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O acendedor de lampiões

Quais são as causas profundas das clivagens políticas em Moçambique?

2 Septembre 2017 , Rédigé par David Brites Publié dans #Moçambique, #Democracia, #História, #Identidade

Selo de 1987, à propagândia da Frelimo.

Pontuado por certas pausas, Moçambique voltou desde 2013 num novo ciclo de violência que opõe o braço armado da Renamo às forças armadas do governo moçambicano, caracterizando-se por tiros do primeiro movimento de oposição contre chapas e alvos militares na estrada principal do sul da província de Sofala e à volta do Parque nacional de Gorongosa. Depois duma pausa durante a campanha eleitoral de 2014, os confrontos voltaram entre os dois partidos históricos de Moçambique, sobretudo desde o inverno de 2015. Só se acalmaram nos últimos meses, na perspectiva da organização das eleições autarquicas de 2018, ou seja, na base de cálculos políticos do lado da Frelimo como da Renamo.

Para reflectir sobre o que pode explicar uma tal situação, apenas uma geração depois do fim da guerra civil, é preciso ir um pouco mais longe do que a própria actualidade desses eventos dramáticos para entender quais são as causas profundas das rivalidades partidárias neste país, em particular desde 1975-76. Sem pretensão de dar uma resposta definitiva a esta problemática, vamos tentar oferecer pistas de reflexão.

Claro, a rivalidade entre a Renamo e a Frelimo desde 40 anos tem por originas o contexto da Guerra Fria e a luta entre comunistas e anti-comunistas. A Angola conheceu um cenário semelhante, embora a guerra civil lá conheceu um final diferente. A perenidade das divisões políticas profundas após o acordo de paz decorre, apesar do discurso de cada partido, das ambições dos líderes de ambos partidos, os da Frelimo como os da Renamo. Problema é que cada partido reclama sua própria legitimidade: a Frelimo afirma que trouxe a independência, e a Renamo que trouxe a democracia. As discussões entre o governo e a oposição concentram-se, não sobre ideias, mas sobre a partilha do poder, e isso deixe o debate político moçambicano muito empobrecido. Há uma ausência óbvia de projeto político claro da Renamo para o país, pois o movimento de oposição está sobretudo procurando uma partilha do poder, e não sabe mais o que exigir para obtê-lo. A retrobedalagem sobre as reivindicações relativas à descentralização nos últimos meses, operados na perspectiva das próximas eleições autárquicas, é a última ilustração desta realidade.

No entanto, e o sucesso da guerrilha da Renamo nos anos 80 o ilustra bem, as ambições e as rivalidades políticas vieram juntar-se a antagonismos muito mais profundas. Já voltamos, o mês passado, sobre as feridas deste conflito: Em Moçambique, as feridas da guerra civil permanecem. Dizer que a guerra civil moçambicana teve uma essência étnica é simplista para não dizer errado. No entanto, dizer que as divisões étnicas não têm papel nas relações de poder políticas ou eleitorais também é. Moçambique é uma « nação » cuja complexidade não se resuma em umas linhas, e provavelmente aquelas que seguem não permitirão de apresentar a realidade moçambicana em toda sua diversidade. Um olhar sobre as raízes das rivalidades políticas em Moçambique.

Nas ruas de Ilha de Moçambique, primeira capital da colonia portuguesa, até 1898.

Nas ruas de Ilha de Moçambique, primeira capital da colonia portuguesa, até 1898.

