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O acendedor de lampiões

Brasil: crônicas das resistências negras

20 Novembre 2019 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Brasil, #História, #Identidade

Praça Terreiro de Jesus, bairro do Pelourinho, no centro histórico de Salvador (Estado da Bahia).

Praça Terreiro de Jesus, bairro do Pelourinho, no centro histórico de Salvador (Estado da Bahia).

« No Pelourinho, não tem uma igreja, uma pedra que não está coberta pelo sangue dos escravos ». Essas palavras são de Tatiana, Brasileira envolvida na promoção da cultura afrobrasileira. Estamos no centro histórico de Salvador, no Estado da Bahia, frente à igreja São Francisco de Asis, um dos numerósos monumentos de estilo Rococó que foram construídos aqui no tempo da cana-de-açúcar e da exploração das minas de ouro, nos séculos XVII e XVIII. O sacrifício humano que representou a construção desse sumptuoso patrimônio arquitetônico, herança do Brasil colonial, raramente é mencionado nos percursos turísticos que levam milhares de pessoas a visitar as inumeráveis igrejas do país.

Entre 1550 e 1850, o Brasil representou 40% do comércio de escravos no Atlântico, ou acerca de 5,5 milhões de Africanos. O colonizador português tentou escravizar os indígenas para explorar a cana-de-açúcar e a madeira, mas muitos fugiam na selva ou morriam rapidamente por causa do trabalho servil. Alguns até preferiam cometer suicídio do que ser escravizados. Os Portugueses recorreram então, a partir de 1532, a escravos negros da África – dos quais 73% teriam vindo de Angola e do vale do Congo, 17% de Moçambique e 10% da África Ocidental. A colonização do continente americano exigia principalmente escravos de sexo masculino, na proporção de dois homens para uma mulher. Até 1888, ano da abolição da escravatura no Brasil, o país importou mais de oito gerações de Africanos. Durante quatro séculos, Africanos de diversas origens, e seus descendentes, foram explorados nos latifúndios, nas minas e nas cidades brasileiras.

A escravidão e a sua herança social tomaram um papel importantíssimo na memória e na consciência coletivas, pois explicam em grande parte o caráter discriminatório da sociedade brasileira. No entanto, esta memória não deve apenas contar a história de uma exploração humana que seria completamente linear. Ela pode também mostrar o rosto orgulhoso de uma resistência e de uma identidade negras, que se revelaram e matos corajosos e em estratégias de luta. Estas são algumas das histórias de resistência negra no Brasil.

Igreja de estilo rococó do século XVIII, Ouro Preto.

A lenda de Chico Rei, o escravo que se alforriou e que voltou a ser rei

Chico Rei transformou-se numa figura lendária, considerada um símbolo da liberdade do Brasil, principalmente em Minas Gerais, região que conheceu um período intenso de importação de escravos africanos ao longo do século XVIII, a partir da descoberta de minas de ouro pelos bandeirantes.

Chico Rei nasceu provavelmente no final do século XVII. Era originalmente o rei de uma tribo pigmeu, chamado Galanga, e que do reino do Congo foi trazido como escravo para o Brasil por comerciantes portugueses, traficantes de escravos. Chegou ao Brasil em 1739 no navio Madalena. Da sua família, somente ele e um filho, Muzinga, tinham sobrevivido. A rainha Djalô e a filha, a princesa Itulo, foram jogadas para o Oceano durante a viajem, com outros escravos, aparentemente para aplacar a ira divina da tempestade, que quase afundou o navio.

Todo o lote de escravos cujo pertencia Galanga foi desembarcado no Rio de Janeiro, e batizado – tomando o nome « Francisco ». Juntamente com o filho dele, foi comprado pelo major Augusto, proprietário da mina da Encardideira, e levado para Vila Rica em 1740, no bairro Antônio Dias. Naquela época, a cidade contava com uma grande maioria de negros. Os brancos eram sobretudo comerciantes (incluído traficantes de escravos), artesãos e funcionários trabalhando pela Coroa portuguesa.

