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O acendedor de lampiões

França: Anacaona, a escolha de uma literatura brasileira portadora de diversidade

10 Novembre 2021 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Brasil, #Identidade, #Sociedade

Em 20 de Novembro de 2019, Dia da consciência negra no Brasil, estavam reunidas em Paris quatro figuras centrais do feminismo interseccional e descolonial, no Centro Internacional de Cultura Popular, no 11° arrondissement: duas mulheres brasileiras, a filósofa Djamila Ribeiro e a urbanista Joice Berth; e duas Francesas, a politóloga e autora Françoise Vergès; e a autora e encenadora Gerty Dambury, originária de Guadalupe. Programa: feminismo, interseccionalidade, questionamentos sobre a ação militante, neocolonialismo e descolonialismo.

O encontro teve lugar sobre iniciativa conjunta da associação Autres Brésil, a qual organiza cada ano o festival « Brasil em Movimentos », e das edições Anacaona. Essa última editora distingue-se de muitos outros, pois ela traduz e publica, em francês, obras de autores brasileiros cuja particularidade, entre outras, é de pertencer a minorias ou grupos marginalizados: habitantes das favelas ou das regiões do Nordeste brasileiro, mulheres, comunidades indígenas, afrodescendentes, etc. Resultado: ela propõe aos leitores francófonos uma literatura que até então era inacessível aos não-lusófonos, e que exprime melhor que qualquer outra as realidades do « país do pau vermelho ». As palavras-pilares das edições Anacaona: diversidade, pluralismo, envolvimento!

A aventura das edições Anacaona começa em 2009, por iniciativa de Paula Anacaona, tradutora profissional, autora e apaixonada de literatura brasileira. Encontrada em 31 de Outubro de 2019 em Paris, ela nos conta: « Eu vi que havia poucos livros brasileiros que eram traduzidos. […] Nasceu realmente de uma paixão pela literatura brasileira. Cada vez que eu ia no Brasil, eu voltava a mala cheia de livros, mas as pessoas não podiam os ler. Portanto nasceu realmente de um desejo de partilhar: eu, falo português, mas muitas pessoas não o falam, portanto eu vou transmitir aquela paixão. É realmente isso o paixoneta inicial. É uma literatura que eu adoro, e o desejo de a partilhar. »

Um desafio ainda maior porque a promoção dos autores torna-se complicada pela distância e pela língua. Mas a subida dos questionamentos identitários e a maduridade do movimento interseccional em França tornam essa literatura brasileira relevante e abrem muitas oportunidades – tanto no Hexágono como nos territórios de além-mar. Paula Anacaona até nos fala de um clube de leitura, Book & Brunch, o qual interesse-se às obras da diáspora afró ou do continente africano, e já tratou de uma das obras traduzidas pela editora Anacaona, Insubmissas lágrimas de mulheres de Conceição Evaristo (em francês, Insoumises).

Algumas obras da coleção Urbana.

Quatro colecções, para cobrir uma multidão de temáticas e de géneros literários

A editora desenvolveu hoje em dia quatro colecções. A primeira, Urbana, écrire est une arme, conta romances e banda-desenhadas envolvidos para histórias urbanas e modernas, com autores das minorias. Com três olhares possíveis: o dos bandidos da favela, com obras como o Manual prático do ódio, de Ferrèz (em francês, Manuel pratique de la haine); o dos trabalhadores, com o livro Je suis toujours favela (Eu sou sempre favela) por exemplo, que reúne novelas e artigos; e o dos policiais, com livros como Tropas de elite – o inimigo agora é outro (em francês, Troupes d’élite 2 – l’ennemi intérieur), romance que denuncia a corrupção da polícia brasileira.

Desde 2013, Anacaona propõe a coleção Terra, une terre et ses racines, que aborda o Nordeste e a herança afro-brasileira – em particular a memória da escravidão. Achamos lá obras diversas, como Menino de Engenho de José Lins do Rego (L’enfant de la plantation) ou O quinze Rachel de Queiroz (La terre de la grande soif), com ilustrações que parecem inspirada da literatura de cordel, um modo de auto-edição de poesia e de contos populares na forma de folhetos (aparecido no Brasil na século XIX no fundo de tradições narrativas orais. Essas obras nos contam as histórias dos habitantes dessa região ao cruzamento das identidades portuguesas, africanas e indígenas, afectada pelas secas frequentes, a pobreza e um banditismo meio-heróico. Outros livros, como Póncia Vivêncio (em francês, L’histoire de Poncia) ou Insubmissas lágrimas de mulheres de Conceição Evaristo, ou ainda As Lendas de Dandara (em francês, Dandara et les esclaves libres) de Jarid Arraes, nos conduzem na herança da escravidão e da identidade negra no Brasil. O olhar dos colonizados, as populações indígenas do Brasil, também é presente, com a obra 1492, Anacaona l’insurgée des Caraïbes.

Algumas obras da coleção Terra.

Desde 2015, a editora propõe a coleção Época, la diversité des voix contemporaines brésiliennes, virada na produção literária vanguardista. Achamos ai obras naturalistas como De Gados e Homens (em francês, Du bétail et des hommes) e Carvão Animal (Charbon Animal), mas também ensaios afrofeministas que sublinham com muita pedagogia e relevância o carácter interseccional das discriminações que afectam as minorias, entre as quais as mulheres negras. Nesse registro que conhece um desenvolvimento importante, a coleção propõe muitos autores famosos e de qualidade analítica. Podemos mencionar em particular Djamila Ribeiro, com Quem tem medo do feminismo negro? (Chroniques sur le féminisme noir) ou ainda O que é lugar de fala? (La place de la parole noire); e Joice Berth e o seu ensaio O que é Empoderamento? (em Francês, Empowerment et féminisme noir). Ainda ai, a marca indígena é é constatada, com num futuro próximo a publicação de um ensaio do líder indígena Ailton Krenak, traduzido do português Ideias para adiantar o fim do mundo.