Rivalidades étnicas contam nas dinâmicas políticas, mesmo não sendo explicitas. Historicamente, líderes da Frelimo são originários do Sul (Eduardo Mondlane e Samora Machel nasceram na província de Gaza, e Joaquim Chissano em Maputo) e do extremo norte (Joaquim Alberto Chipande, Felipe Jacinto Nyusi), ou seja, das etnias Tsonga e Makonde. Ao contrário, Afonso Dhlakama e a maioria da liderança militar da Renamo são do grupo étnico Ndau, no sul da província de Sofala, como também Daviz Simango, que deve suportar, dentro do MDM, a rivalidade do ramo « zambeziano » do partido. A rivalidade é muito grande entre Tsongas que dominam nas províncias do sul (e portanto na capital), por um lado, e Machuabos da Zambézia, Macuas de Nampula, e Senas e Ndaus de Sofala, por outro lado. Não se reflita nos discursos dos vários candidatos às eleições presidenciais, e isso é provavelmente uma coisa boa, mas essa rivalidade existe e é, obviamente, mais visível na boca do cidadão médio. Estefânia, por exemplo, uma cidadã machuabo que imigrou há muito tempo nos arredores de Maputo com sua família, fala, sobre o presidente do Conselho municipal de Quelimane, membro do MDM: « Ele é realmente de Quelimane, é realmente de lá, do povo, é realmente da Zambézia. » Outro exemplo, quando Laurinha, vendedora de hambúrgueres na capital, diga sobre a oposição: « Essas pessoas [...], eles não são de Moçambique. Eles estão lá, [do Norte]. » Ou seja: como muitos Moçambicanos, ela confonde a região de Maputo com a « nação » moçambicana. « Moçambique, é Maputo, e a província, é outra coisa », explica Clotilde, ativista feminista encontrada na capital. A reunião privada que aconteceu no início de 2015 em Bilene, das principais famílias makondes próximas do poder (com a presência de Joaquim Alberto Chipande, tio e « padrinho » político de Nyusi) para aprovar uma evicção de Guebuza da liderança da Frelimo, ao benefício do Nyusi, ilustra a importância dos laços étnicos, incluindo dentro do próprio partido da Frelimo.

De certa forma, o rio Zambeze representa uma ruptura no país, geográfica, mas também cultural: entre um Norte muçulmano, matrilinear, profundamente marcado por séculos de colonização portuguesa, e etnicamente caracterizada por misturas com Árabes e Indianos presentes na costa; e um Sul patrilinear, em maioria cristão (e de fato cada vez mais marcado por uma evangelização cristã vindo principalmente da África do Sul e do Brasil), com o grupo étnico Tsonga de tipo bantu, mas influenciado pela cultura zulu veia pelo meio dos Ngunis no século XIX. Claro, esta distinção é esquemática, uma vez que não menciona a etnia Makonde que faz fronteira com os altos planaltos do norte do país, uma vez que ela esquece a influência da etnia Shona (a maioria no Zimbabue) nas províncias de Manica e Sofala, no centro do país. E finalmente, apesar de algumas semelhanças, os povos do vale do Zambeze, Niungues, Nianjas e Senas, tiveram também dinâmicas históricas às vezes bem diferentes dos Macuas-Lomués, devido à localização geográfica deles, que lhes permitiu escapar mais tempo á ação dos exploradores portugueses.

Grupos etno-linguísticos em Moçambique. Uma certa rivalidade existe entre os Tsongas, que não representam mais de 25% da população moçambicana, e as etnias do centro e do norte. O grupo maior é o dos Macuas. Podem representar até 40% da população, talvez um Moçambicano sobre dois se acrescenta-se a eles os Lomués, grupo direitamente ligado aos Macuas (até se fala às vezes da etnia « Macua-Lomué »), e os Machuabos, outro grupo que tem laços um pouco mais distantes com a etnia Macua. No centro do país, os Nianjas (presentes também no Malawi), os seus primos da etnia Sena, e os Niungues, são os grupos que dominam o vale do Zambeze, representado em azul neste mapa. Finalmente, os Shonas (a maioria étnica no Zimbabue), são representados em Moçambique por duas línguas, o xiManica e o Ndau.

Grupos etno-linguísticos em Moçambique. Uma certa rivalidade existe entre os Tsongas, que não representam mais de 25% da população moçambicana, e as etnias do centro e do norte. O grupo maior é o dos Macuas. Podem representar até 40% da população, talvez um Moçambicano sobre dois se acrescenta-se a eles os Lomués, grupo direitamente ligado aos Macuas (até se fala às vezes da etnia « Macua-Lomué »), e os Machuabos, outro grupo que tem laços um pouco mais distantes com a etnia Macua. No centro do país, os Nianjas (presentes também no Malawi), os seus primos da etnia Sena, e os Niungues, são os grupos que dominam o vale do Zambeze, representado em azul neste mapa. Finalmente, os Shonas (a maioria étnica no Zimbabue), são representados em Moçambique por duas línguas, o xiManica e o Ndau.