O escravo não esmoreceu, e começou a juntar seu ouro, migalha a migalha, comprando a alforria dele e do filho em 1745. Segundo a tradição oral, o precioso metal foi juntado de forma bem criativa: escondia o ouro em pó entre os cabelos e depois os lavavam na pia batismal da igreja, sendo acobertados pelos padres. No dia 6 de Janeiro de 1747, Vila Rica foi surpreendida com uma festa que desconhecia, quando Galanga e seus patrícios, alforriados por ele, apareceram na capela de Nossa Senhora do Rosário com uma indumentária. Dançaram o Congado, uma cerimônia simulando a coroação do rei no Congo (que foi observada a partir de 1674 no Nordeste). Essa cerimônia fez-se aparentemente com o acordo do Governor geral do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade. Francisco foi então coroado rei do congado e se tornou conhecido como Chico Rei.

Chico Rei, já conhecido pela sua generosidade, comprou a mina da Encardideira – o major estava doente e cumulava as dívidas, e por isso lhe vendeu facilmente. Aos poucos, foi comprando a alforria de seus compatriotas que vieram com ele no Madalena, provavelmente nas décadas 1750 e 1760. Todos sabiam que sua mina de ouro só rendia para alforriar os escravos.

Estátua representando Chico Rei, Ouro Preto.

A vida religiosa, representada pela devoção a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Santa Efigênia, esteve presente na vida do Chico Rei. Junto com outros negros, ele construiu en 1785 a modéstia igreja dedicada àquelas santas no bairro Alto da Cruz, no alto do morro para ser vista de todos. Ali Chico Rei foi crismado e casou-se pela segunda vez com Antônia, filha do sacristão da igreja. A edificação dessa igreja permitiu ainda que os negros realizassem as suas festas, com as danças e cantos em louvor às santas protetoras.

Nessa mesma época, foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de Santa Efigênia, a maior da região nos tempos coloniais. Essa Irmandade e a sua devoção à Santa Efigênia cresceram com fé robusta.

Chico Rei morreu de hepatite aos 72 anos de idade, e seu filho foi coroado o novo rei do congado – uma tradição que até hoje continua sendo praticada. A coroa portuguesa levou a sério o caso excepcional deste escravo que conseguiu alforriar-se, comprar uma mina cujos benefícios serviam a libertar escravos, e que foi coroado rei numa cerimónia com forte referência africana. Por isso proibiram aos escravos de comprar sua liberdade, e perseguiram os companheiros de Chico Rei, obrigando o filho dele a fugir.

A história de Chico Rei não possui registros. Ela aparece, sem qualquer comprovação documental, em uma nota escrita pelo historiador Diogo de Vasconcelos, em seu livro História Antiga de Minas, de 1904. Todos os demais documentos sobre Chico Rei são posteriores a 1904, o que deu para pensar que foi apenas uma lenda, uma personagem de ficção. No entanto, sabe-se que muitos documentos desapareceram ao longo dos anos, e muitos consideram que a tradição oral manteve a memória de Chico Rei, cumulando-se com vários outros fatos que lhes foram atribuídos, a ele ou a seus companheiros, como por exemplo a construção da igreja de Santa Efigênia e Nossa Senhora do Rosário, que hoje está localizada no centro histórico de Ouro Preto.

Precarnaval em Ouro Preto, com uma representação de Chico Rei.
Precarnaval em Ouro Preto, com uma representação de Chico Rei.
Precarnaval em Ouro Preto, com uma representação de Chico Rei.

Precarnaval em Ouro Preto, com uma representação de Chico Rei.

Vários setores artísticos produziram obras sobre Chico Rei. Só alguns exemplos: em 1964, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos do Salgueiro, uma das mais famosas escolas de samba do Rio de Janeiro, disputou o Carnaval carioca com enredo sobre a lenda de Chico Rei do carnavalesco Joãosinho Trinta. Dois anos mais tarde, em 1966, o romancista Agripa de Vasconcelos, tendo como fonte a nota de Diogo de Vasconcelos, escreveu o romance Chico Rei. Mais tarde, em 1985, o cineasta realizou o filme Chico Rei. Ao ser redescoberta em 1946 pelos filhos da atual proprietária, a mina foi batizada com o nome de Mina de Chico Rei. Ela está aberta ao público e contribui assim a promoção da memória e da lenda.

