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O acendedor de lampiões

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

2 Juillet 2017 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #África, #Género, #Sociedade

É a história trágica de uma menina sem história. A história de Zeynab, 15 anos de idade e que morava em Arafat, um bairro periférico de Nouakchott, capital da Mauritânia. A história de uma vítima no auge da vida, que foi comprar hortelã para a mãe dela por volta das 15h, e que foi levada por força por três pessoas sob a ameaça de facas. É a história de uma violação (ou estupro em português do Brasil) coletiva, como infelizmente acontece com frequência na Mauritânia. Trazida inconsciente para casa ao anoitecer por três pessoas, duas delas vestidas com uniforme de polícia – provavelmente os seus agressores –, a criança só testemunhou quando acordar, uma vez no hospital.

A história da Zeynab, relatada no portal de notícias online Cridem em 31 de Agosto de 2016, é a das mulheres mauritanas, vítimas de uma explosão das violências contra elas nos últimos anos. Lembramos que a criminalização da violação está num vácuo jurídico na Mauritânia, e de fato não é aplicada. No entanto, os atores da sociedade civil tentam apreender o assunto e apoiar as vítimas. Qual é a realidade desse assunto, e como explicar essa situação com tantas tragédias acumulando-se?

Apresentados como anedóticas pela imprensa mauritana, histórias desse tipo se multiplicaram nos últimos anos. Esse fenômeno deveria alertar e mobilizar todos os tipos de atores, pois a violação, constitui um ato de violência incrível que facilmente impacta em toda a vida das vítimas. Além de representar uma ameaça perpétua para todas as mulheres. Só pegar o táxi quando anoitece já torna-se arriscado, especialmente nas zonas periféricas da capital.

Uma certa conscientização parece ter surgido nos últimos anos. Dois eventos principalmente, vierem acordar as consciências. O primeiro é o sequestro de Penda Sogue num táxi, violada e assassinada na noite do 27 ao 28 de Março de 2013. Retornando da casa da sua irmã no município (Moughataa) de Teyarett até o bairro Sexto (município de El Mina), essa jovem esposa de vinte anos e mãe de uma criança de três anos foi raptados por três homens que, ao que parece, já tinha atuado de forma similar, usando para isso de um táxi. Três suspeitos foram rapidamente presos num estado de forte consumo de droga, no veículo deles, onde foi encontrado o bilhete de identidade da vítima. Uma rapariga até testemunhou que escapou a essas pessoas na véspera do crime. Finalmente, o corpo mutilado de Penda Sogue foi encontrado o dia a seguir no bairro de Tarhile, com marcas de violação, olhos rasgados, membros e pescoço deslocados, uma faca embutida no crânio e saindo para fora do pescoço.

Em 3 de Abril a seguir, foi realizado uma marche para denunciar as violações e as violências contra as mulheres, e para reclamar à Justiça que sentencie os suspeitos à prisão à vida, e às autoridades que fazem aplicar o registro dos táxis.

O segundo eletrochoque ocorreu o mesmo ano, em 27 de Outubro. É o caso de Kadji Touré, somente seis anos de idade, ainda nos arredores de Nouakchott. Desaparecida aquele domingo a volta das 10h da manhã, o corpo dela, conhecida como Yaye no seu bairro de Kouva, é encontrado sem vida, umas horas depois na praia, perto do hotel Ahmedi, com marcas de violação. Que nem com Penda Sogue, as manifestações sucederem-se os dias a seguir: um sit-in pacífico frente à presidência em 31 de Outubro, uma marche Stop à violação entre o Ministério do Interior e o Palácio de Justiça em 5 de Novembro, etc. Mas poucas mudanças ocorrem, especialmente do lado das autoridades.

Sit-in organizado pela iniciativa eTkelmi frente ao Ministério da Justiça, para reclamar medidas políticas em favor da criminalização da violação em Mauritânia (18 de Fevereiro de 2015, Nouakchott).

Sit-in organizado pela iniciativa eTkelmi frente ao Ministério da Justiça, para reclamar medidas políticas em favor da criminalização da violação em Mauritânia (18 de Fevereiro de 2015, Nouakchott).

