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O acendedor de lampiões

Presidência Bolsonaro: no Brasil, as comunidades indígenas no impasse

15 Juin 2019 , Rédigé par David Brites Publié dans #Brasil, #Democracia, #Identidade, #Ecologia

Em 1 de Janeiro passado, o Brasil conheceu um evento político importantíssimo, ou seja, a tomada de posse do novo presidente da República, Jair Bolsonaro. Seguia as eleições gerais do ano passado. Em 7 de Outubro de 2018, enquanto o Congresso nacional conhecia uma onda de direita incontestável, aquele que fez-se conhecer pelas suas proclamações misóginas, racistas e homofóbicas, muitas vezes comparado a Donald Trump, liderava o primeiro turno da presidencial, com 46,03% dos votos (mais de 49 milhões de votos!), longe do candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), Fernando Haddad (29,18%). O resultado final já não criava dúvidas, ao ponto que o próprio Bolsonaro recusou-se a participar aos debates de entre-dois-tornos, para não arriscar perder eleitores; em 28 de Outubro seguinte, ele ganhava o segundo torno com 55,13% dos votos.

Esse terramoto eleitoral – o PT, mas também os partidos tradicionais de direita: PMDB, PSDB, conhecerem uma bafada histórica – foi muito comentado, analisado, explicado. A eleição por uma maioria de Brasileiros de um candidato explicitamente desprezante com as mulheres, os homossexuais, o modo de vida dos Índios, os habitantes das favelas, um candidato tão favorável à liberalização das armas e que prometia uma virada securitária como nunca o país tinha conhecido desde a ditadura militar (1964-1985), não aconteceu por acaso. Ela diz alguma coisa da visão que muitos Brasileiros (ou pelo menos aqueles que plebiscitaram o programa de Bolsonaro) têm da alteridade, da convivência, da noção de solidariedade social; mas também a visão que eles têm do desenvolvimento, e o ideal de sociedade sonhado por eles.

Entre todas as «minorias » que estão no alvo do novo executivo, os Índios tem um lugar privilegiado. Pois cumulam os azares: estão muito minoritários (menos de 1% da população brasileira), mas ocupam terras queridas pelos lobbies do agronegócio. Paradoxalmente, a questão da defesa da Amazonia tem ecos ao nível internacional, mas no Brasil, esta causa mobiliza muito pouco o Brasileiro lambda. Olhar sobre a atualidade trágica.

De Temer ao Bolsonaro: a ofensiva já começou

A chegada ao poder de Jair Bolsonaro fez muito barulho no plano internacional, tanto pela radicalidade do programa do mesmo (classificado à extreme-direita, ultra-liberal sobre o plano econômico, próximo dos meios militares nostálgicos da ditadura, e perto dos evangélicos) como pelo resultado impressionante realizado por ele logo no primeiro torno – a surpresa dos observadores fez lembrar aquela que acompanhou a vitória de Donald Trump dois anos antes. No entanto, nota-se uma forma de continuidade bastante clara entre as presidências Temer e Bolsonaro. Por lembrança, Michel Temer tinha chegado à vice-presidência do Estado depois da reeleição de Dilma Rousseff em Outubro de 2014; ele era do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), uma formação de eleitos e de caciques locais. O principal partido de centro-direita do Brasil, que até recentemente dominava o Congresso nacional, sofreu uma lambada nas eleições de 2018, mas continua sendo um ator importante na política brasileira. Temer apoiou a destituição da Dilma Rousseff pelo Parlamento, e acedeu oficialmente à presidência depois do impeachment, cujo o processo tinha definitivamente terminado em 31 de Agosto de 2016.