O Quilombo dos Palmares: quando os escravos pegavam as armas e tornavam-se independantes

Estendendo-se de meados do século XVI aos fins do XIX, a escravidão, nas Américas, de africanos e descendentes, foi um dos episódios mais dolorosos da História da Humanidade. Mas a toda essa crueldade, que despovoou a África e vitimou milhões de seus melhores filhos, opôs-se um modelo de resistência admirável: os quilombos.

Serra da Barriga, Estado de Alagoas.

Na Angola pré-colonial, esses mitos de arraiais militares e núcleos habitacionais e comerciais abertos a africanos de qualquer etnia, já desempenhavam um papel político e econômico fundamental. Transplantada para as Américas, a instituição (chamada cumbe ou palenque na América hispânica) firmou sua importância na resistência à escravidão. Mas de todos os quilombos americanos, sem dúvida, o mais importante foi a confederação dos Palmares, nascida por volta de 1590, quando escravos de um engenho pernambucano, depois de uma rebelião sangrenta, refugiaram-se na serra da Barriga, atual Alagoas, e lá criaram as bases de um incômodo Estado livre em pleno Brasil colonial.

O Quilombo dos Palmares contava com afro-descendentes, mas também com indígenas e brancos. De maneira geral, foi fundamental para a sobrevivência dos Quilombolas (habitantes do quilombo), o conhecimento da cultura indígena e seus valores. Pesquisas arqueológicas trouxeram à luz a presença do índio na ocupação da Serra da Barriga, centenas de anos antes da chegada dos Europeus no Brasil, até a formação dos Quilombos. A vida doméstica girava em torna de grandes ocas, vestígios que ainda restam no sitio arqueológico. Já foram encontrados diversos artefatos, como potes, urnas funerárias, cachimbos feitos de barro queimado, ferramentas de lítico (pedra), incluindo machados e raspadores).

Os Quilombolas praticavam um modo de organização comunitário, semelhante àquele que praticavam os ancestrais deles, na África, com simplesmente alguns chefes de guerra assumindo a liderança da defesa do quilombo. Até a destruição de seu reduto principal em 1694, cem anos depois, Palmares foi, de fato, um verdadeiro Estado autônomo encravado na capitania de Pernambuco: no auge de sua produtiva existência, estima-se a umas 30 000 pessoas a população, e suas relações com as comunidades vizinhas chegaram a ter momentos de uma troca econômica rica e organizada. Estendeu-se desde as cercanias do Cabo de Santo Agostinho, em Pernambuco, até a região ao norte do rio São Francisco, em Alagoas: equivalia então a uma terça parte do território de Portugal e estava rodeado por um anel de matas selvagens. O chefe máximo era eleito entre os mais hábeis e sagazes: reinava o homem « de maior prestígio e felicidade na guerra ou no comando » (Nina Rodrigues, Os africanos no Brasil, 1932).

Praticava-se uma agricultura diversificada, que permitia uma valorização inteligente da terra (muito fértil nessa região), e uma cerealicultura inspirada das tradições africanas: mandioca, feijão, milho, batata, banana – enquanto as sociedades portuguesa ou holandesa praticavam a monocultura da cana-de-açúcar (estragando a qualidade dos solos) que monopolizava a mão-de-obra (livre ou servil) e deixava as culturas alimentares. Não era por acaso se, naquela época, a destruição das culturas era muitas vezes a prioridade das tropas coloniais. No seu livro As veias abertas da América Latina (1971), o escritor uruguaio Eduardo Galeano escreveu: « Em plena época das plantações açucareiras onipotentes, Palmares era o único lugar do Brasil em que se desenvolvia a policultura. Orientados pela experiência adquirida pore les mesmos ou por seus antepassados nas savanas ou em selvas tropicais da África, os negros cultivavam milho, batata, feijões, mandioca, bananas e outros alimentos ».

Reconstituição no antigo quilombo dos Palmares.