Desde então, as histórias horríveis tornaram-se frequentes nos mídias, e em particular nos sites de notícias online. A violência parece estar aumentando, e o sentimento de segurança permanece demasiadas vezes inacessível a muitas mulheres e raparigas. Podemos mencionar, por exemplo, o caso da pequena Zineb Mint Abdellahi, dez anos de idade, raptada enquanto ela ia à escola corânica, antes de ser violada e queimada até a morte, em Dezembro de 2014 no município de Arafat, ainda em Nouakchott. Seriamente ferida após suas queimaduras, ela sucumbiu quando chegou ao hospital. Dois suspeitos foram presos. Foram condenados à morte em Julho de 2015 – a pena de morte não foi aplicada na Mauritânia desde 1987 (com excepção os eventos de 1989-1991).

Mais recentemente, em 11 de Fevereiro de 2016, Roughaya Mint Ahmed, oito anos de idade, foi encontrada enforcada no município de Arafat, depois de ter sido violada. Seus atacantes não foram encontrados. Oito dias depois, em 19 de Fevereiro, mais um caso no município de Riyad, ao nível do bairro de PK 8: uma menina de sete anos foi descoberta, inanimada e sangrando, em uma concessão abandonada. Apesar dos testemunhos de vizinhos, o principal suspeito não foi preocupado. Alguns afirmam que ele tem relações na delegacia de polícia de Riyad 2, ou que outros têm medo de retaliação.

Em todos os casos, as forças de segurança são geralmente ausentes em relação aos casos de violação. A proliferação dos casos de violências atesta que, desde Penda Sogue e Kadji Touré, muito poucas coisas mudaram. E isso, porque as razões são muito mais profundas.

Uma questão de sociedade que leva outras

Fato raro o suficiente para ser sublinhado, o Tribunal penal de Nouakchott condenou quatro ex-agentes mauritanos da Segurança da estrada (GSSR) em 18 de Março de 2014, a dois a sete anos de prisão firma para a violação, no final de 2013, de uma garçonete senegalesa num restaurante de Nouakchott. Essa agressão provocou uma série de manifestações em Novembro e Dezembro de 2013 contra a violência contra as mulheres e para exigir justiça. Mas é claro que em geral, as histórias de violação são muitas vezes ignoradas. E aquelas que são mediatizadas, aquelas que chocam a opinião, que provocam marches, que suscitam condenações e a compaixão aparente de líderes políticos ou religiosos, são as que acompanham-se de um assassinato e de tortura. O testemunha da mãe de Zineb Mint Abdellahi, relatado no documentário « Nem consentido, Nem provocado » (Ni consenti, Ni provoqué), do realizador Abdellahi Dia, em 2014, é edificante a esse respeito, quando, em lágrimas, ela diz: « O crime de violação teria sido suficiente, mas foi preciso que a matam ». De maneira dramática, a violação basta raramente a provocar uma indignação geral. Porque essa questão permanece tabu no país, e uma fonte de humilhação para a mulher vítima e sua família. Sem esquecer que as histórias de violação levantam às vezes interrogações sobre o modo de vida e a atitude da vítima: que fazia ela fora da casa à noite? Como estava vestida? O que ela fez que levou um homem a violá-la?

Pior, a própria atitude dos homens é às vezes justificadas, sob o pretexto que seria para eles uma « doença » (termo usado por muitos mauritanos), que eles seriam incapazes de controlar-se, e que portanto seria bom que a mulher se protegesse e evitasse sair à noite para evitar os riscos. Indo além, pode-se dizer que as mulheres provocam, puxam um pouco os homens a violá-las, desfilando diante deles. Os argumentos que desculpem a violência e o assédio parecem ainda mais absurdos porque muitas violações envolvem raparigas menores, ou mesmo crianças, sobre quem mal se pode supor que a sexualidade desenfreada as levou a sair « provocar » homens adultos.

Se a questão da violação é tão evitado no dia ao dia, devemos buscar as causas profundas no lugar das mulheres e a percepção da sexualidade na sociedade mauritana – o que analisamos num artigo de Abril de 2017 chamado: Entre submissão e manipulação social: qual é a condição das mulheres na Mauritânia?

No caso do casamento: em muitos casos, esse não deve só constituir a expressão de sentimentos de amor, mas também a concepção que a família e os próximos fazem-se de um « bom casamento » (com uma « boa família », com um homem pelo menos da mesma casta ou nível social, com um homem da mesma comunidade, etc.). Embora isso pode ser um pouco menos verdade com gerações mais jovens, a persistência de uma forte endogamia comunitária e social demostra uma influência ainda forte da tradição, dos antigos, da família. Quando não se trata até das questões financeiras que entram em conta. Tudo isso revela uma concepção sobretudo funcional do casamento, que fecha a mulher na sua missão reprodutiva e sexual.