Em apenas dois anos, o presidente Temer conseguiu maximizar o tempo que lhe foi concedido para aprovar uma série de leis… pesadas! Emenda constitucional que estabelece o gelo de gastos públicos por um período de vinte anos (Dezembro de 2016), legalização da « retropedalagem orçamental » (um procedimento pela qual Dilma Rousseff tinha sido destituída…), ondas de privatizações (auto-estradas, portos, aeroportos…), etc.: o novo governo de direita parece então ter esquecido que ele não tinha mandato do povo para aplicar um tal programa. Além disso, 2017 foi o ano com maior desmatamento da história do país, em benefício do agronegócio e dos investidores mineiras. Em Junho de 2017, a Noruega, principal doador para a proteção da floresta amazônica, anunciou a redução de metade dos pagamentos ao Brasil devida à aceleração do desmatamento.

Claro, a situação nem foi sempre ideal sob Lula da Silva e Dilma Rousseff (lembramos em particular a demissão com barulho da ministra do Meio Ambiente Marina Silva em 2008, e da validação do projeto polêmico de barragem de Belo Monte em 2011). Símbolo das renúncias dos anos PT: em 22 de Março de 2013, três meses antes da Copa das Confederações, e um ano antes do Mundial de futebol, vinte e três famílias de Índios de diferentes etnias, que moravam desde 2006 em cabanas tradicionais a cerca do antigo museu do Índio localizado perto do estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, foram expulsos pela polícia militar. Era claro: as autoridades queriam assim deixar o lugar livre para os investidores a cerca deste centro nevralgico do futebol brasileiro. No entanto pelo menos os dois, o Lula e a Dilma, tinham conseguido, uma após o outro, desacelerar significativamente o nível da desflorestação. Segundo dados do Ministério do Meio Ambiente, o desmatamento na Amazônia conheceu, entre 2004 e 2012, uma queda recorde de 80%; se o ritmo aumentara com mais intensidade desde então, a tendência pouco antes da demissão de Dilma Rousseff indicava novamente uma redução. E logo quando chegou, infiltrou a liderança da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), colocando lá um ruralista (em favor do agronegócio) e uma general.

Logo em Agosto de 2017, o presidente Temer anulou a demarcação de Jaraguá, uma terra indígena de 532 hectares localizada no Estado de São Paulo e povoada por Índios Guarani – esses, juntados aos Guarani Kaiowu do Mato Grosso do Sul, iniciaram então uma difícil campanha de resistência. No mesmo mês, o mesmo Temer revogou o estatuto da reserva natural (concedida em 1984) de Carajás, uma área de 4 milhões de hectares localizada entre os Estados do Pará e de Amapá, tornando esse espaço explorável por empresas de mineração; o decreto estipulava então que isto não coloca « em causa a aplicação da lei sobre a protecção da flora e dos territórios autóctones » – compreende quem poderá. A corrida pelo ouro, ferro, manganês e tântalo foi lançada, momentaneamente interrompida, poucos dias depois da adopção do decreto presidencial, por decisão da Justiça federal brasileira que reclamara um voto do Congresso nacional sobre a abrogação da reserva. Quando sabemos o nível de segurança que existe nos sítios de exploração mineral no Brasil, há motivo para preocupar-se com esse tipo de iniciativa – os desastres ambientais decorrentes do fracasso das barragens de Bento Rodrigues, em Novembro de 2015, e Brumadinho, em Janeiro de 2019, ambos no Estado de Minas Gerais, são ilustrativos, com custo milhões de toneladas de lama despejada (incluindo em áreas povoadas) provinda de sítios de exploração mineira, que entre outras coisas contaminaram as águas do rio Doce até o Atlântica.

Além disso, o número de invasões de terras indígenas já havia aumentado significativamente entre 2016 e 2017, passando de 59 para 96 casos, ilustrando a falta de interesse que o governo Temer tinha para a proteção das terras indígenas diante das incursões das milícias privadas ao serviço de investidores sem escrúpulos. Segundo o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), centenas de Índios morreram nos últimos anos em confrontos ou assassinatos em conflitos ligados ao desmatamento e à invasões de terras. Um dos casos os mais famosos foi o de Maria da Lurdes Fernandes Silva, ativista comunitária que defendia os direitos à terra e denunciava a apropriação ilegal de terras na sua região, no Pará, sendo por isso vítima de frequentes ameaças de morte; ela foi matada por baleamento, com o marido, na sua própria casa, em 26 de Julho de 2017 –  claro, os assassinos nunca foram apanhados nem identificados.

