exxon Mobil, e homologou os termos e condições do acordo complementar ao contrato de concessão para a pesquisa e produção de petróleo numa das áreas da bacia do Rovuma. Antes mesmo da exploração de gás, o executivo já tinha dedicado 98% dos lucros aos investidores, 2% apenas para Moçambique. A empresa francesa Total finalizou no final de Setembro de 2019 a sua entrada num dos dois projetos maiores, Mozambique LNG, prevendo investir entre 20 e 25 bilhões de dólares nos próximos anos. Com 26,5% de participação desse projeto energético, suposto ser operacional em 2024 e elevado a quase 15 trilhões de dólares, Total é que conduz o consortium internacional no qual encontra-se também a sociedade norte-americana Exxon e a italiana Eni, com ainda quatro outros grupos internacionais.
Em Fevereiro de 2020, o Centro de Integridade Pública (CIP) defendeu publicamente a urgência de uma revisão dos ditos Regimes específicos de Tributação e Benefícios fiscais das Operações petrolíferas e mineiras em Moçambique. Por lembrança, em 2019 – ano durante o qual os benefícios fiscais atingiram 24,9 bilhões de meticais, ou seja, o equivalente de 3% do PIB moçambicano (e um crescimento em 34,6% comparado com 2018) –, o governo, através o orçamento do Estado, tinha manifestado a sua intenção de rever esses Regimes, mas hoje em dia, continua a mesma situação do que em 2017. Entre 2010 e 2019, os benefícios fiscais custaram ao país 172,6 bilhões de meticais, ou seja, 11,4% de toda a receita arrecadada no referido período; na mesma altura, a contribuição fiscal foi de 100,3 bilhões de meticais, o que permite concluir que o custo dos benefícios fiscais foi, de 2010 a 2019, de 72,3 bilhões. É na base deste valor, do Custo dos benefícios fiscais que superaram a contribuição fiscal dos megaprojetos, que a ONG moçambicana recomandou uma revisão dos tais Regimes, com ênfase no imposto de produção, os direitos aduaneiros e o IVA; e de manter o projeto funcional após terminada a fase de usufruto de benefícios fiscais concedidos. O valor dos benefícios fiscais, apenas para 2019, representou cerca de três vezes o valor dos donativos no mesmo ano e pouco mais de metade dos recursos necessários para a cobertura do défice orçamental do mesmo ano. Desde então, nenhuma nova captação de receitas foi operada; os anúncios do orçamento estatal de 2019 não passaram de uma pretensão, sem tradução concreta. A ONG conclui, após a análisa dos dados orçamentais, em particular de 2017 a 2019, que uma pesquisa séria « leva a conclusão de que a política de benefícios fiscais tem gerado mais custos que benefícios fiscais para o país ». Além disso, o CIP apuntou do dedo as contradições existentes nos diferentes contratos mineiros relativos à tribulação do setor. Enfim, os problemas da década de 2010 parecem perpetuar-se, com, por trás, interesses privados óbvios, em primeiro lugar do ponto de visto das firmas internacionais extrativistas.
Caso emblemático, em 7 de Dezembro de 2020, um ataque jihadista atingiu uma posição militar moçambicana e casas de civis na aldeia, Mute, localizada a apenas 20 km da península de Afungi, centro nevrálgico do projeto de exploração de hidrocarboneto levado por investidores estrangeiros, entre os quais principalmente Total, Eni e Exxon, que exprimiram então a sua preocupação. Mute, precisamente, serviu muito tempo de zona-tampão entre as instalações de gás natural e o porto estratégico para o encaminhamento das infra-estruturas, Mocímboa da Praia, controlada então pelos jihadistas desde Agosto do mesmo ano. Os interesses estrangeiros é que motivam a reação do governo e da comunidade internacional – sem eles, será que haveria a mesma preocupação para as violências orquestradas na província? – sobre a qual havemos de voltar. Embora uma área de segurança de 25 km era suposta ser instaurada a cerca do sítio da península de Afungi, colocada sob a proteção de um contingente das forças de segurança moçambicanas, a situação está por enquanto em « suspenso », pois por exemplo, após a retomada da localidade de Palma pelas forças governamentais, anunciada em 7 de Abril de 2021, verificou-se que os Shebabes conseguiram infiltrar de novo a cidade no início do mesmo mês, e mataram (por decapitação) habitantes que tinham retornado lá... Esta ameaça contínua deixou os investidores estrangeiros e os Moçambicanos em geral duvidosos sobre o futuro da província e dos projetos previstos lá. « Dada a evolução da situação securitária no norte da província de Cabo Delgado em Moçambique, Total confirma a retirada de todo o seu pessoal do projeto Mozambique LNG do sítio de Afungi, escreveu o grupo Total no comunicado publicado em 26 de Abril de 2021. Esta situação conduz Total, como operador do projeto Mozambique GNL, a declarar a força maior. » Esta noção jurídica é invocada quando condições excepcionais impedem a continuação de um estaleiro e a execução de os contratos ligados a ele. Total já tinha evacuado uma parte dos seus agentes, e suspendido as obras no final de Dezembro de 2020, após uma série de ataques jihadistas.