Se acrescentamos as restrições na roupa e a separação física (que vai além de apertar as mãos) adicionadas a um dever de abstinência antes do casamento (provavelmente pouco respeitado), esse cocktail cria situações paradoxais onde os agressores não só vêem seu apetite sexual agravado, mas também podem ver nas restrições impostas às mulheres a justificação dos seus próprios vícios. Em outras palavras, se são impostas às mulheres o essencial das proibições e os tabus, isso implica que elas são o problema. No entanto, a vítima não é nem responsável nem culpada, e se um homem não é capaz de controlar-se, então o problema vem dele e não da mulher que terá a infelicidade de encontrar-lo.

A questão das violências sexuais suscita problemáticas e interesses muitos diversos. Assim, mexer o problema das violações de menores impõe de atacar-se aos casamentos precoces e forçados, no âmbito dos quais qualquer relação sexual é por definição não consentida, e constitui então uma violação. Outro exemplo: o da escravidão sexual. Práticas persistentes de escravidão são frequentemente denunciadas por diversas organizações da sociedade civil (elas afetam 1,058% da população mauritana, ou seja 43.000 pessoas segundo a edição 2016 do Global Slavery Index publicado pela ONG Walk Free), em particular na comunidade moura na qual ainda permanece a escravidão sexual, ou seja a provisão do corpo da mulher escrava para seu mestre. Geralmente, a miséria rural e a aceleração do processo de urbanização desde o fim da década de 1970 produziram novas formas de assalariamento doméstico. Milhares de meninas vindo de áreas rurais ou de famílias pobres encontram-se « recrutadas » pelas classes médias e altas como empregadas domésticas. Esse trabalho, não regulamentado, muitas vezes extenuante e mal pago, ou mesmo não remunerado, as expõe a freqüentes violências físicas, verbais ou sexuais. As meninas domésticas pertencem principalmente às etnias minoritárias (Pulaar, Wolof e Soninké) e às estratas sociais haratinas (os « Mouros negros », da comunidade dos antigos escravos). No caso dessas últimas, parece que o trabalho doméstico muitas vezes é só um travestimente das antigas relações de servilismo.

Em geral e como na maioria dos países do mundo, é provável que a maior parte dos abusos e violências sexuais ocorra primeiro na esfera privada, dentro do lar e da família. Essa questão das violências domésticas ainda é muito longe de constituir um problema de segurança pública, aos olhos das pessoas, em comparação com as violências na rua ou nos transportes públicos.

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

É importante notar que a violação não é só o que acontece na rua. É preciso atirar a atenção nas violações provocados por casamentos precoces dum lado, e do outro lado as violências morais que as mulheres conhecem nas casas, que segundo eu fazem tanto ou mais estragos na mulher, porque mais difíceis a provar nos tribunais, e entéao sempre impunes.

Aisha Mint Salem, presidente da associação « Violências e casamentos precoces », baseada em Nouakchott.

A violação, assunto tabu e fator de vergonha para a mulher e para a família

Nesse contexto social, marcado pela expropriação do corpo da mulher pela sociedade, como apreciar o que constitui um abuso sobre o corpo como a violação? Adivinha-se o tamanho da tarefa. Nos meios mouros, a situação é complicada pelos modos de sedução: uma violência em primeiro lugar é a regra. A mulher é suposta prender, por pudor, por convenção, uma postura de negação, negação do prazer, o que logo deixa equivocada a noção de « consentimento ». As técnicas de sedução incluem a poesia por exemplo, mas sobretudo os encontros devem (pelo menos na aparência) acontecer por acaso. A rapariga não deve mostrar que está consentida. Um exemplo de postura, nas aldeias: quando o rapaz apanha o parv (véu). Aquele momento em que ele puxa no tecido, em que a rapariga tenta defender-se, inscreve-se no processo de sedução. Em meio urbano, à escola, no ensino médio, no secundário, observa-se restos de comportamentos similares. Os jovens conversem, mas a negação deve ser pelo menos aparente. Por conveniência, a rapariga não expressa desejo, disposição física. Isto faz parte do jogo de amor e sexual.