Apesar desta situação já preocupante, o contexto ainda (já!) se agravou desde que o novo executivo assumiu o cargo, em Janeiro. As incursões nos territórios indígenas conhecerem uma aceleração com a eleição do Bolsonaro. Sobretudo, o desmatamento aumentou em 54% na Amazônia já em Janeiro, em comparação com a mesma altura no ano anterior, segundo os primeiros dados de 2019 registrados pelo Sistema de Alerta de Desmatamento publicado pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON). No total, 108 km² foram desmatados, nos quais 37% só no Estado do Pará, seguido pelos Estados do Mato Grosso (32%), de Roraima (16%), de Rondônia (8%), de Amazônias (6%) e de do Acre (1%). Acima de tudo, a maior parte do desmatamento teria ocorrido em áreas privadas, preservadas e ocupadas pelos Índios, o que significa um afrouxamento do contrôle governamental, bem como demarcação e uma corrida pelo desmatamento. Mais recentemente, foram dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) que alertaram a opinião pública: em Maio, com base imagens satélitas, constatou-se no mês inteiro a desflorestação de 739 km², ou seja o equivalente de dois terrenos de futebola por minuto.

Num afluente do rio Amazonas, no Estado de Amazonas.

Num afluente do rio Amazonas, no Estado de Amazonas.

Bolsonaro: o poder dado aos militares e ao agronegócio

Antes mesmo da sua eleição, Jair Bolsonaro tinha-se declarado muito favorável ao lobby do agronegócio, particularmente potente no Brasil. Pouco depois da sua vitória, ele acrescentou que pretendia rever o mapa das reservas indígenas, considerando-as « sobre-dimensionadas », para as abrir à exploração mineira e legalizar o garimpo de ouro apesar daquela atividade ser acusada de poluir os rios com mercúrio. Logo em 1 de Janeiro de 2019, na sua tomada de posse, a decisão era confirmada: a responsabilidade da identificação, da delimitação, do reconhecimento e da demarcação das terras indígenas foi então transferida para o Ministério da Agricultura, liderado pela ministra Tereza Cristina Dias, líder da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) e fervorosa defensora do agronegócio – ela está valorizando o uso massivo de pesticidos altamente tóxicos para os seres humanos e os solos enquanto modifica ao mesmo tempo a reglementação ligada à saúde pública com objetivo apresentar um perigo fraco. A Fundação Nacional do Índio (FUNAI) perdeu o pouco poder que possuía e está agora subordinada ao novo Ministério da Mulher, Família e Direitos humanos. Por lembrança, no Congresso nacional, em sua composição após as últimas eleições legislativas, coexistem três movimentos parlamentares informais, três lobbies particularmente poderosas que transcendem os partidos sentados no Parlamento. São os famosos « BBB », identificados segundo os interesses defendidos: o lobby pró-Bíblia, pró-balas e pró-boi, o primeiro levado pelos evangelistas e caracterizado por sua defesa dos valores tradicionais associados à família (muito anti-aborto e anti-casamento homossexual), o segundo favorável à liberalização total das armas de fogo e à « privatização » da segurança, e o terceiro pró-agronegócio. Claro, essas três « bancadas » foram muito satisfeitos pelo resultado do segundo torno da última eleição presidencial.