Quando notam-se os primeiros movimentos armados na província de Cabo Delgado, eles acontecem numa altura de transformações locais que incentivam uns e outros à contestação contra as autoridades locais, supostas garantir o Estado de direito e os interesses das comunidades. No contexto ligado à futura renda de gás, as elites políticas e os meios económicos já eram de olho aberto para o açabarcamento de terrenos e de negócios lucrativos. A especulação imobiliária ilegal era uma realidade, tanto que tornava-se difícil adquirir um terreno em Pemba, ou em Palma, por exemplo. Jovens e menos jovens procuram trabalhar, num contexto nacional péssimo em termos de emprego, de comércio ou de circulação monetária. Podemos também notar que além das pretenções terroristas do grupo, observadores tentam explicar a implantação du grupo localmente pela insatisfação antiga das comunidades diante da centralização do poder em Maputo, ou seja, do outro lado do país (a milhares de quilômetros), e da exclusão social e económica da população de Cabo Delgado. Já tínhamos explicado, em Setembro de 2017, as clivagens profundas, políticos mas também étnicos, que conhecia o Moçambique desde a independência, em 1975 (Quais são as causas profundas das clivagens políticas em Moçambique?). Por grande parte, as etnias Macua-Lomué e Shona (Ndau em particular), localizadas no centro de Moçambique, guardaram uma grande frustração diante da dominação política dos Tsongas, no sul do país, o que exprimiu-se pela guerra civil (1977-1992) e desde então pela rivalidade eleitoral entre a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o partido que governa Moçambique desde a independência, e a Resistência Nacional de Moçambique (Renamo).
De uma certa forma, a província de Cabo Delgado constituiu uma excepção nesse esquema, pois os Makondés, que dominam o planalto à fronteira com a Tanzânia, participaram ativamente à luta da Frelima pela independência, e até o presidente da República desde 2015, Filipe Jacinto Nyusi, tal como o seu tio (e « padrinho » político) Alberto Joaquim Chipande, antigo ministro da Defesa (1975-1986) e cacique da Frelimo, são originários da etnia Makondé. (Por lembrança, contava-se em 2017 uns 360 000 falantes do makondé em Cabo Delgado, num total de 2,33 milhões de habitantes.) Portanto Cabo Delgado ainda permanece um bastião eleitoral da Frelimo, como o tínhamos visto em Novembro de 2014 (Eleições de Outubro em Moçambique: quando a democracia sai a perder). Contudo, não se pode dizer que a província de Cabo Delgado aproveitou muito desta situação política. Não deixa de ser uma das províncias mais pobres de um dos países mais pobres do planeta, isolada à fronteira septentrional, pois o governo central nunca valorizou muito os câmbios com a Tanzânia nem o desenvolvimento local ou as infra-estruturas.
Parece bem que a província só virou interessante quando confirmou-se a presença de gás na bacia de Rovuma. Pior, nem parece que este novo interesse irá a fazer-se ao benefício das comunidades locais, pois 1) a exploração de gás anuncia uma degradação catastrófica do meio ambiente costeira, até então poupado pela exploração sem limites dos recursos naturais moçambicanos (A exploração do meio ambiente: ou como Moçambique está perdendo suas riquezas naturais); 2) como já o dissemos, a chegada de investidores (moçambicanos mas também estrangeiros) na província traduz-se, não por uma melhoria das condições dos habitantes, mas sim por um açabarcamento das terras, um deslocamento dos habitantes quando é necessário, abusos diversos... Acrescentou-se um fenômeno que impactou o desenvolvimento local do terrorismo islamico: o tráfico de drogas – o qual veio integrar discretamente, mas solidamente, a província em diversas redes ilegais à escala internacional. Ainda em 2013, por lembrança, uns 600 kg de droga vinda da República democrática do Congo foi descoberta lá pela polícia moçambicana. Em 12 de Maio de 2021, muito mais recentemente, um barco de vigilência francês apanhou mais de 40 milhões de euros de heroína e de enfetaminas no litoral moçambicano. Ao longo dos anos, a região tornou-se uma placa giratória do tráfico.