No que diz respeito especificamente à violação, a socióloga Mariem Mint Baba Ahmed, que fomos interrogar, explica que « a maior proibição não deixe de ser a penetração. Porque inclui a proibição religiosa, a honra, o risco de ser grávida, a perda da virgindade em certos casos ». « Mas por exemplo, ela acrescenta, alguém que forçaria uma garota assim, a violando, ou outra, enquanto não houve penetração, não houve violação. Nem houve violência ». A situação piora logo que olhamos para a mulher haratina, cujo corpo não tem, por essência no imaginário coletivo, honra qualquer para preservar. Nos Haratinos, os nascimentos fora de casamento não são problemáticos, tanto como a noção de violação não existe. Tradicionalmente, a aprendizagem da sexualidade dos jovens Mouros fazia-se muitas vezes com mulheres escravas, o corpo sendo à livre-disposição dos mestres. Essa prática da escravidão sexual achou uma justificação religiosa. Ainda recentemente, num programa sobre as fatwas (pronunciamento legal no islão, emitido por um especialista em direito religioso) em 12 de Setembro de 2014, Sra Suad Saleh, professora em teologia em Al-Azhar (Egípto), afirmou que os muçulmanos que capturam mulheres numa guerra legítima contra seus inimigos podem possuí-las e torná-las escravas sexuais. « Para humiliá-las, déclarait-elle, elas tornam-se a propriedade do comandante militar, ou de um muçulmano, e ele pode ter relações sexuais com elas, tanto como ele tem relações sexuais com suas esposas ».

Acima de tudo, é preciso perceber que a violação (a penetração não consentida) não choca tanto pelo dano causado à própria mulher. A mesma é considerada como uma perdedora. O que importa, é sobretudo que houve uma falta na sua preservação, ou seja: ou ela, ou a mãe dela é responsável. A violação é pensada em termos de perda de honra, não em termos de dor para a vítima. Mariem Mint Baba Ahmed acrescenta sobre esse assunto: « É preciso parar de infantilizar as pessoas. [...] É uma criança mimada, mas por definição, uma criança mimada, é uma criança que não sabe se proteger. […] A mulher violada, a representação do que ela sofreu não existe, é a honra que foi violada. Devemos falar do sofrimento! É um ser humano de pleno direito ».

As deficiências do direito mauritano

Em qualquer sociedade respeitando a dignidade (incluindo a de cada mulher), parece óbvio que a lei deveria proteger cada cidadã e cidadão contra as violações à sua integridade física. Infelizmente é longe de ser o caso na Mauritânia, em relação à violação.

Concretamente, o que diz o direito mauritano sobre isso? A questão é tratada na Secção IV do código penal, chamada « Atentados aos costumes do islão ». Primeiro elemento chocante, o subtítulo dessa secção compõe-se da seguinte forma: « Heresia, apostasia, ateísmo, recuso de rezar, adultério ». A violação não aparece ai. É brevemente tratado em dois artigos, 309 e 310, situados entre o artigo 308 condenando a homossexualidade e o artigo 311 sobre o proxenetismo e a prostituição.

O artigo 309 declina-se assim: « Quem cometer o crime de violação será punido com trabalhos forçados a tempo sem prejuízo, em caso, das penas de Had e da flagelação se o culpado é solteiro. Se ele é casado, somente a sentença de morte será pronunciada. No entanto, a tentative do crime de violação só será punida pela pena de trabalhos forçados a tempo ».

Deixamos de lado o debate que deveria haver sobre o próprio princípio da prescripção de castigos corporais e sobre o da pena de morte. Podemos pelo menos notar que nesse artigo a violação é reconhecido como um « crime ». Uma distinção é estabelecida entre violadores solteiros e violadores casados – esses últimos sendo automaticamente condenados à morte, no entanto sem que o modo (lapidação, decapitação, etc.) seja detalhado, o que não é comum. As condições e a duração dos trabalhos forçados não são especificadas. Quanto às penas de Had (em árabe ḥadd حدّ, que significa limite, marca, definição), é, na lei muçulmana, o conjunto das penas legais prescritas pelo Alcorão ou a Suna (raiz legislativa do islão).

O artigo 310 fornece apenas uns esclarecimentos no caso de certas personalidades (públicas ou tendo um laço particular com a vítima): « Se os culpados são os ascendentes da pessoa na qual foi cometido o atentado, se são os que têm autoridade sobre ela, se são servidores comprometidos com as pessoas acima mencionadas, se são funcionários ou ministros religiosos, ou se o culpado seja quem for foi ajudado no seu crime por uma ou várias pessoas, a pena será a dos trabalhos forçados a perpetuidade e a flagelação, se o culpado é solteiro. Se ele é casado, somente a sentença de morte será pronunciada ».