Em geral, pode-se dizer que há uma oposição Norte-Sul, baseada em rivalidades étnicas e culturais anteriores à colonização, mas que agravaram-se com a colonização – uma colonização mais antiga e mais violenta no Norte, profundamente racista e pró-brancos nas antigas províncias coloniais da Zambézia, de Sofala, de Nampula e de Cabo Delgado; e, apesar do estatuto dos indígenos durante a ocupação portuguesa no século XX, mais favorável ao surgimento de uma elite política negra, muitas vezes anti-branco, no Sul. Esta realidade levou os líderes frelimistas, desde a independência, a promover uma pseudo-moçambicanidade favorecendo os « verdadeiros Moçambicanos » (ou seja: os Negros). Numa entrevista dada ao Canal de Moçambique, em 12 de Agosto de 2015, o economista moçambicano João Mosca também descrevia uma recente campanha com conotação racista conduzida pelos próximos do ex-presidente Guebuza contra as vozes « brancas » da oposição ao sistema. Esta dominação dos Tsongas e dos Makondes alimentou as frustrações duma elite negra do Centro e do Norte do país (hoje liderando a Renamo ou o MDM) que ainda hoje se sinta incapaz de aproveitar da independência do país, mesmo 40 anos depois... Este rancor não se exprima como tal no discurso político, mas é possível o ver nas entrelinhas dos discursos políticos da Renamo – por exemplo, quando Afonso Dhlakama diga, como há uns meses, que cada parte irá governar as províncias onde foi investido eleitoralmente, « nós cá, eles lá. »

Esta situação não é específica ao Moçambique, e levanta a questão da relevência das fronteiras herdadas da colonização. A existência mesma destas fronteiras arbitrariamente designadas pelas potências europeias que queriam partilhar a África, complexifia duramente a sociedade moçambicana, criando uma identidade moçambicana, nova e que acabou sendo parcialmente uma realidade depois de décadas de propaganda do Estado. Mas esta nova identidade veia juntar-se á culturas locais ou regionais que (felizmente) não desapareceram. Num país como Moçambique, a história nacional contada pelo regime resuma-se por enquanto, essencialmente, a séculos de dominação estrangeira, a violência e aos antagonismos recentes. A ideia aqui não é chamar a uma divisão do país numa base étnica ou tribal; esta reflexão tem como objetivo analisar uma das raízes dos problemas actuais do Moçambique. É importante, no entanto, questionar-se sobre a organização política da sociedade moçambicana nas suas fronteiras coloniais. A ideia mesma de Estados africanos, suas organizações e modalidades de funcionamento são herdadas do modelo europeu de Estado-nação moderno, que talvez não corresponda ao sistema político mais adaptado às sociedades africanas.

Bairro de Icidua, na periferia de Quelimane, província de Zambézia.

Bairro de Icidua, na periferia de Quelimane, província de Zambézia.

A subida da violência: e depois?

Moçambique conseguiu ao longo das décadas limitar as aspirações regionalistas. Claro, o debate que ocorre desde 2014 sobre a descentralização criou (e cria) tensões. Além dos aspectos políticos ou econômicos, há uma dimensão étnica: a vontade dos povos do Centro e do Norte de ter uma certa autonomia em relação a Maputo e à etnia Tsonga. Ou a vontade de traduzir politicamente uma distância que jà existe entre povos de Moçambique que são simplesmente diferentes, com línguas diferentes, com organizações da família diferentes, com culturas diferentes, etc. Oficialmente, as reivindicações são de dimensão nacional. Durante anos, as negociações se arrastaram em questões importantes como a reintegração das forças renamistas no exército, a nomeação de membros da Renamo em cargos de tomada de decisão nas Forças armadas nacionais, ou a famosa despartidarização do Estado, ainda por resolver, apesar de muitos compromissos políticos (nunca cumpridos) entre o governo e a oposição.