Fatores sociais, económicos e políticos permitirem a essa insurreção armada de desenvolver-se, não só fatores geopolíticos. O movimento parece ter surgido num grupo social, étnico e religioso muito particular, os Mwani (ou Kimwani) entre os quais existe um sentimento de marginalização há décadas, após fortes migrações na sua região, uma falta de desenvolvimento económico, e uns vizinhos – os Makondés –, precisamente hoje em dia no poder. (Por lembrança, em 2006 em Cabo Delgado, incluindo nas ilhas Quirimbas, contavam-se uns 120 000 falantes da língua mwani, ramo do bantu mas muito influenciada pelo suaíli.) De maneira mais ou menos discreta, uma nova geração de pregadores fundamentalistas surgiu localmente, formados no Sudão, no Egipto e na Arábia Saudita a partir da década de 1990. Obviamente, o terreno estava fértil, não necessariamente para uma radicalização religiosa da juventude local, pois Moçambique nunca tinha conhecido conflitos religiosos (e até era uma terra de excepcional boa coexistência religiosa), mas sim para formas diversas de contestação das autoridades públicas, incapazes de impedir os abusos, e até às vezes à origem de violações do Estado de direito (Os desafios da democracia moçambicana (1/3): a laboriosa constituição de um Estado de direito). Os jihadistas o entenderem bem; por exemplo, foi trazido a informação seguinte: num ataque em Março de 2020 contra Mocímboa da Praia, durante o qual eles tinham pilhado comércios e destruido bancas e prédios ligado ao Estado, eles retiraram-se depois de terem distribuido dinheiro e comida aos habitantes. E esse terreno fértil releva diretamente da responsabilidade dos diferentes governos que sucederem-se desde a independência, incapazes de assegurar um verdadeiro desenvolvimento e de melhorar a vida das comunidades.
Situação da província de Cabo Delgado em Moçambique & repartição das comunidades etno-linguísticas na província.
Os desafios de soberania, ligados à questão energética e à presença de tropas estrangeiras no território moçambicano
A postura de negação das violências e as fraquezas militares do exército moçambicano tornaram a situação securitária incontrolável, e portanto o governo em Maputo tem ai uma responsabilidade notável. Já era a partir dessas fraquezas que o ramo armado da Renamo tinha entretido uma guerilha de baixa intensidade, mais ou menos entre 2013 e 2016. Elas é que justificaram a partir de 2020-2021 a chegada, pouco a pouco, de estrangeiros no norte de Moçambique, embora o governo de Maputo demorou muito tempo antes de pedir à comunidade internacional um apoio militar e logístico. Portanto, apareceu finalmente óbvio que, sem ajuda externa, as autoridades moçambicanas não poderão retomar os territórios perdidos nem impedir o progresso dos combatantes jihadistas na província.
A primeira presença confirmada de tropas estrangeiras foi com dimensão privada, ou seja, mercenários estrangeiros. Pois, em 2019, Russos estão presentes na província: em Setembro, uns 200 homens do Grupo Wagner (GW) chegam em Moçambique com helicópteros e drones. No final do ano de 2019, num contexto de alta intensificação dos ataques jihadistas, os mercenários russos sofrem de perdas pesadas, com umas dezenas de mortos. Em 2020, segundo uma fonte militar moçambicana, apoios aéreos da sociedade de segurança privada sul-africana Dyck Advisory Group (DAG) destacaram-se desde Pemba para ajudar o exército moçambicano. Em Agosto de 2020, esses mercenários intervêm tarde demais para impedir a perda de Mocímboa da Praia ao benefício dos rebeldes. Em Dezembro do mesmo ano, porém, apoiam a retomada da localidade de Mute, estratégica para a exploração de gás. Antes disso, em 24 de Agosto de 2020, Total assinou com o Moçambique um acordo com alvo proteger as instalações de exploração de gás. Este acordo, anunciado pelo grupo francês num comunicado oficial, previa a criação de uma « força conjunta », « encarregada [da] segurança das atividades do projeto [...] no sítio de Afungi e à volta ». Finalmente, o Moçambique recebeu primeiramente o apoio dos Estados Unidos de América e da África do Sul, como também do seu vizinho septentrional, a Tanzânia. Por lembrança, Maputo e Dodoma discordaram muito tempo sobre as suas responsabilidades respetivas da subida do terrorismo regional; desde Novembro de 2020, ambos conduzem operações conjuntas dos dois lados da fronteira.
