Eleições do 4 de Outubro em Portugal (3/3): atrás das manobras políticas, uma revolução das clivagens partidárias?
Portugal conheceu mudanças profundas desde a independência das colônias africanas (1974-1975), a proclamação da nova Constituição (1976) e a adesão às Comunidades europeias (1986). Mas as conquistas sociais básicas sofreram muito da austeridade orçamental imposta pelo governo português desde o início da crise. E no entanto, a reação do povo foi muito fraca, a pesar de cartas protestos (manifestações, greves) estes últimos anos. Portugal mostrou uma grande docilidade quando voltou a dar, em Setembro de 2009, em Junho de 2011 e em 4 de Outubro passado, uma maioria aos partidos que conduziram o país à situação atual. E no entanto, algo mudou após estas eleições, isso só por causa duma manobra política do Partido socialista.
Se os observadores declararam unanimemente a lista única dos dois partidos de direita vitoriosa em Outubro, alguns notaram que a esquerda, juntando o Bloco de Esquerdo (BE), a Coligação Democrática Unitária (CDU) que inclua o Partido comunista e os Verdes), e o Partido socialista, tem uma maioria de deputados no Parlamento. Esta observação podia parecer inútil, pois a clivagem política portuguesa não se baseia tradicionalmente sobre a dicotomia direita-esquerda, mas sobre a aceitação ou a rejeição das políticas impostas pelos credores internacionais.
A abstenção foi enorme (44,14% dos eleitores), o que revela um desinteresso crescente dos Portugueses pela política. No entanto, o resultado parecia claro: era uma vitória dos partidos favoráveis ao respeito das acordos financeiros impostos pela Troïka – termo usado em Portugal para designar o Fundo monetário internacional (FMI), o Banco central europeu (BCE) e a Comissão europeia –, ou seja, o Partido socialista (PS) no centro-esquerdo, o Partido social-democrata (PSD) e o Partido popular (PP), na direita. Este « bloco central » recolheu a maioria dos votos e, como sempre, uma grande maioria de deputados – apesar dum modo de eleição (proporcional, de lista) bem favorável às formações menores. Para voltar ás raízes do espírito de submissão do povo português: Eleições do 4 de Outubro em Portugal (2/3): a cultura da submissão permanece
Além disso, no início da campanha eleitoral, quando as pesquisas ainda previam o seu sucesso, o líder socialista, António Costa, pensando a vitória assegurada, distanciou-se claramente da extrema-esquerda, chamando a penas a reduzir a pressão da austeridade, para criar a ilusão de uma clivagem com o PSD e o PP. Á final, ele acabou perdendo esta eleição, chegando depois da lista comum PSD-PP. Mas dai, as manobras políticas do Partido socialista, que ainda pretendia governar, permitiram mudar de Primeiro ministro PSD. Voltamos então sobre esta sequência política, que, depois de anos e anos de austeridade orçamental, está mudando as clivagens partidárias em Portugal.
Em Lisboa, a questão do habitacional é caracterizada pela existência de muitos prédios inocupados e que os proprietários deixam cair a baixo.
Podem as negociações entre partidos de esquerda mudar as relações partidárias?
Agora, a vida política portuguesa está afetada pelo facto do Partido socialista ter negociado uma aliança com o Bloco de Esquerda e a CDU, pela primeira vez desde que existe a Constituição de 1976. O objetivo principal era evitar que a direita permaneça no poder. No entanto, os Portugueses não manifestaram, pelo voto do 4 de Outubro, uma oposição clara á austeridade orçamental, muito pelo contrário. Não há dúvida de que por trás dessa manobra política, escondem-se as ambições de António Costa (PS), mais do que a vontade sincera do Partido socialista de acabar com a austeridade. O perdedor das eleições quer aproveitar da configuração do Parlamento para alcançar o poder. Tal aliança teria como vantagem, teoricamente, de acabar com a austeridade e suas consequências trágicas, e moveria as linhas partidárias, em um país onde elas são tão imóveis. O jornalista Daniel Oliveira aplaudiu, em 26 de Outubro, no Expresso (um diário online), « a novidade [do Partido comunista e do Bloco de Esquerda] terem decidido passar a participar no jogo de poder », e criticou a direita, para quem « é ilegítimo que os representantes de um milhão de Portugueses participem em soluções de poder ». No entanto, em termos democráticos, esta nova aliança concluída pelo PS é muito questionável porque este não a anunciou antes das eleições, e até a considerou como improvável. Se a direita, sozinha, não ganhou a eleição do 4 de Outubro, no entanto, o PS a perdeu, claramente, e os seus eleitores não votaram para o partido aliar-se com formações anti-austeridade.