Claro, tais condenações raramente chamam atenção na Mauritânia. Nem só o código penal, que base-se por grande parte na Sharia, não define a violação e a violência sexual, como também não explica como a violação deve ser demonstrado. A vítima é então deixada frente a um vácuo jurídico. Portanto, as condenações podem depender do ponto de vista pessoal dos juízes. O que, numa sociedade patriarcal e conservadora, inevitavelmente traduz-se por condenações muito, muito raras. Muitas vezes, a violação é calado porque constitui uma vergonha para a família e para a vítima, que até pode ser acusada por o ter supostamente provocado. Até certos casos de violações resolvem-se a negociar entre as famílias. No final, o número de violações declarados e que são objetos de uma queixa não excede algumas centenas por ano, o que está muito abaixo da realidade, de acordo com as associações ativas neste assunto.

Na ausências de detalhes, no código penal, sobre as evidências para provar um crime de violação, muitos juízes categorizam automaticamente os abusos sexuais na categoria das relações extraconjugais voluntárias – um crime conhecido sob o nome de « Zina » (الزنا) na lei islâmica. É o artigo 307, situado um pouco a montante da mesma secção, que trata desse crime, estipulando que « [qualquer] muçulmano maior de um ou de outro sexo, culpado de crime de Zina cometido voluntariamente e constatado, seja por (4) quatro testemunhas, seja pela confissão do protagonista, seja, no caso da mulher, por um estado de gravidez, será punido publicamente, se é solteiro, de um pena de flagelação de cem (100) chicotes e de uma ano de prisão. […] No entanto, a sentença de morte por lapidação, Tajoum, será pronunciada para o culpado casado ou divorciado ». Ligar o ato da violação ao crime de Zina, do lado do juiz, supõe claramente que a vítima é pelo menos parcialmente consentindo. Isso quer dizer também a condenar segundo as modalidades descritas no artigo 307, o que constitui um elemento dissuasivo adicional para as mulheres vítimas. Assim, em 2003, uma rapariga de 15 anos, de acordo com um documento de advocacia da Associação Mauritana dos Direitos Humanos (AMDH) em 2011, foi vítima de uma violação coletiva, para o qual sua família apresentou uma queixa. Em seguida, ela foi presa pela polícia, e depois transferida frente ao Procurador da República. Acusada de Zina, ela ficou três semanas em prisão antes de ser julgadas e absolvida.

Resultado: por causa disso e por causa da humilhação social que representa a violação para a vítima, em meios conservadores como há tantos na sociedade mauritana, a primeira dificuldade consiste a convencer um rapariga violada a o dizer.

Além da lei, para que mais casos de agressão sexual sejam tratados nos tribunais, seria necessário uma mudança de percepção das pessoas sobre as vítimas – e que essas fossem efetivamente consideradas como tais –, formar melhor os juízes e reformar o código penal e o sistema judicial.

As associações muitas vezes sem meios frente à tarefa: convencer a sociedade

Não só os juízes assumem uma posição muitas vezes desfavorável à vítima, como as associações trabalhando no acolhimento das mulheres vítimas de violência sofrem de uma forte falta de apoio dos poderes públicos, e de uma falta em recursos humanos formados ao trabalho social ou psicossocial. Certas organizações, como a Associação de Luta Contra a Dependência (Association de Lutte Contre la Dépendance, ALCD), a Associação Mauritana para a Saúde da Mãe e da Criança (Association Mauritanienne pour la Santé de la Mère et de l’Enfant, AMSME), a Associação das Mulheres Chefes de Família (Association des Femmes Chefs de Famille, AFCF), ou ainda a Associação Mauritana dos Direitos Humanos (AMDH), tentem, da melhor maneira que puder, acompanhar as vítimas nos suas queixes à polícia, e durante os procedimentos administrativos necessários para obter uma condenação. Elas fornecem para elas, tanto quando possível, um apoio psicológico. Mas é óbvio que as meios, que deveriam antes de tudo provir dos poderes públicos, supostamente preocupados pela segurança e o bem-estar dos cidadãos, não estão ai.

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

Jogamos as violências contra as mulheres fora das nossas casas, dos nossos lugares de trabalho e dos nossos países.

Mestra Fatimata Mbaye (à direita), presidente da AMDH (Associação Mauritana dos Direitos Humanos).