Em Dezembro de 2020, o Portugal, antiga potência colonial de Moçambique (até 1975), anunciou enviar uma missão militar logística e de enquadramento. A chegada de militares portugueses foi constatado logo em Janeiro de 2021; as tropas de intervenção rápida, as forças de controlo aéreo e a defesa contra os cyber-ataques beneficiam desta formação. Pode resultar deste apoio um novo acordo de cooperação bilateral de defesa Portugal-Moçambique. Em 7 de Janeiro de 2021, o ministro moçambicano da Defesa Nacional, Jaime Neto, afirmou que o apoio que tem sido dado às forças de defesa e segurança por parceiros internacionais, a União Europeia por exemplo, já tinha permitido a recuperação de várias áreas que tinham sido ocupadas pelos insurgentes em Cabo Delgado, incluindo o porto de Mocímboa da Praia.
Na mesma altura, portanto, a França, país particularmente em causa no dossier do gás, também propôs formar e treinar os militares locais. Por lembrança, Paris dispõe de forças no sul do oceano Índico, nas ilhas de La Réunion e Mayotte em particular. O governo francês quer também levar os outros países europeus a enviar um apoio para resolver o conflito. Em 15 de Junho de 2020, um relatório (Do eldorado gazeiro ao cao. Quando a França empurra o Moçambique na ratoeira) da ONG Les Amis de la Terre denunciou o duplo discurso de Paris sobre a crise securitária no Moçambique. A relação franco-moçambicana construiu-se notavelmente com base contratos muito lucativos para empregas francesas, com a comanda às Construções mecánicas de Normandie (propriedade de Iskandar Safa, franco-libanês, a través a holding Privinvest) de 24 barcos de pesca e de 6 návios militares. Se a compra contribui à « recuperação económico » encorajada na sua altura por François Hollande, virou ao escândalo de Estado e à catástrofa financeira em Moçambique – havemos de voltar neste ponto mais longe. Enfim, o relatória denuncia o fato que o apoio da França à indústria do gás acentua a militarização do país e pode ter impactos péssimos sobre a população moçambicana e a situação do Estado, no longo prazo. Após do ataque sobre Palma em 2021, dois países ocidentais que tinham enviado contingentes de conselheiros militares, anunciaram em Abril fortalecer o seu dispositivo: o Portugal enviou então uns 60 homens ao lado dos que já trabalhavam com a polícia; os Estados Unidos também, os quais já tinham enviado uns conselheiros.
Do lado da África, a reação demorou-se bastante, até muito recentemente. A União Africana (UA) exprimiu-se em Julho de 2020 para reclamar uma intervenção da Comunidade de Desenvolvimento da África austral (abreviado em inglês por SADC), na qual é membro o Moçambique. Em 7 de Abril de 2021, na véspera de uma cimeira extraordinária da organização regional SADC sobre a crise humanitária e securitária no Cabo Delgado, o presidente Nyusi exprimiu-se assim: « Os que vêm do estrangeiro não serão aqui para nos substituir, vêem em apoio. Não se trata de um qualquer orgulho, mas de soberania. » O chefe do Estado lembrou assim a sua posição desde o início da crise: nenhuma bota estrangeira no território nacional. Dai, a aceitação de apenas uns helicópteros de sociedades de segurança privadas sul-africanas ou ainda a formação de forças especiais por parceiros estrangeiros, como os Estados Unidos e o Portugal. Quanto à SADC, a organização regional conhece pressões importantes, inclusive da União Africana, para preparar uma intervenção com alvo a destruição do grupo terrorista, solução recusada até então por Maputo. A Tanzânia e a África do Sul em particular aparecem muito preocupados pela situação em Cabo Delgado, por motivos humanitários, de segurança, mas também económicos.