Em 30 de Abril de 2015, a proposta de criação de seis províncias autónomas, apresentada pela Renamo, foi rejeitada pelos deputados, por 138 votos contra 98. A votação fechou vários meses de debate sobre esta reforma, que era mal concebida pela Renamo e que apresentava várias incoerências constitucionais. Além disso, o projeto de lei ilustrava o quanto o partido de oposição, bem longe de estar levando um projeto para o país todo, pretende só exercer o poder nas províncias onde tem uma maioria eleitoral. Algumas semanas mais tarde, a direção da Renamo declarou que o movimento iria, no futuro, apresentar uma nova proposta de lei, corrigida e que preverá uma descentralização geral do Estado moçambicano, não só uma autonomização de algumas províncias. O que foi feito: em dia 21 de Outubro de 2015, então, abriu-se a IInda Sessão Ordinária do Órgão Legislativo, tendo como destaque o projecto de Revisão da Constituição da República, proposta pela bancada parlamentar da Renamo, que visa acomodar a sua pretenção de criar autarquias provinciais, iniciativa rejeitada pelo Parlamento na sua última sessão plenária. A Renamo sugeria que os nomes dos governadores provinciais passassem a ser, ao longo termo, propostos pelas Assembleias provinciais (hoje em dia, o líder da Renamo reclama uma eleição direta do presidente provincial pelos eleitores). E que eles fossem propostos, agora e em cada província, pelo candidato mais votado nas eleições presidenciais do 15 de Outubro de 2014, na respectiva província. O projeto previa também que se acrescenta uma nova categoria de autarquias locais, a Autarquia provincial, cujo território coincide com a área da circunscrição as províncias atuais. Os deputados da maioria frelimista teria dado um paso enorme se ultrapassassem as tensões atuais para dialogar com a bancada renamista e elaborassem um projeto político consensual. Em 7 de Dezembro de 2015, sem surpresa, a maioria frelimista rejeitou o projeto, enquanto a oposição votou em favor.

Na véspera do debate, a presidente do grupo parlamentar renamista, Ivone Soares (sobrinha de Dhlakama), consciente do resultado sem surpresa que ia a ter o voto parlamentar o dia a seguir, escreveu, na sua conta-Facebook: « A descentralização não interessa aos dirigentes da Frelimo. A vontade do povo também não lhes interessa, daí que vão chumbar o projecto de lei que resolveria o problema da actual crise político-militar resultante da fraude nas eleições de 2014. » Na mesma altura mais ou menos, o porta-voz da Renamo António Muchanga resumiu bem a situação, quando declarou: « Dizer que a coisa [ou seja: a criação de autarquias provinciais] tem que ficar para 2019 é igual a dizer que a crise político-militar tem que se manter até 2019 » – isso é, até as próximas eleições gerais. O ano 2016 anunciava então uma nova subida de violências, com esta promessa do líder da Renamo, formulada numa entrevista ao Canal de Moçambique em 6 de Janeiro de 2016: « Já não há mais nada a negociar, vamos negociar quando estivermos a governar em Março, as seis províncias » Aliás, confrontos recomeçaram ao longo do ano 2016, com o risco real de uma multiplicação dos combates do Centro e no Norte do país, e foi preciso chegar ao ano 2017 para realmente ver prolongar-se uma certa acalmia. O debate sobre a descentralização parece, ao ver as últimas reações políticas e discussões entre o governo e a Renamo, em suspenso, pela vontade de Afonso Dhlakama, em diálogo com o presidente Nyusi. No entanto, o fundo da questão regionalista ainda permanece e deverá ser tratado daqui as eleições de 2019 – um calendário que representa uma vitória em si para a Frelimo, que não queria mexer na Constituição neste mandato, mas que a Renamo, se é adoptado uma reforma provincial daqui 2019, poderá apresentar como um sucesso da oposição.

O rio Limpopo.

Entrevistado pela Lusa, a agência de informação portuguesa, dia 17 de Junho de 2015, Mia Couto declarava, falando de Moçambique: « Este é um país tão diverso, com tantas histórias. Nós não começamos [com o dia da independência, em 25 de Junho de 1975], houve sempre vários começos, como há vários povos, várias culturas. » E o vencedor do Prémio Camões de 2013 continua explicando: « Nós não soubemos tratar isto com respeito, havia uma leitura muito simplista do que era a nação moçambicana e estamos a pagar por isso hoje. » Esta « leitura simplista » da narrativa nacional moçambicana, é verdade concebida por uma elite educada e formada num âmbito colonial (às vezes até em Lisboa), explica-se pela vontade do primeiro governo pós-independência de garantir a unidade do país, e portanto a necessidade de construir uma « nação moçambicana », o que resultou, entre outras coisas, pelo fato de manter o português como língua nacional oficial em 1975.