Oposto a essa nova e improvisada união da esquerda portuguesa, o presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, reconduziu o Primeiro-ministro na sua carga. Mas dia 10 de Novembro, o governo de coligação da direita foi posto em minoria na Assembleia, com 123 votos oposto à sua recondução, num total de 230 deputados. A ironia da história é, sem dúvida, essa: sem maioria absoluta, Pedro Passos Coelho encontra-se na mesma situação que seu antecessor socialista, José Sócrates, vencedor das eleições de 2009, mas que teve que demitir-se em 2011 por causa da oposição da direita porque ele não tinha uma maioria absoluta. O jornalista Daniel Oliveira continua assim, no seu artigo de Outubro: « O que o PSD e o [Partido popular], em minoria no Parlamento, disseram foi isto: os deputados do PS tinham o dever de votar no candidato do PSD e não, como fizeram, no candidato do seu próprio partido. Estranho, não é? »
Certamente, esta aliança da esquerda não vai realmente beneficiar às formações de extrema-esquerda, e isso pelo menos por duas razões. Em primeiro lugar, porque os três partidos anti-austeridade, Os Verdes, o Partido comunista e do Bloco de Esquerda, não irão ocupar um ministério. Em segundo lugar e sobretudo porque, de facto, a Troika pode ficar confiante, pois o Partido comunista e o Bloco de Esquerda concederam, no acordo de coalizão, não reclamar oficialmente um abandono dos « compromissos europeus e internacionais ». Não haverá um questionamento da política monetária do Banco Central Europeu ou dos fundamentos da austeridade fiscal, e ainda menos uma renegociação da dívida pública portuguesa. O PS, em 10 de Novembro, anunciou um programa de governo que marca uma ruptura com o governo a sair: fim do gelo das pensões no dia 1 de Janeiro, aumento do salário mínimo para 530 euros em 2016 (será efectivo logo em 1 de Janeiro) e 600 euros em 2019, remoção de uma sobretaxa de 3,5% sobre a renda entre 2016 e 2017, fim dos cortes sobre os salários dos funcionários públicos, restauração dos 4 dias feriados que tinham sido suprimidos pela direita (dois dias celebrando algo católico, um outro a Restauração da Independência em 1 de Dezembro de 1640, e o último implantação da República em 5 de Outubro de 1910), permanência de subvenções a associações de saúda, etc. Tudo isso, insiste António Costa, com um défice orçamental estabilizado a 2,7% do PIB em 2016.
O chefe de Estado ainda podia reconduzir Pedro Passos Coelho na liderança governamental, no âmbito de um executivo de gestão, enquanto os Portugueses aguardavam a organização de novas eleições legislativas, que no entanto só podem ser realizadas em Junho de 2016. Esse cenário teria tido a vantagem de voltar a dar as cartas nas mãos dos Portugueses, desta vez com o conhecimento de uma aliança possível entre o Partido socialista e a extreme-esquerda. Cavaco Silva aceitou finalmente de nomear António Costa como Primeiro-ministro. Abra-se um tempo de incerteza governamental em Portugal – era provavelmente inevitável com uma tal ausência de maioria no Parlamento. A extrema esquerda prometeu não apresentar uma moção de censura, o que deveria assegurar a António Costa uma certa estabilidade, pelo menos durante alguns meses; mas ela demorou a pronunciar-se sobre a questão crucial do Orçamento do Estado para 2016. Uma situação que podia trazer novas discussões entre as « esquerdas » portugueses. Certas tensões irão a aparecer no novo Parlamento, que poderia, isso é bem possível, não acabar o seu mandato até 2019. No início deste mês, Jerónimo de Sousa explicava: « Tendo em conta que é um governo do PS, a sua política determinará a durabilidade do seu governo. » E o Secretário geral do Partido comunista português acrescenta: « Se o governo governar ao serviço e a favor dos trabalhadores, dos reformados e pensionistas, dos pequenos e médios empresários, de todos aqueles que sofreram do flagelo desses quatro anos de governação [de direita], naturalmente, nós estamos a crer que consegue o seu objetivo, e que se inscreva, aliás, na posição conjunta do PS com o PCP. »
A orientação social do governo socialista: será o fim dos anos de austeridade?