Bom sinal recentemente conhecido: em 23 de Junho passado, finalmente, a SADC confirmou o envio de soldados da sua Força ao norte de Moçambique, enquanto combates ainda tinham lugar em Palma, e em 29 de Junho, a organização anunciou para isso mobilizar uns dez milhões de euros. Em consequência, em 15 de Julho, um acordo entre o Moçambique e os seus parceiros regionais da SADC foi assinado, prevendo o envio de mais de 3 000 soldados para assistir o exército moçambicano – em tarefas periféricas essencialmente, primeiramente. No âmbito deste acordo, a África do Sul anunciou, em 28 de Julho, que enviava em Moçambique 1 495 militares, que devem juntar-se a soldados do Botswana e do Rwanda já presentes em Cabo Delgado. Pois o Rwanda, o qual não faz parte da SADC, tem desde o 9 de Julho uns mil homens na região, e, aliás, tomou, há umas semanas, a cidade estratégica de Awasse. Apoiado pelos Ruandeses, as forças armadas moçambicanas até retomaram, em 8 de Agosto, há dois dias, a localidade costeira de Mocímboa da Praia. Enquanto em Julho, o número de deslocados ultrapassou finalmente 800 000 pessoas, o número de mortos 3 000, o presidente moçambicano aceitou então a presência de tropas estrangeiras em Cabo Delgado. A presença ruandese, cujo próprio princípio é visto como uma mudança estratégica importante na diplomacia deste pequeno país da África de Leste, alimentou, quanto a ela, muitos comentários. « What does Rwanda stand to gain from its Mozambique deployment? » interroga-se o website de informação moçambicano Zitamar News: « [...] perguntas subsistem sobre o financiamento da intervenção – pelo menos sobre as contrapartidas que recebe o Rwanda. As Forças ruandeses de defesa dizem que elas se autofinançam, mas pouco observadores ruandeses o acreditam, sabendo que o Rwanda é um dos países os mais pobres do mundo. » A principal hipotese implica a França, que procuraria a assegurar a segurança dos projetos de gás de Total, sem no entanto envolver diretamente tropas franceses.
A presença estrangeira crescente questiona claramente a realidade da soberania moçambicana, num país que, no plano económico, já tornou-se recentemente dependente das instituições internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), no contexto da revelação do escândalo das dívidas ocultas. Por lembrança, o Moçambique conhece desde 2015 uma crise económica importante, dados o aumento considerável da dívida pública, mas também a queda de uma produto de exportação estratético para o país, ou seja, o carvão. O caso de Ematum é particularmente interessante, porque ilustra, tal como na de Rovuma, a confusão entre as questões de segurança e económicas. Por lembrança, em 2013, sob a presidência Guebuza, enquanto Filipe Jacinto Nyusi era ministro da Defesa, o Moçambique exprime o desejo de constituir uma armada de návios de pesca e sobretudo de barcos de segurança e de vigilância costeira. O abastimento em termos de equipamento e de armas é precisamente suposto vir da França. O objetivo era então obter um financiamento por emprestos bancários. Para isso, uma empresa privada detida por agentes do Estado, Ematum, é criada; ela é que deve receber o essencial dos 2,2 bilhões de dívida contractada para este programa de construção marítimo, ou seja, 850 milhões de dólares... Além da explosão da dívida pública moçambicana, que justificará a volta da FMI em Maputo, nunca se saberá o que foi feito de 500 milhões de dólares, nos 850 levados. Desde então, a comunidade internacional assumiu as pressões contra o Moçambique para esclarecer este caso e reclamar respostas diante desta dívida oculta, que coloca o povo moçambicano numa situação orçamental difícil – por lembrança, o antigo ministro das Finanças Manuel Chang é detido na África do Sul desde 2018. Em 2019, até o próprio Tribunal constitucional de Moçambique declarou nula e fora de proposto a dívida ligada a Ematum. Para ir mais long sobre a crise económica moçambicana, ver este artigo de Fevereiro de 2017: Em Moçambique, o governo incapaz frente à crise económica
Além da única presença de tropas estrangeiras, nota-se a pressão das empresas estrangeiras, a francesa Total por exemplo, sob Filipe Jacinto Nyusi, para assegurar a segurança necessária à exploração de hidrocarboneta em Cabo Delgado – como já foi dito, em 2021 Total evacuou o seu pessoal do sítio de Afungi, ameaçado de incursões. Obviamente, o que aparece, é que as questões energéticas são privilegiadas à problemática humanitária. Por lembrança, em Julho de 2020, o grupo francês anunciava a assinatura de um acordo de financiamento de mais de 13 bilhões de euros para o exploração das reservas offshore de gás. Por trás, escondem-se também os interesses dos Europeus em geral, para quem o projeto de exploração em Cabo Delgado inscreve-se numa estratégia global de diversificação das fontes de abastecimento em gás. Em 18 de Janeiro de 2021, o presidente moçambicano até recebeu o presidente diretor geral (PDG) de Total, Patrick Pouyanné, em Maputo, para assegurar-lhe que tudo seria feito para assegurar a área. Por lembrança, o acordo assinado entre Moçambique e a SADC em 15 de Julho passado tem como objetivo principal, não de libertar e assegurar as aldeias e comunidades vítimas do terrorismo, mas sim, de criar uma área de segurança à volta de Afungi para permitir a Total de continuar o projeto de exploração do gás.