Reconstituição no antigo quilombo dos Palmares.

Homenagem aos Quilombolas dos Palmares.

Homenagem aos Quilombolas dos Palmares.

Reconstituição no antigo quilombo dos Palmares.

Essa autonomia do Quilombo dos Palmares, abalando a autoridade colonial, motivou uma repressão jamais vista. De 1596 a 1716, ano da destruição de seu último reduto, os Palmarinos suportaram investidas de 66 expedições militares e atacaram 31 vezes. A capacidade de resistência dos Palmares obrigou o governador da capitania Pernambuco, Pedro de Almeida, a propor em 1678 uma trégua a um dos chefes Quilombolas, Ganga-Zumba, que a aceitou, pois garantia o perdão e a vida aos seus concidadãos. Filho da princesa Aqualtune, Ganga-Zumba reinou durante décadas, levantou assim Palmares ao apogeu e a ser reconhecido como nação pela coroa portuguesa. Assinou um pacto em 1678 com o governador. No entanto, o pacto foi percebido pelos Quilombolas como uma traição, e Ganga-Zumba foi assassinado no mocambo de Cacaú.

Em 1680, Zumbi dos Palmares, o mais famoso chefe do quilombo, tomou a liderança da resistência contra a coroa portuguesa. Foi só em 1694, quase quinze anos mais tarde, que os Portugueses, comandados por Domingos Velho e Bernardo Vieira de Melo, conseguiram acabar com a Cerca do Macaco, centro nevrálgico da confederação.

Protegidos pela densa mata atlântica, os Quilombolas, usavam tática de guerrilha avançada, surpreendendo e derrotando dezenas de expedições portuguesas e holandesas ao longo de décadas. Sitiando a Serra da Barriga, as tropas portuguesas somente conseguiram romper e adentrar o reduto palmarino usando armamento pesado – canhões e escopetas. Aqui, a história registra o maior número de homens, mulheres e crianças mortos e degolados em combates. Esse genocídio aconteceu na madrugada do dia 6 de fevereiro de 1694.

No antigo quilombo dos Palmares.

Eduardo Galeano descreve assim a queda do quilombo: « Para a batalha final, a coroa portuguesa mobilizou o maior exército conhecido até a muito posterior independência do Brasil. Não menos de 10 mil pessoas defenderam a última fortaleza de Palmares; os sobreviventes foram degolados, lançados em precipícios ou vendidos a mercadores do Rio de Janeiro e Buenos Aires. Dois anos depois, o chefe Zumbi que os escravos consideravam imortal, não conseguiu escapar de uma traição. Encurralado na floresta, foi decapitado. Mas as rebeliões continuaram. Não passaria muito tempo para que o capitão Bartolomeu Bueno do Prado regressasse do rio das Mortes com os troféus de sua vitória contra uma nova sublevação de escravos. Trazia 3 900 pares de orelhas nos alforjes de seus cavalos ». De fato, Zumbi, que tinha conseguido fugir na serra Dois Irmãos, foi morto à traição em 20 de novembro de 1695, aos 40 anos de idade. Foi então decapitado. Outros Quilombolas que conseguiram fugir, mudaram-se para a capitania da Paraíba, e criaram novos quilombos.

Menos conhecida que Zumbi, Dandara, sua esposa (e mãe das suas três crianças), participou também à organização da luta de Palmares.Descrita como uma grande guerreira que conhecia bem as técnicas da capoeira, ela parece ter tido um papel político e militar capital, ao lado de Zumbi. O personagem dela permanece no entanto envolta em mistérios e lendas, dado a ausência de dados sobre a vida e os atos dela. Ela suicidou-se após ter sido feito prisioneira em 6 de Fevereiro de 1694, durante a queda do sítio de Palmares.

Foi somente em 1995, no tricentenário da sua morte, que Zumbi foi oficialmente integrado à História do Brasil. Desde 2003, o dia 20 de Novembro (aniversário da morte do Zumbi) é feriado no Brasil, declarado Dia da Consciência Negra. E no que tem a ver com a sua companheira de luta, uma lei de Abril de 2019 inscreveu o nome de Dandara dos Palmares no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília.