« Será que dentro de um ano, seremos ainda um único Moçambique ? », ainda pergunta Mia Couto na mesma entrevista. Claro, depois de ter passado a guerra civil sem o drama duma secessão ou dum regionalismo exacerbado, Moçambique pode (e deve) agora escrever uma nova página da sua história, ou seja, a da descentralização. « Ainda estamos a procura da nossa identidade. […] Sou o resultado de contradições profundas: sou um científico que escreve, um escritor numa sociedade oral, um Branco num país de Africanos.. […] A pesquisa da minha própria identidade obriga-me a viajar dentro do meu próprio país », explica ainda o famoso autor moçambicano, entrevistado em Junho de 2015 pelo organismo de imprensa francês AFP. Citando a coexistência de 21 línguas, e de várias culturas e religiões, ele acrescenta: « Moçambique é um país que procura ser uma nação mas que se confronta a uma muito grande diversidade. [...] Havemos construído o nosso Estado, seguindo o modelo europeu de Estado único, centralizado. Era uma violência silenciosa: esquecemos as enormes diferenças entre o mundo rural e urbano, as pessoas em capacidade de gerir a modernidade e os outros. » Além disso, a descentralização aparece como uma etapa indispensável para consolidar a sua democracia em construção, e desbloquear uma vida política nacional esclerótica por quarenta anos de partido único e de práticas clientelistas. Enquanto Moçambique acabou de celebrar, em Junho de 2015, seus 40 anos de independência, e ainda comemora neste mês de Setembro de 2017 o 53° aniversário do início da luta armada contra o poder colonial português, a classe política deve superar a sua mediocridade e assumir o seu papel histórico para responder aos desafios políticos atuais. É uma obrigação para evitar um retorno à violência, neste país que já sofreu tanto com a guerra.

No centro de Nampula, no nordeste de Moçambique. A paísagem urbano apresenta elementos de propagândia relativos á Revolução socialista dos anos 1970. Um sígno que o país ainda tem dificuldades a sair dessa herança.

No centro de Nampula, no nordeste de Moçambique. A paísagem urbano apresenta elementos de propagândia relativos á Revolução socialista dos anos 1970. Um sígno que o país ainda tem dificuldades a sair dessa herança.

O texto a seguir encontra-se no livre Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon, publicado em 1961. No capítulo chamado « Mesaventuras da consciência nacional », o autor explica como os líderes da independência africana, por clientelismo ou tribalismo, por trás de discursos bonitos sobre a unidade nacional, criaram divisão e frustração nas regiões esquecidas, e ao longo termo favoreceram formas diversas de separatismo e de irredentismo. Escrito em 1961, ou seja antes da independência de Moçambique, este extrato aplica-se extraordinariamente ao caso deste país.

O partido político em muitas regiões africanas hoje independente conhece um inflação terrivelmente grave. Em presença de um membro do partido o povo cala-se, faz-se ovelha e publica elogios ao governo e ao lider. Mas na rua, à noite afastado na aldeia, ao café ou no rio, ouve-se esta decepção amarga do povo, esta desesperança mas também esta raiva contida. O partido, em vez de favorecer a expressão das queixas populares, em vez de dar-se como missão fondamental a livre circulação das ideias do povo à direção, torna-se impermeável e proiba. Os dirigentes do partido comportem-se como vulgares subtenentes e lembram constantemente ao povo que é necessário impôr « silêncio nas fileiras ». Este partido que afirmava-se servidor do povo, que pretendia trabalhar à felicidade do povo, logo que o poder colonial deixou-lhe o país, mandou depressa o povo de volta para sua caverna. Em termos de unidade nacional o partido também multiplica os erros. Assim, o partido dito nacional comporta-se em partido étnico. É uma verdadeira tribo constituida em partido. Este partido que proclama-se à vontade nacional, que affirma falar em nome do povo global, secretamente e às vezes abertamente, organiza uma autêntica ditadura étnica. Assistimos não à uma ditadura burguese, mas sim à uma ditadura tribal. Os ministros, os chefes de gabinetes, os embaixadores, os prefeitos são escolhidos na étnia do líder, às vezes até na própria família dele. Estes regimes de tipo familiar parecem usar das mesmas leis de endogamia, e sentimos não raiva, mas sim vergonha frente à esta besteira, à esta impostura, à esta miséria intelectual e espiritual. Os chefes de governo são os verdadeiros traidores à África, pois eles a vendam ao mais terrível dos inimigos: a besteira. Esta tribalização do poder favorece, claro, o espírito regionalista, o separatismo. As tendências descentralizacionistas surgem e triufam, a nação se disloca, desmembra-se. O líder que gritava: « Unidade africana » e que pensava à sua pequena família acorda um dia com cinco tribos que também querem ter seus embaixadores e seus ministros; e sempre irresponsável, sempre inconsciente, sempre miserável, ele denuncia « a traição ».

Frantz Fanon, Os Condenados da Terra (1961).

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