A mulher mauritana, por sua diversidade, de costume e tradição, carrega um fardo pesado, ou seja representar sua família, sua comunidade e sua religião, o que constitui para ela um grande desafio em relação ao seu envolvimento na luta contra as violências, em favor dos direitos das mulheres em particular.
Do outro lado, temos que assinalar que sobre 74 artigos do projeto de lei sobre as violências baseadas no género, o mesmo só trata das violências feitas aos homens e às crianças (meninas e meninos), que são frequentes também hoje na Mauritânia.

Binta Sao (à esquerda), ativista e encarregada da pasta Mulheres & Crianças na AMDH (Associação Mauritana dos Direitos Humanos).

As reações ao recente « Projeto de lei relativo às violências baseadas no género », adoptado pelo Senado mas bloqueado à Assembleia nacional desde o mês de Janeiro de 2017, mostram que o caminho ainda é longe e repleto de obstáculos. Deputados, religiosos, mas também intelectuais e universitários com quem poderíamos ter esperado reações mais construtivas sobre um texto certamente imperfeito mas que tem pelo menos como objetivo responder à urgência de segurança ligada às violências sexuais, opuseram-se ao pretexto que certas disposições seriam contrárias à lei religiosa, a Sharia – teoricamente a principal fonte do direito mauritano. Entre os pontos levantados, há em particular a idade autorizada do casamento fixada aos 18 anos, e o uso do termo « género », sobre o qual pessoas denunciam a origem ocidental e o risco de introduzir elementos favoráveis ao reconhecimento de direitos para homossexuais. E a intervenção, ao nível do Senado, do ministro da Justiça Brahim Ould Abdallahi, que garantiu ali que o projeto de lei era « conformo aos princípios da Sharia » e tinha recebido « a aprovação dos ulemas e imãs [religiosos muçulmanos] mauritanos », não foi suficiente para antecipar a oposição dos deputados – antes de tudo aqueles da Reunião Nacional para a Reforma e o Desenvolvimento (Rassemblement National pour la Réforme et le Développement, RNRD-Tawassoul), partido islâmico de oposição.

Esse texto é globalmente mal construído e mal preparado, e conta muitas deficiências jurídicas. As noções de « violências sexuais », de « violação » e de « violências baseadas no género » são usadas uma a seguir da outra sem coerência clara e como se pudessem se substituir mutualmente. A violação dos homens ou das crianças nem é mencionada. No entanto, é preciso admitir que certas disposições constituem potencialmente avanços reais (se são aplicadas corretamente) em favor da segurança e do atendimento às vítimas, como da condenação dos violadores. Podemos mencionar em particular a consideração, como prova jurídica, do relatório médico-legal (art. 35), o recurso como prova ao exame do ADN (art. 39), a implementação de números gratuitos de atendimento ou emergência (art. 58), a criação de unidades especiais na polícia nacional consagradas à prevenção das agressões sexuais contra as mulheres (art. 59), ou ainda a criação de serviços de acolhimento e de informação proporcionando acomodação às vítimas para poder reconstruir-se (art. 64). O artigo 40 do projeto de lei garante automaticamente « a assistência judiciária » e « a presença de um advogado ». A presença de um psicólogo também torna-se obrigatória (art. 45) durante as audiências, que podem realizar-se de portas fechadas ao pedido da reclamante (art. 47). Outro progresso: o tratamento das vítimas femininas « que contraíram doenças venéreas é coberto pelo Ministério da Saúde » (art. 52).

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

As violências sexuais são um fenômeno novo e crescente na sociedade. O Parlamento deve adoptar uma lei para lutar e fazer desaparecer o problema, e a lei deve aplicar-se realmente.

Raghiye Mint Abdellahi, graduada em Economia na Universidade de Nouakchott e presidente da associação « As jovens mulheres qui agem na sociedade ».