O futuro de Cabo Delgado em suspenso
Com os eventos que conhece a província de Cabo Delgado desde 2017 constatou-se rapidamente: 1) que o exército moçambicano, tal como com os confrontos contra os soldados da Renamo, mostrou-se incapaz de reprimir este movimento insurrecional; 2) que uma das principais consequências dessa guerra é, mais uma vez, o deslocamento de milhares de camponeses moçambicanos, fenômeno onde ainda observa-se uma ausência óbvia do Estado moçambicano (o qual negou durante meses o acontecimento de atos de violências na província septentrional); 3) que mistura-se aqui assuntos ligados apenas à segurança, mas também à soberania do Estado moçambicano, dado que a província moçambicana é precisamente aquela onde é previsto a exploração de gás na bacia do Rovuma; 4) e embora trata-se apenas de um grupo local, treinado e equipado para actos de sabotagem e banditismo, esta guerrilha representa uma ameaça verdadeira sobre a paz e a coexistência pacífica das religiões em Moçambique.
Provavelmente, a resposta à crise securitária em Moçambique necessitará uma coordenação com os outros países de África oriental e austral, em particular os que são afectados pelo terrorismo islâmico há anos: a Tanzânia, mas também o Quênia e a Somália em particular. Contudo, obviamente, uma solução militar não bastará para resolver o problema das violências em Cabo Delgado, nem resolverá os próprios abusos do exército moçambicano localmente. Os grupos rebeldes aproveitam de um sentimento de injustiça e de raiva, fortalecido pela presença de recursos como o rubi e o gás. Seria preciso investimentos para criar infra-estruturas, empregos e esperança na região, e assegurar o Estado de direito que é suposto proteger os cidadãos dos abusos da administração e sobretudo dos interesses económicos (moçambicanos e estrangeiros).
O povo moçambicano sofre, particularmente em Cabo Delgado. Os próximos meses serão determinante para o futuro da província, que pode tornar-se um novo no man's land, ou zona cinzenta, da África de Leste, com uma instabilidade crônica. Mesmo com uma volta da paz, a realidade da exploração de hidrocarbonetas e mineira não permite ser muito optimisto sobre o destino das comunidades locais. Por enquanto, há uma urgência humanitária, que não é suficientemente tratada pelo governo moçambicano, como teve a ocasião de o exprimir, ao próprio presidente Nyusi, um cidadão de Cabo Delgado, em Outubro de 2020, como podem ver neste link. A várias ocasiões, Moçambicanos por todo o país tiveram ocasiões de exprimir a sua solidariedade em relação às vítimas do conflito em Cabo Delgado, como o ilustrou a campanha de 2019-2020 nas redes sociais em Internet, lembrando por fotografias que « Cabo Delgado também é Moçambique » (um hashtag até foi criado para isso), ou ainda a Campanha Nacional de Solidariedade por Cabo Delgado que tem por alvo de recolher ajuda e comida, em particular ao benefício dos deslocados. Os Moçambicanos já mostraram a várias ocasiões, durante as guerras sucessivas desde 1960 e até durante a colonização, a sua incrível resiliência, e ainda estão o ilustrando com essas formas de solidariedade, evitando cair na tentação de uma guerra das religiões, num país povoado entre 20% e um terço da população por muçulmanos (concentrados nas províncias de Niassa, Cabo Delgado, Nampula e Zambézia, onde vivam também muitos cristãos). Pelo contrário, a coexistência pacífica das fés e a sua diversidade constituem uma das riquezas deste grande país de África austral, que parece nunca conhecer uma paz duradoura. Desejamos força e corajo aos Moçambicanos e Moçambicanas que sofrem do conflito atual, e cuja a situação é agravada pela incapacidade do governo para conter as violências e trazer de volta a paz e a tranquilidade.