As revoltas de escravos: o exemplo do levante dos Malês

Durante as primeiras décadas do século XIX, várias revoltas de escravos ocorreram na capitania da Bahia. Aquela que aconteceu na noite de 24 para 25 de Janeiro de 1835 em Salvador, com mais de 1 500 negros liderados pelos muçulmanos Manuel Calafate, Aprígio ou Pai Inácio, representa uma das mais significativas – dirigida contra a escravidão e as conversões forçadas ao catolicismo.

Os rebeldes africanos, conhecidos como Malês, nome pelo qual se designavam os muçulmanos, constituíam a maioria dos escravos empregados no trabalho urbano em Salvador – que eram um pouco mais « livres » de movimentar-se do que os escravos explorados nas culturas de cana-de açúcar, e que podiam algumas vezes poupar um pouco de dinheiro. Frequentando as ruas, em contínuo contato com outros escravos e libertos, eles conseguiram um extraordinário grau de organização para planear um levante que deveria estender-se por todo o Recôncavo baiano, ameaçando espalhar-se por outros estados do Nordeste, como já antes ocorrera com uma revolta dos Haussás en 1807. Para isso contribuiu também sua identidade étnica e religiosa, e o fato de muitos Malês serem alfabetizados, sabendo ler e escrever em árabe. Isto lhes deu uma grande coesão e eficácia para organizar-se na luta contra senhores que, além do mais, consideravam como « infiéis ».

« Castigo público na Piazza di Sant'Ana » (1835).

Em preparação dessa revolta no dia 25 de Janeiro de 1835, os Malês liderando o levante tinham cumulado dinheiro para comprar armas e redigido planos (em árabe), mas eles foram traídos por uma mulher negra, que denunciou a conspiração às autoridades portuguesas. Mesmo assim, os rebeldes tentaram atacar o campo militar da cidade de Salvador, sem sucesso.

Debalada em poucas horas, a revolta deu lugar, no entanto, a uma feroz repressão, que resultou na morte de dezenas de escravos e em processos contra centenas de outros, concluídos com a deportação para a África de mais de quinhentos deles. Entretanto, divulgadas notícias a esse respeito no Brasil e no exterior, o levante também deu lugar a um intenso debate sobre a escravidão, revelando a inquietação da população branca ante o contigente de escravos que, na Bahia da época, representava cerca de 40% da população.

Muito se discutiu sobre a natureza desse levante, que seria talvez uma continuação no Novo Mondo do Jihad, guerra santa muçulmana na África, devendo nesse caso estar a combater também os mulatos e os negros cristãos. No entanto, o grande número de escravos e libertos de outras origens étnicas e religiosas, negros e mestiços, envolvidos no levante, mostra a motivação claramente política da rebelião que os Malês pretenderam liderar.

As religiões afrobrasileiras: a arte do sincretismo

Pelo sincretismo que representa, as religiões afrobrasileiras permitiram manter elementos fortes das culturas africanas chegadas no continente americano com milhões de escravos nos quatro séculos de Comércio Atlântico. Elas são o resultado do encontro e confronto entre três grandes matrizes de religiosidade: a das heranças africanas, das tradições indígenas e do catolicismo português. O desenvolvimento do candomblé é, portanto, resultado do contato entre os grupos raciais e sociais formadores da sociedade brasileira, que repercute no plano religioso as imposições, contradições e aproximações existentes nas relações entre negros, brancos e índios.

Nas ruas de Salvador da Bahia.

Nas ruas de Salvador da Bahia.

O que permitiu o desenvolvimento de religiões a princípio estigmatizadas, como a dos negros e indígenas frente às pressões do catolicismo, foram as semelhanças estruturais entre o catolicismo popular, as religiões indígenas e os cultos africanos (como a devoção às entidades intercessoras, o aspecto mágico que envolve essa devoção, entre outras características). Desta forma, uma rica e ampla gama de religiões afrobrasileiras pôde se formar – umas mais próximas das contribuições indígenas e bantos, como a pajelança (medicina tradicional índia), o catimbó (práticas espirituais e mágicas índias), a umbanda e o candomblé de caboclo (religiões afrobrasileiras, a primeira mais praticada por negros, a segunda por descendantes de indígenas). Outras mais próximas das contribuições jeje-nagô (fusão de crenças Vodum e Orixás), como o candomblé da Bahia, o xangô do Recife e o tambor de mina do Maranhão.