Em termos de condenação, a violação « não pode ser correcionalisada » (art. 50), ou seja passar do qualificado de « crime » para o de « delito », e (medida mais polémica nos meios juristos) as agressões sexuais sobre as mulheres tornam-se « imprescritíveis » (art. 51). Sobre a prevenção, o projeto de lei prevê que as autoridades públicas adoptem um plano de três anos para combater as agressões sexuais contra as mulheres (art. 54), lideram campanhas de sensibilização (art. 55) e transmitam, nos centros de formação e de educação, os conhecimentos e os métodos que facilitam a detecção das violências sexuais (art. 56). Além disso, as associações de luta contra as violências baseadas no gênero, declaradas há pelos menos cinco anos, poderiam agora « tornar-se parte civil no julgamento » (art. 53). O artigo 4 que trata das circunstâncias agravantes estipula que « as perversões do perpetrador de violências baseadas no gênero, na sua posição, nos seus laços com a vítima, [...] a vulnerabilidade da vítima, as circunstâncias da infracção [...] constituem circunstâncias agravantes no pronunciamento da sentença pelo juiz ». O contexto em que o crime ocorre não pode portante constituir, em nenhum caso, um motivo de circunstância atenuando. Mesmo que a aplicação com sucesso de uma tal disposição implique uma mudança radical de mentalidade e de percepção do lado dos próprios juízes, pode-se constatar que em muitas situações (incluídas as agressões nos táxis, tarde à noite), esse artigo teria pelos menos o mérito de desculpabilizar juridicamente a vítima e colocar a integralidade da culpa no agressor.

Por fim, mas não menos importante: o crime de violação é (finalmente!) definido: « Constitui uma violação qualquer ato de penetração vaginal, anal ou oral de qualquer natureza cometido numa outra pessoa sem o seu consentimento pela violência, constrangimento, ameaças ou surpresa » (art. 7). O assédio sexual é também reconhecido como um crime, punível com seis meses a três anos de prisão e entre 100.000 e 500.000 ouguiyas de multa em função da situação, e definido como « qualquer palavra, ato ou comportamento com conotação sexual baseada no sexo ou na tomada em conta da sexualidade, real ou suposta de uma mulher, tendo como objeto prejudicar os direitos e a dignidade ou criar um ambiente intimidante, hostil, degradante ou humilhante » (art. 8). As violências domésticas qualquer cônjuge que intencionalmente causou danos corporais ou praticado uma violência contra seu cônjuge, seja física, moral ou psicológica ») são passíveis de uma pena de prisão de dois meses a cinco anos, e são portanto finalmente reconhecidas.

Sem elas terem sido especificamente mencionadas nas mídias (que disseram muita coisa, incluido erradas, sobre esse projeto de lei, antes de tudo – como muitas vezes – o Cridem que partilha as informações sem verificação nenhuma, ao ponto que podemos nos questionar legitimamente sobre o número de jornalistas que realmente o leram), duas disposições podem ter incomodados, mais profundamente, seus detratores. O texto sanciona, portanto, a imposição de um « comportamento ou de uma atitude em relação ao seu cônjuge » (art. 16), bem como o impedimento de « exercer as liberdades públicas » (art. 19). É fácil entender como tais artigos podem incomodar pessoas para quem o comportamento de uma mulher deve ser controlado, e que querem, por exemplo, condicionar as idas e vindas à estrita autorização do marido.

Muitas associações e iniciativas, incluídas nas jovens gerações, surgiram depois das violações e assassinatos de jovens mulheres e crianças que fizeram barulho em 2013. Podemos mencionar pelo menos três. A Associação das raparigas ativas na sociedade (Association des jeunes filles actives dans la société), essencialmente baseada em Riyad, um município periférico de Nouakchott, nasceu em 2014 liderando ações simbólicas (como uma marche de raparigas, vestidas em branco), e dedica-se agora mais à criação de espaços de aprendizagem e de expressão para jovens mulheres e adolescentes. A iniciativa eTkelmi (اتكلمي, « fala » em árabe, dirigido a uma mulher), nascida em 2013 e composta sobretudo por jovens mulheres ativistas da comunidade moura, conduziu uns sit-in em frente ao Ministério ou ao Palácio de Justiça, e realizou um vídeo de advocacia contra a violação há três anos. Hoje em dia, seus membros são mais ativos nas redes sociais. Sua principal reivindicação: a modificação de três artigos do Código penal (artigos 307, 309 e 310) para alcançar a uma efetiva criminalização da violação na Mauritânia.

Também há um consortium de associações de jovens do município de Dar Naim, em Nouakchott, que reuniu-se em 2015 a volta de um projeto chamado « Não mexe na minha irmã (Touche pas à ma sœur) / تلمس أختي لا », cofinanciado pela cooperação francesa e apoiado pela ONG Caritas. Ele comportava em particular ações de sensibilização (porta-em-porta, concertos, etc.) e sessões de diálogo intergeracional com jovens mulheres e pais para tentar quebrar certos assuntos tabus.