O Ministério do Meio Ambiente é, desde a metade do mês de Abril, conhece uma onda de demissões, de dispensas e de substituições de quadros dirigentes. E frente a ameaças de sanções formuladas pelo ministro Ricardo Salles, o presidente do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio, responsável das unidades de conservação florestal do país), Adalberto Eberhard, e com ele dois diretores (Luiz Felipe de Luca e Gabriel Henrique) e o presidente-suplente também renunciaram aos suas funções; no mesmo dia, em 24 de Abril, o Jornal oficial informou também sobre a demissão de três quadros do Ministério do Meio Ambiente: Fernando dos Santos Weber, que dirigia desde Janeiro de 2017 uma unidade do ICMBio no Rio Grande do Sul, e Raiane de Melo Viana e Rafael Pereira Pinto, quadros de uma zona de proteção ambiental em Minas Gerais. A seguir desta onda de idas, foram nomeados pelo ministro, às cargas de direção desocupadas, oficiais da polícia militar de São Paulo: o coronel Fernando Lorencini, o tenente-coronel Marcos Simonovic, o major Marcos Aurélio Venâncio e o coronel Marcos José Pereira. O presidente do IMCBio é agora o coronel Homero de Giorge Cerqueira, enquanto Weber foi substituído por um representante do agronegócio.

O processo de militarização do setor ambiental do governo é sob direção do presidente Bolsonaro, e realizado pelo ministro Ricardo Salles. Segundo o chefe do Estado, o objetivo é por fim ao âmbito ideológico do setor ambiental, supostamente dirigido por ONGs e outras entidades que ele julga ilegítimas. A política governamental orienta agora a questão ambiental no meio urbano, para deixar a zona rural « livre ». Ainda em 13 de Abril, Bolsonaro negou a inspecção do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA, o ramo administrativo do Ministério do Meio Ambiente) na floresta nacional de Jamari, em Rondônia, enquanto ela constitui uma das dez florestas que foi mais desmatadas em Março, segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (IMAZON).

Claro, isto tudo acompanhou-se com cortas no orçamento do IBAMA (24% do orçamento anual, ou seja um trimestre de despesas previstas em 2019) e no do ICMBio. Na agenda política agora: o governo quer autorizar os produtores rurais a ter armas de fogo, e prevê-se a fusão do IBAMA e do ICMBio.

« Desde a eleição de Jair Bolsonaro,vivemos o começo de um apocalipse »: assim exprimiram-se 14 representantes de povos indígenas de diferentes continentes, entre os quais representantes de comunidades amazônicas, numa tribuna publicada em 10 de Abril de 2019 (no jornal francês Le Monde) chamando a proteger a dimensão « sagrada » da natureza e a opor-se aos projetos do chefe do Estado. « Hoje somos particularmente preocupados com a situação no Brasil, desde a eleição do novo presidente Jair Bolsonaro,, escrevem eles. Desde cem dias, temos vivido o início de um apocalipse, do qual os povos indígenas são as primeiras vítimas. »

Entre os muitos projetos apoiados pelo executivo, podemos notar a exploração da reserva de Raposa Serra do Sol. Essa área, que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana (Estado de Roraima), na qual vivem 17 mil indígenas, enorme terra indígena, é também, por sua maior infelicidade, a segunda maior reserva de urânio do mundo. Além disso, foi desmarcada em 2005 com mais de 17.000 km², e também contém grandes jazidas de minerais, como ouro, estanho, cobre, como também nióbio, um metal leve usado na siderurgia e na aeronáutica. Em 17 de Dezembro de 2018 Jair Bolsonaro, então recentemente eleito, uns dias antes da tomada de posse, declarava a sua convicção que há como explorar de maneira irracional essa área, com compensações em dinheiro para os indígenas – e os « integrando » à sociedade…

No mesmo tempo, Bolsonaro questionou a participação do Brasil ao Acordo de Paris sobre a mudança climática, e anunciou a sua vontade de permitir a retomada de estudos para a construção de usinas hidrelétricas na Amazônia. Uma iniciativa que romperia os ecossistemas ligados ao rio Amazonas e seus afluentes, e forçaria o deslocamento de populações. Opõem-se duas visões da natureza e do progresso que são profundamente contrárias. Como o analisamos a pouco tempo num outro artigo, a primeira, atualmente no poder, olha a segunda com desprezo, cheio de um olhar euro-centrado e racista (Brasil: será que « Índio não quer terra, quer dignidade »?).

Num afluente meridional do rio Amazonas, no Estado de Amazonas.