No candomblé, por meio de seus ritos e mitos, os grupos negros puderam reelaborar sua identidade social sob as condições adversas da escravidão e posteriormente do desamparo social, tendo como referência os valores religiosos de origem africana. O candomblé usa nos seus rituais um vocabulário principalmente herdado dos idiomas do Golfo da Guiné como o Iorubá, o que confirma a preservação de uma parte das culturas de origem. Essa organização social e religiosa dos terreiros en certa medida permitiu a « reinvenção » da África no Brasil. No caso da umbanda por exemplo, de formação mais recente, seu desenvolvimento foi marcado pela busca, iniciada por segmentos brancos da classe média urbana, de um modelo de religião que pudesse integrar legitimamente as contribuições dos grupos que compõem a sociedade nacional.

Lutar através da dança e da cultura musical

A identidade afrobrasileira, através da qual a memória dos ancestrais e a luta contra a escravidão podiam prosperar, teve uma pauta de expressão através da música – sobretudo no Norte e no Nordeste onde as comunidades negras são mais importantes, mas não só. Inumeráveis estilos nasceram, e muito tempo foram marginalizados na sociedade brasileira – quando não eram simplesmente proibidos pelo Estado. Apresentamos aqui três exemplos emblemáticos: a capoeira, o maracatu e o samba.

« Capoeira ou dança da guerra » (gravura de 1835).

Ao mesmo tempo arte marcial, esporte, dança, música e cultura popular, a capoeira é hoje mundialmente conhecida. Foi primeiro desenvolvido no Brasil por afro-descendentes, a partir do século XVI – até considera-se que possa ter aparecido no Quilombo dos Palmares. A capoeira caracteriza-se por golpes e movimentos ágeis e complicados, usando os pés, a cabeça, os joelhos, os cotovelos, acrobacias aéreas e do chão. A musicalidade constitui sua principal especificidade, em comparação com outras artes marciais. Aqueles que a praticam, aprendem não somente a lutar mas também a tocar instrumentos típicos e a cantar. A palavra « Capoeira » vem do tupi kapu’era, que significa « a selva que foi », em referência à floresta, cujas partes eram cortadas e queimadas para permitir as plantações dos Índios.

No Brasil tanto como no resto da América latina, os escravos africanos tinham que trabalhar à força nas minas, nas plantações ou nas casas, adotar a língua portuguesa e a religião católica. A capoeira, nesse contexto, foi uma forma de revolta contra um tratamento extremamente violento, e permitia que aprendessem a lutar, fingindo que era somente uma dança inspirada de rituais de origem africana (provavelmente do Sul da Angola).

A capoeira foi proibida por um decreto em 1890 – somente dois anos após a abolição da escravidão e um ano após a proclamação da república no Brasil – e por isso praticou-se em segredo. Aqueles que eram surpreendidos pela polícia praticando-a eram presos, torturados e muitas vezes fisicamente mutilados, como o mostra muito bem o filme Besouro (2009), do realizador e produtor brasileiro João Daniel Tikhomiroff. O filme descreve a lenda de Besouro Mangangá (1885-1924), considerado um dos maiores capoeiristas da História do Brasil – o nome de « Besouro » lhe foi dado porque os seus partidários contavam que ele tinha o poder de se transformar em besouro quando o seus adversários eram muitos, para escapar-se voando.

Foi só nos anos 1930 que apareceram as primeiras tentativas de criação de escolas e academias de capoeira, sobretudo em Salvador, no Estado da Bahia, sobre o nome definitivo de « capoeira angolana ». Hoje, é classificada « Património cultural imaterial da Humanidade » pela Unesco.