Primeira medida, prometido já antes da eleição do 4 de Outubro pelos quatro partidos da esquerda: a supressão de uma taxa moderadora de 7,75 euros (adoptada em 2015 e ainda não aplicada) para as mulheres que abortem até às dez semanas da gravidez. E segunda medida da maioria PS-BE-CDU, em 20 de Novembro passado: o direito dado aos casais homossexuais a adoptar – o casamento entre pessoas do mesmo sexo já tinha sido votado pela Assembleia em Janeiro de 2010. Logo no 24 de Novembro, a lista dos 17 ministros já era conhecida; só conta 4 mulheres, nas quais a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, a primeira mulher negra a ocupar uma tal carga em Portugal. A fiscalidade parece ser uma prioridade do novo executivo, com várias reformas previstas: o estabelecimento de uma progressividade ao Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) e de uma cláusula de salvaguarda para evitar subidas bruscas; o reforço da progressividade do Imposto sobre o Rendimento de pessoas Singulares (IRS) e uma reforma do Quociente familiar ligado ao IRS; a criação de uma nova prestação social, o Complemento Salarial Anuel, um tipo de « crédito fiscal » (ou « imposto negativo »), para ajudar os trabalhadores precários a passar acima da « linha » de pobreza; uma diminuição da IVA sobre a restauração de 23% para 13%; o estabelecimento de um sistema de incentivos à instalação de empresas e ao aumento de produção das zonas no interior do país; a adopção de medidas limitando o risco de penhoras quando se trata da casa que serve de residência principal à família endividada; a criação de um imposto sobre heranças de elevado valor; a redução das inspecções tributárias sucessivas (e das coimas por frauda fiscal consideradas como excessivas) a contribuintes particulares e a pequenas e médias empresas; etc.
Os desafios são enormes. Um dos temas mais « quentes » é o da TAP : a transportadora aérea nacional portuguesa foi privatizada, naquele que foi um dos últimos atos do governo de Passos Coelho, justificado com o argumento de que era « urgente » para a empresa, que podia estar em risco de não poder pagar salários; o facto é que a privatização foi feita num mandato que já estava a prazo, o que valeu algumas críticas. O consórcio Gateway já injetou 150 milhões de euros na empresa, isto quando assumiu o controlo de 61%. Costa insiste sobre o fato do Estado ter que manter-se com uma maioria do capital. O Jornal de Negócios sugere que poderá haver renegociação – o consórcio Gateway ficaria com 49% mas também com a gestão. E à final, parece que Costa conseguiu um acordo e que o Estado vai ficar com a maioria da TAP.
Outro desafio do novo executivo, no setor bancário, há três bancos em particular a reter: CGD; Novo Banco, que apresenta graves necessidades em recapitalização (de 1.400 milhões de euros) e deve ser reestruturada; e Banif, que é objeto de uma investigação de Bruxelas sobre o uso de ajudas estatais já recebidas (de 1,1 milhão de euros), e que o Banco de Portugal vai salvar injetando 2,3 bilhões de euros (decisão tomada em 23 de Dezembro) – uma ajuda rejeitada pela extreme-esquerda. Coloca-se, enfim, o desafio do Orçamento do Estado para 2016. Para reduzir o déficit para a meta pretendida em 2016 e ficar em baixa dos 3% do PIB exigidos por Bruxelas, o governo deve conseguir sair, em 2016, 1.800 milhões de euros a mais do que no ano 2015, ou por medidas de poupança, ou por novas receitas. Um objetivo que vai ser complicado pelas promessas eleitorais, e pelo apoio indispensável (e condicionado) da extreme-esquerda no Parlamento. Por enquanto, medidas tipo o (pequeno) aumento das pensões mais baixas (irá beneficiar a mais ou menos 2 milhões de pessoas) e a revisão progressiva dos cortes de salários dos funcionários daqui Outubro de 2016, unem as esquerdas, mas por quanto tempo? Por exemplo, a volta aos 35 horas de trabalho por semana na função pública (contra 40 horas em 2015) será votado daqui a pouco: no entanto, segundo a extrema-esquerda, a medida deve ser efetiva logo que seja aprovada, enquanto o Partido socialista, por razões orçamentais, quer ver a sua aplicação adiada para o Primeiro de Julho de 2016. Divisões deste tipo podem ser ultrapassadas, mas ilustram também diferenças de prioridades. Num Partido socialista gestionário, ainda fica complicado lidar com as exigências da extreme-esquerda.
A comissão europeia já está reclamando, e aliás era bem previsível: a ideia que fica é que o programa de ajustamento da Troika parece ter ficado a meio ou até regredido, e a Comissão entregará ao governo português, no final de Janeiro, uma lista de 18 pontos de estrangulamento do investimento empresarial que precisam, segundo ela, de ser resolvidos de forma urgente: tipo uma facilitação do despedimento de salariados no setor privado (os « regimes de licenciamento »), uma revisão da burocracia dos licenciamentos comerciais (considerada de labiríntica), uma simplificação do sistema de impostos sobre as empresas (médias e pequenas sobretudo), ou ainda a liberalização do setor portuário ou da grande distribuição e retalho (onde falta novos concorrentes, segundo Bruxelas). Além disso, a Comissão europeia exprima dúvidas sobre a sustentabilidade das contas públicas portuguesas (o déficit excessivo e a dívida), e ai poderão aparecer, com a visita da Troika no final de Janeiro, as primeiras contradições dum Partido socialista que quer assumir o papel de equilibrista, tanto aliado à extreme-esquerda como também na continuidade da cooperação com os credores estrangeiros. Havemos de observar como este governo há de sair dessa.