Uma outra iniciativa, mais recente, merece também ser mencionada, embora ainda está em gestação. Desde o verão de 2016, mestres em artes marciais e desportos de combate encontram-se duas vezes por semana na nova Casa dos Jovens de Nouakchott, e trabalham a formar jovens mulheres num programa de self-defense que eles próprios construírem, na base de técnicas de defesa das suas diferentes disciplinas. Essa iniciativa, chamada RIM Self-defense, realmente novadora na Mauritânia porque ela coloca as mulheres como atrizes da sua própria segurança, e ao mesmo tempo cria espaços de solidariedade e de reapropriação do corpo, foi lançada sob a liderança de uma ativista discreta, Dioully Oumar Diallo. Ela já foi à origem da aplicação TaxiSecure em 2014, cujo objetivo é de prevenir as agressões sexuais nos táxis permitindo às mulheres, é o objetivo, de verificar os números de cadastro, de enviar uma mensagem de alerta aos seus próximos e de georeferenciar uma vítima.

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

Nosso corpo nos pertence. É necessário dar ferramentas às meninas permanentemente para que elas possam defender-se contra a violação.

Dioully Oumar Diallo, iniciadora da aplicação móvel TaxiSecure e da iniciativa RIM Self-defense.

As línguas liberam-se, mas os obstáculos permanecem imensos, pois a consideração da mulher e dos seus direitos parece precária. No caso da Associação das raparigas ativas na sociedade (Association des jeunes filles actives dans la société), sua presidente Raghiya Mint Abdellahi nos conta que num curto prazo, as ações de sensibilização aos habitantes de Riyad tiveram de ser substituídas por outros tipos de atividades, porque muita sensibilização cansava as pessoas, quando não dava aos rapazes a ideia de ir agredir. No caso da aplicação TaxiSecure, a equipe de desenvolvedores que a levavam rapidamente enfrentou o receio dos poderes públicos a partilhar os dados sobre os táxis cadastrados, mesmo sendo para um ferramenta de prevenção das violências. Igual em relação à iniciativa RIM Self-defense, que cria muitas reações e revela assim muitos preconceitos sobre as mulheres, a sua capacidade a defender-se e a urgência da segurança da situação.

A questão da violação na Mauritânia: o tabu pode ser quebrado?

Eu sempre defendo a causa das pessoas frágeis que vivem seus problemas em silêncio e que não têm como resolvê-los. O « giving back » é minha fonte de inspiração. No que diz respeito aos problemas ligados aos direitos das mulheres, penso que tudo pode ser resolvido enquanto houver um pouco de esperança.

Khadijetou Abed, membra da iniciativa eTkelmi e fundadora da sociedade Sky Technology.

Reagindo à forte oposição ao recente projeto de lei sobre as violências baseadas no género, incluindo do lado de intelectuais e universitários, uma das ativistas da iniciativa eTeklmi, Mekfoule Ahmed, afirmava recentemente, lúcida sobre a situação: « As reações nos mostram que fracassamos, nos últimos três ou quatro anos, em conscientizar as pessoas e mudar as mentalidades sobre essa questão das violências sexuais. Precisamos repensar nossa estratégia ». É provável que uma melhor colaboração entre os grupos de mulheres lutando, cada uma à sua escala e à sua maneira, na frente da emancipação e dos direitos, constitui uma das chaves desse combate. Uma associação de jovens formando raparigas em informático e as ajudando a reforçar o seu lugar no setor do digital – como o faz por exemplo a associação InnovRIM em Nouakchott –, mesmo se ela posiciona-se, a primeira vista, na área das novas tecnologias, partilha em realidade interesses convergentes com uma iniciativa como eTkelmi, e contribui na medida dos seus meios à emancipação da mulher. Uma ONG como Caritas que trabalha à autonomização das mulheres por meio da formação professional, o acesso ao micro-crédito e o apoio à organização em cooperativas, contribui para o empoderamento da mulher. Se necessariamente dizer-se « feministas » e sem levar uma ideologia particular, muitos atores realizam por suas ações sociais pequenas revoluções, progressivamente, sem violência. Podemos supor que é a capacidade dos atores reivindicando os princípios da liberdade e do direito a os aproximar, que mudará as relações de poder. Não de uma só vez, mas passo a passo.

As chaves desse combate são extremamente complexas a encontrar, e só abrem a porta depois de anos de luta e de debates para demostrar, convencer, fazer entender que o único fato para a mulher de ser um ser humano deveria bastar a conceder-lhe o direito à segurança e à liberdade, que são condições óbvias à felicidade e ao desenvolvimento pessoal.

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