A música toma um papel fundamental na capoeira, com três berimbaus (instrumento típico, de corda, com origem em Angola), dois tambores e um atabaque (tambor tradicional). O formato pode mudar, pois pode-se enriquecer este orquestro com um agogô (um tipo de sino, com origem iorubá) ou com um reco-reco (uma percussão de madeira, também chamada dikanza, de origem angolana e muito usada no samba e na cumbia. Um dos berimbaus define o ritmo e o jogo da capoeira desenvolvidos na roda de capoeira. A música é que manda, não só o ritmo mas também o conteúdo.

Segundo estilo musical: o maracatu, um ritmo musical afrobrasileiro característico do carnaval pernambucano, cujas personagens comprovam a associação dessa manifestação com as coroações de reis africanos. Os escravos, reunidos em irmandades e protegidos por um santo católico, coroavam seus reis e rainhas e assim os reverenciavam publicamente em dias de festa. Rei e rainha do maracatu desfilam protegidos por um guarda-sol, acompanhados por príncipes, princesas, damas, embaixadores e outros nobres ricamente trajados. As damas do paco carregam as calungas, bonecas que simbolizam os antepassados africanos e/ou os orixás que têm grande importância para cada grupo.

Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).
Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).
Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).
Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).
Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).

Grupo de maracatu, nas ruas de Olinda (Estado de Pernambuco).

Dançarinas vestidas de baianas juntam-se à côrte real, que pode réunir centenas de pessoas. Alguns maracatus desfilam com bandeiras que contém os motivos e marcas visuais de uma « nação ». Os batuqueiros são responsáveis pelos tambores, agogôs, caixas, chocalhos e executam o « baque virado » - um ritmo típico do maracatu, executado por instrumentos de percussão e de sopro. O caboclo de lança, personagem folclórica herdada das culturas afro-indígenas, é considerado seu maior símbolo.

Vestido do « caboclo de lança », em Recife (Pernambuco).

Vestido do « caboclo de lança », em Recife (Pernambuco).

« O samba – Salgueiro » (por Manoel Faria, 1934).

O samba, talvez o estilo brasileiro que teve mais êxito no mundo, é um gênero musical e uma dança, que teria origem nas tradições africanas, sobretudo em Angola e no Congo. Nasceu no início do século XX nos bairros populares do Rio de Janeiro, onde muitos negros alforriados pelo fim da escravidão em 1888, tinham-se instalado. Considerado hoje uma das principais manifestações culturais populares brasileiras, deriva do samba de roda, um tipo de dança de raízes africanas nascido na Bahia, no Nordeste do país. O samba era no início muito influenciado por outros ritmos dessa época, como o maxixe (ritmo rápido) e a marcha (simples e binário). Desenvolveu-se com os anos em outras cidades com especificidades, em São Paulo, Salvador ou Belo Horizonte. Um dia nacional é hoje consagrado ao samba, no dia 2 de Dezembro. O samba tem usualmente instrumentos de percussão, a guitarra e o cavaquinho (um tipo de guitarra de origem portuguesa, com quatro cordas).

Ao princípio considerado muito obsceno, brutal e violento, o samba não foi imediatamente reconhecido e aceito. Os sambistas e todo o contexto socio-cultural que gerou o samba carioca eram marginalizados pela sociedade brasileira, marcada pelo racismo, pela estigmatização dos ritos de origem africana e pelo apreço dos privilégios herdados do sistema escravista. No dia 31 de Dezembro de 1922, o Jornal do Brasil noticiava: « No domingo passado, último dia da Festa da Penha, as autoridades policiais apreenderam todos os pandeiros que surgiram isolados, isto é, cujos donos não integravam conjuntos musicais ». E em 1963, Donga – um dos sambistas mais conhecidos, por ter sido o primeiro a gravar uma música qualificada de « samba » (Pelo telefone, em 1916) – relembrava que o preconceito e a criminalização do samba eram constantes na vida dos sambistas: « O fulano da polícia pegava o outro tocando violão, este sujeito estava perdido. Perdido! Pior que comunista, muito pior. Isso que estou lhe contando é verdade. Não era brincadeira, não. O castigo era seríssimo. O delegado te botava lá umas 24 horas ».