Num afluente meridional do rio Amazonas, no Estado de Amazonas.

Os povos indígenas do Tapajós (Sudoeste do Estado do Pará) foram duramente atingidos pelo corte de recursos e de cargos feitos na FUNAI pelo governo. Alessadra Korape Munduruku, coordenadora da associação indígena Pariri-Munduruku Médio Tapajós – os Índios Munduruku são presentes no alto e médio Tapajós , teve a ocasião, no final de Abril, no âmbito do Acampamento Terra Livre em Brasília, de levar uma vibrante advocacia no Congresso nacional, em Brasília. Ela declarou então: « Estão invadindo as nossas terras! [...] E as nossas terras não são desmarcadas: por que não é desmarcada as nossas terras ? por que a terra indígena não é desmarcada? [...] O governo não dá obrigação de desmarcar as nossas terras! Saiu a FUNAI, não existe mais. Colocaram a FUNAI prá agricultura. [A ministra] não conhece quem é indígena, ela não conhece a terra indígena, ela não conhece o Índio, ela não conhece a vida. A Tereza Cristina não sabe. » E ela acrescentava, num grito do coração: « Respeita o nosso território, respeita o nosso direita, respeita o nosso antepassado. porque desde 519 anos, nós estamos resistindo, e dizendo: mesmo que tirar a nossa raiz, ela tá lá [...] crescendo, e ela vai criar umas frutas, e as flores vão se espalhar! »

Os representantes do Acampamento foram recebidos pelo Supremo Tribunal Federal; no congresso, os líderes indígenas participaram a audiências públicas e foram recebidas pelos presidentes da Câmara dos deputados, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Os dois declararam-se favoráveis à « restauração da competência da FUNAI em matéria de demarcação das terras autóctones e à sua volta no ministério da Justiça ». No entanto, e embora as instituições científicas e universitárias, que apoiaram o Acampamento, continuam mobilizando-se contra as reformas do setor ambiental e a regressão da política governamental no tal setor, o futuro parece bem obscuro para os indígenas, com a perspectiva de militarização das instituições encarregadas da preservação do meio ambiente (IBAMA, ICMBio...). As comunidades estão encostadas à parede.

Em 15 de Maio passado, a decisão da Justiça brasileira (via o Tribunal Regional Federal da Primeira Região) que concedeu antecipação de tutela para suspender a reintegração de posse que determinava a retirada dos Índios Pataxó da terra indígena Comexatibá, no município baiano de Prado, sobre pedido do Ministério Público Federal que considera que as terras estão em procedimento de demarcação, mostra a importância que vai ter o Estado de direito na proteção dos indígenas e dos seus direitos, frente às agressões do governo. Deste ponto de vista, os quatro próximos anos vão constituir um teste terrível para a democracia brasileira. Por lembrança, o procurador regional da República explicou então (era o mês passado), que a posse indígena fundamenta-se em disposições constitucionais expressas (e não num título civil ordinário): « A proteção possessória às terras indígenas independe de título, sendo suficiente a demarcação territorial e o laudo antropológico confirmando a posse imemorial. »

No extrato seguinte, a mesma faz uma intervenção, na mesma altura do Acampamento Terra Livre em Brasília (que reuniu no final de Abril 4.000 pessoas, indígenas apoiados por militantes ecologistas e científicos); ela denuncia as consequências da degradação acelerada do meio ambiente no modo de vida indígena.

Quem tá sendo afectado, somos nós. Tá lá a soja, tão lá os graneleiros. [...] Tá matando os nossos peixes! Para mim atravessar, da minha aldeia pra outro lado, tenho medo da bargaço. A bargaço enorme! Como eu vou ensinar o meu filho a pescar, [com] o graneleiro lá perto do nosso rio. O rio Tapajós tá sendo contaminado pela soja, pelos agrotóxicos. [...] Por quê que o peixe tá podre? Será nós que estamos contaminando peixe?  [...]