Finalmente, a coleção Anacaona Junior, une fenêtre sur le monde foi lançada desde 2016, e propõe uma literatura adaptada aos mais jovens, na perspectiva de os introduzir à diversidade, de dar vontade de ler e de aprender.

Algumas obras da coleção Época.

Uma literatura que leva um envolvimento político ou social

Inicialmente concentrada na literatura produzida pelas minorias, raciais ou socio-econômicas, a editora Anacaona valorizam, com o público francófono, causas políticas ou sociais ao serviço das quais os escritores colocam os seus talentos. Paula Anacaona analisa essa dimensão central da editora: « No início, eu não tinha necessariamente um foco feminista, mas todavia eu tinha esse foco sobre as favelas. Vamos dizer que o autor-pilar daquele movimento, é Ferréz, com o Manual prático do ódio, o primeiro livro que temos publicado; agora, temos alargado ao foco feminista e ao foco afro-brasileiro. Há um fio condutor entre esses três focos, que é a marginalidade, ou a discriminação. E sobretudo o envolvimento. Todos os livros têm um envolvimento social, e não imagino publicar um livro que não o teria. »

Um envolvimento que encontramos até na coleção Junior, com a possibilidade para os mais jovens de descobrir um mundo caracterizado por uma diversidade que corresponde mais à realidade e que educa assim à tolerância: Os livros de Sayuri (em francês, Les livres de Sayuri), a história de uma menina japonesa instalada no Brasil que quer aprender a ler e a escrever apesar do racismo que ela sofre durante a Segunda Guerra mundial; O livreiro da favela (em francês, Le libraire de la favela), a de uma criança das favelas que apaixona-se pela leitura e que quer escapar ao destino que parece ter desenhado a sua condição social; ou ainda Tio Flores – Uma história às margens do Rio São Francisco (em francês, Tonton couture), a história de uma criança cujo tio luta contra o desemprego. E em breve, Gaia changera le monde, da própria Paula Anacaona, que conta a história de Gaia, menina negra, ecologista e que quer salvar o planeta.

Algumas obras da coleção Junior.

As transformações profundas que conheceu a paisagem política brasileira nos últimos anos, desde a queda da presidente Dilma Rousseff em 2016 até a chegada no poder de Jair Bolsonaro em Janeiro de 2019, passando pela encarceramento do antigo chefe do Estado Lula da Silva, deixaram lugar a um contexto particularmente tenso em termos social e de segurança – como o ilustraram em Março de 2018 o assassinato da deputada carioca (e militante afrofeminista e LGBTQ) Marielle Franco; o exílio em janeiro de 2019 do deputado Jean Wyllys, imigrado na Europa sob a pressão de ameaças de morte; ou ainda a multiplicação das violações dos direitos das comunidades indígenas na Amazônia. A isso tudo acrescenta-se a subida dos movimentos feministas interseccionais, que observa-se na vida política e cultural no Brasil (Ana Carolina Lourenço, socióloga: no Brasil, « as mulheres negras podem decidir do futuro da democracia »).

No ambiente péssimo, no qual assistimos a uma forte polarização política, os esforços das edições Anacaona para tornar acessível ao público francófono os autores das minorias, têm obviamente uma conotação particular – mesmo longe do Brasil. Essas minorias, as comunidades indígenas, os militantes LGBTQ, os Negros, os habitantes do Nordeste depauperado ou das favelas abandonadas, organizam-se de fato contra a ação do governo e contra a subida de uma reflexão racista e homofóbica agora descomplexada. Nesse assunto, Paula Anacaona detalha: « É verdade que [os autores] dizem-me todos que o fato de ser publicados em França, é muito importante para eles, para a comunidade que eles representam, pois essa é muitas vezes reduzida ao silêncio. Pelo menos eles, eles conseguem transmitir a mensagem até a França, e isso é importante. E há o prestígio de ter sido publicado em França. Eu penso que muitas pessoas são orgulhosas pelo fato que alguém de tal favela fala disso em França, para informar sobre as condições de vida. […] Todas as minorias, durante dez anos [de governo do Partido dos Trabalhadores], conseguirem criar-se um lugar. Durante todos esses anos, temos publicado essas pessoas enquanto eles estavam crescendo no Brasil. E é verdade que a eleição de Bolsonaro, isso deu logo uma estocada a esse crescimento, o fato que ele corta as subvenções nas universidades, etc. É verdade que a editora Anacaona foi o reflexo de uma época no Brasil, na qual tudo parecia possível para essas minorias. [...] Lula e depois Dilma, era o surgimento de todas essas pessoas das periferias que conseguiam ir à universidade. » Ela acrescenta, optimista: « Mas acredito que agora, mesmo se aquelas minorias voltam a ser ameaçadas, mes se são cortadas as suas subvenções, de qualquer forma elas provaram um certo conforto material, uma certa polarização, e isso, não pode lhes ser tirado. As mulheres negras realmente politizaram-se. Provavelmente elas sempre escreveram, mas pelo menos agora, elas são publicadas. Eu sinto desde alguns anos que há uma verdadeira efervescência naquele nível. »

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Para ir mais longe, podem achar as edições Anacaona nas redes, no site Internet da editora.

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