« O que a esquerda teve que fazer para chegar ai »
Isso era mais ou menos um dos títulos do quotidiano Público em 25 de Novembro, depois da nomeação de António Costa a carga de Primeiro ministro. Público insistia sobre o caráter original da situação: « Há um mês e meio iniciaram-se discussões inéditas. Assim é que António Costa (PS), Jéronimo de Sousa (PCP) e Catarina Martins (BE) ultrapassaram quarenta anos de divergências e assinaram um compromisso que, segundo eles, será sustentável. » O jornal sublinhava também a juventude e a perícia das equipas que negociaram « no maior segredo » este acordo histórico.
Muitas vozes denunciando um golpe palaciano, nas mídias ou por internet, sublinharam o caracter ilegítimo da aliança socialista com a extreme-esquerda. E esta crítica é justa e relevante. O deputado Manuel Frexes (PSD) declarava, em Novembro passado, que o derrube do Governo PSD-PP para « forçar » outro, « sem ter ganho eleições, é uma das mais graves subversões democráticas a que os portugueses estão a assistir ».
No entanto, ao longo termo, essa manobra política pode redistribuir positivamente as cartas partidárias no país, pela menos por duas razões: primeiro porque acaba com um tabu dentro do Parti socialista, que nunca quiz aliar-se com a extreme-esquerda (claro, teríamos preferido que António Costa anuncie essas intenções antes das sondagens de votos do PS irem para baixa, em Setembro); e em segundo lugar porque um acordo de coligação entre socialistas e esquerda radical pode talvez dar crédito, à opinião pública, ao discurso e às ideias de extreme-esquerda. O exemplo da França o mostra bem: enquanto o discurso securitário e anti-imigrantes do principal partido de direita ajudou a banalizar as ideias da Frente nacional (extrema-direita), à esquerda, pelo contrário, a perda de valores do Partido socialista e o abandono das promessas sociais iniciais fez perder à esquerda radical o seu crédito frente à opinião pública, porque parece agora ser só uma malta de idealistas revolucionários, incluído quando as suas ideias são justas ou relevantes.
Talvez em Portugal se observará o fenômeno inverso, mas isto, só o futuro poderá o dizer. Na Espanha vizinha, se observa umas negociações similares, dado que o Partido popular (direita) foi, nas eleições do 20 de Dezembro, o partido mais votado, mas está longe de ter uma maioria absoluta; da mesma forma, o PSOE (socialistas) chegaram em segunda posição, mas com um resultado relativamente fraco, por isso talvez se verá, ao longo das difíceis discussões políticas, uma coligação larga de esquerda incluindo a extreme-esquerdo (Podemos, Izquierda Unida), e talvez também Ciudadanos (centro-direita) ou partidos regionais. Se este cenário se concretiza – mas podemos também chegar a ver novas eleições legislativas em 2016, simplesmente –, será assim similar ao português, mas com mudanças e transformações muito maiores da vida política, com a entrada em força de dois novos partidos (Podemos e Ciudadanos): um Parlamento fragmentado (onde o PSOE e o PP fazem, juntos, apenas 50,73% dos votos), e a formação de uma larga coligação improvisada para impedir a direita ao poder de continuar suas políticas de rigor. Em Portugal, apesar da coligação excepcional que criou-se em Outubro, a resultado junto dos três partidos tradicionais (PP, PSD e PS) foi em 4 de Outubro passado de... 70,9% dos votos. A diferença entre Espanha e Portugal está ai: o establishment conheceu, em Espanha, uma bafada bem maior.
Em 25 de Julho de 1974, foi preciso um golpe do exército e de capitães militares para conduzir os Portugueses a sair à rua para fazer a Revolução; desta vez ainda, foi preciso um golpe, um « golpe palaciano » para forçar a vida política portuguesa a fazer a sua revolução. O povo português ficou bem decepcionado depois da Revolução dos Cravos, e isso foi ilustrado, dia 25 de Julho de 2014, pela timidez das comemorações dos 40 anos da queda da ditadura. Desejemos aos Portugueses, esforçados pelas manobrinhas do PS, que essa experiência política traz uma certa melhoria das suas condições de vida e uma interrupção das medidas de austeridade às quais eles são submetidos à tantos anos.
Na parte Leste da capital portuguesa, o bairro do Parque das Nações, criado numa zona industrial em declínio para acolher a Expo 98 sobre « o oceano, futuro da humanidade », devia símbolizar o desenvolvimento da cidade, à entrada do século XXI. Atual sede de vários pólos econômicos e financeiros, presenta várias originalidades arquiteturais, às vezes de estílo futurista.