É nossa casa! [...] A deputada estava lá, o senador... Passaram noite, mas não vão lá visitar. Vêm dizer: « Mora Índio ai? Mora povo ai? » Mas não, não vão perguntar, não! « Será que mora ribeirinho lá? Será que o pessoal que depende do peixe, o pescador, tá lá pescando? » Tem que sair de madrugada, passa 4 dias pescando, as vezes não pega. Para vender e sustentar sua família. E nós, que temos que pescar, sai de madrugada, não pega nem dois peixes, e chega. « Não meu filho, vamos pescar de novo, porque só tem isso. » Mas por quê que tem só isso? Porque estão invadindo o rio Tapajós.

Tá cheio de porto. Nós temos que passar 2 ou 3 dias agora, pescando, para sustentar os nossos filhos. É muito zuado, de baixo. É muito zuado, de bargaço. Cada vez que tou comprando território lá, os Mato-grosseiros ou sei lá o quê, construindo porto. O porto, que tá nos sufocando! A nossa aldeia tá ficando meio desempreendimento, e cada vez tá avançando. Mas tão perguntando prá gente, como será que nós estamos vivendo? Os impactos do que nós estamos vivendo com o peixe, com os animais que estão se afastando?

Eu tenho o direito de vir aqui dizer: « [...] Não queremos porto [nem] hidrelétrica! [...] » Queremos vida, queremos o nosso território desmarcado. Isso é o dever do governo!Nós não viemos invadir o Brasil, como vocês inventam. Quando vocês chegaram aqui, há 1500 anos, nós já tava aqui. Mas o homem chegou, pra enganar, com espelho. Mas não nos [deixaremos] ser enganados com espelho mais, não. Nós queremos a nossa vida! Queremos a nossa casa em paz! Não quero ser enganado como fizeram com Belo Monte, não. Nós não queremos ser massacrados como o fizeram com Belo Monte. Nós queremos o nosso rio, vivo, sem barragem, sem agrotóxicos. [...]

Quando mostra lá o que vai na mesa do povo brasileiro, para mim é mentir. Porque na mesa do Brasileiro, vai macaxeira, vai carne, vai frango, vai peixe. Quando falar de vegetação, mas que vegetação? Contaminando as nascentes de vocês.

E quer acabar agora com o nosso território. Agora querem acabar com as nossas nascentes, com o nosso rio, sem nos perguntar: « Índio, vocês querem isso? » Não! Só querem invadir, só querem aprovar projetos que nos massacres. E nós não vamos deixar, o povo índio não vai deixar! Junto com o ribeirinho, [...] Nós também fizemos uma aliança com o ribeirinho. Nós temos protocolo do Munduruku Ribeirinho, e Montanha e Mangabal, e do Pimental. Precisamos ser consultados. O pescador também precisa ser consultado. Que nos ouvem!

O IBAMA tá ai. Mas o IBAMA é o qué mesmo? Dá licença pra quem? Será que é pra nós? Não. Prós grandes. [...] Quando é pra cortar o pé do castanho, o IBAMA vai lá. [...] Quando é pra acabar com milhares de hectares, o IBAMA o qué que dá? Dá licença! Deu licença pra Belo Monte. Dá uma licença pró rio Teles Pires! [...] O povo do Munduruku já não pode fazer ritual, porque eles mataram a mãe dos peixes! Nosso povo tá lá, sofrendo! Onde era o nosso território, nós não podemos ir lá, porque o IBAMA deu licença para construir grande empreendimento. Pra nos matar. Pra que serve o ICMBio, pra que serve o IBAMA? Só pra ganhar à nossa custa! [...]

Precisamos ser consultado, é nossa terra! Quando foram pra lá na nossa terra, nos consultam pelo menos. Porque isso é falta de respeito. Nós não somos objetos de ninguém. Nós temos a nossa autonomia de decidir. Os caciques, os pais, as crianças, as mulheres, todos eles precisam ser consultados.

Alessadra Korape Munduruku, intervenção de Abril de 2019 em Brasília.

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