Com a complexificação musical, a legitimação social e a professionalização do samba, uma imagem foi ganhando forma e se fixou: a do « sambista », cantor(a), compositor(a), percussionista ou dançarino(a) estreitamente ligado(a) a uma agremiação ou outra organização do universo do samba. Essa imagem é, muitas vezes, preconceituosamente associada a malandragem ou mesmo vadiagem, em razão da marginalização da favela e de outros contextos socialmente menos favorecidos de onde quase sempre surgiram os sambistas.

Apesar dessa discriminação e da violência ainda praticada contra a cultura negra, a figura do sambista malandro das décadas 1920 e 1930 (de chapéu palheta, camisa listrada e calça branca) tornou-se também símbolo do carioca típico. Para as mulheres, o traje associado ao samba foi, durante muitas décadas, a roupa da baiana.

A história das lutas: uma herança ainda mal assumida na memória coletiva

O trabalho memorial faz-se lentamente, provavelmente demais para uma sociedade ainda marcada pelas desigualdades raciais e sociais. Um exemplo emblemático e ilustrativo é a figura de Tereza de Benguela, uma mulher que recentemente tornou-se símbolo da luta e de liderança pelas mulheres negras no Brasil. Apesar de sua trajetória remontar ao século XVIII, sua história foi pouco divulgada durante um longo período.

Retrato de Tereza de Benguela (por Félix Vallotton).

« Rainha Tereza », como ficou conhecida em seu tempo, liderou o Quilombo de Quariterê, na região do Vale Do Guaporé (no Mato Grosso), após a morte do seu marido, resistindo bravamente à escravidão por mais de 20 anos. Ela comandou a estrutura política, econômica e administrativa de uma comunidade misturando uma centena de negros e umas dezenas de Índios, enfrentando ao mesmo tempo diversas batidas da Coroa portuguesa. Ela desenvolveu o forjamento para que os cultivadores usam ferramentas, e com a introdução do ferro ampliou a produção de algodão – transformado localmente, os tecidos sendo exportados fora do quilombo. Teresa de Benguela sobreviveu até meados da década de 1770 (acerca de 1775), quando o quilombo foi destruído pelas forças do então governador da capitania.

A história de Tereza de Benguela demorou a ganhar projeção. Necessitou quase 250 anos o o seu reconhecimento. Uma lei aprovada em 2014 institui o 25 de Julho como o Dia Nacional de Tereza de Benguela e de Mulher Negra.

É claro que a importação de milhões de escravos marcou para sempre a sociedade brasileira. De um jeito que pode parecer paradoxal, o Brasil constitui uma nação multiracial que faz o elogio da mestiçagem – ao contrário da sociedade norte-americana, que se base mais numa lógica de igualdade racial (todos iguais, mas diferentes). A herança portuguesa para o Brasil, e britânica para os Estados Unidos, explicam provavelmente essa diferença fundamental; no Brasil, a mestiçagem fazia parte da estratégia de colonização e de dominação dos Portugueses.

No entanto, a sociedade construiu-se numa lógica hierárquica e desigual: no topo, temos a figura do branco, e o negro e o indígena são os seus pilares, de tal forma que fica difícil no Brasil distinguir os critérios sociais e raciais de identificação a uma classe social. Essa ambivalência entre o elogio da miscigenação e uma forte endogamia social torna o Brasil um país muito complexo e aparentemente contraditório. Mas o trabalho memorial é importantíssimo para a coesão do país, agora que as discriminações de hoje parecem a continuidade e a herança do sistema escravista. O caso dos quilombos é bem ilustrativo: várias comunidades brasileiras são as suas herdeiras e reivindicam um reconhecimento e a demarcação de suas terras (igual aos grupos indígenas da Amazônia). Bem verdade que o contexto político atual no Brasil não seja favorável, mas cada sociedade tem que assumir um olhar completo sobre o seu passado. Para identificar as lições da História, e o seus momentos de coragem e de luta pela liberdade.

Pinturas murais, Rio de Janeiro.
Pinturas murais, Rio de Janeiro.

Pinturas murais, Rio de Janeiro.

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