Ana Carolina Lourenço, socióloga: no Brasil, « as mulheres negras podem decidir do futuro da democracia »
Obra « 5.664 mulheres », composta por o mesmo número de balas de armas, em homenagem às mulheres vítimas de violência (Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo).
No Brasil, o início de 2019 foi marcado por um clima tenso entre o novo poder, liderado pelo presidente Jair Bolsonaro, e os grupos que há muito tempo são marginalizados politicamente e socialmente: mulheres , LGBTQ, indígenas, negros. Ainda no dia 24 de janeiro, Jean Wyllys, ativista pelos direitos dos LGBTQ e membro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), uma formação de esquerda,, anunciou no seu Twitter que desistia de seu terceiro mandato e deixava o país, por ter sido ameaçado várias vezes desde a eleição de Jair Bolsonaro. Ele escreveu: « Preservar a vida ameaçada é também uma estratégia da luta por dias melhores. Fizemos muito pelo bem comum. E faremos muito mais quando chegar o novo tempo, não importa que façamos por outros meios ».
Esse exílio ecoou o assassinato, em 14 de Março de 2018, da Marielle Francisco da Silva, mais conhecido como Marielle Franco, eleita vereadora do Rio de Janeiro em 2017 sob a bandeira do mesmo partido, o PSOL. Mulher negra, lésbica, socióloga e militante pelos direitos humanos e LGBTQ, Marielle Franco representava a quase todas as discriminações enfrentadas pela sociedade brasileira – discriminações que muitas vezes contrastam com a imagem cosmopolita e mestiço deste grande país latino-americano, cujas raízes devem ser buscadas num racismo profundo herdado do estado colonial e da época da escravidão. O assassinato em 2018 de Marielle – que foi supostamente cometido por uma milícia privada e patrocinado por políticos do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), um partido de direita que estava então no poder – provocou uma reação forte e uma série de protestos em várias cidades do país, com o slogan « Marielle presente ».
No Rio de Janeiro, O acendedor de lampiões (O AdL) foi ao encontro de Ana Carolina Lourenço. Socióloga de 28 anos, é uma das coordenadoras da Rede Umunna, que promove a participação das mulheres na vida política e que criou, acerca das últimas eleições gerais no Brasil, a plataforma « Mulheres negras decidem ». Ela nos deu sua análise dos últimos desenvolvimentos políticos e sociais no Brasil.
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O acendedor de lampiões: Como surgiu a plataforma « Mulheres negras decidem », lançada no ano passado pela Rede Umunna?
A Rede Umunna, ela é basicamente um conjunto de mulheres negras que, em 2018, antes do assassinato da Marielle, começou a pensar a campanha pública chamada « Mulheres negras decidem ». Em Fevereiro desse ano, essa campanha virou um movimento, o movimento « Mulheres negras decidem ». [...] No caso do Brasil, as mulheres negras não são uma minoria demográfica, elas são uma maioria, o maior grupo demográfico brasileiro. Então nosso ponto de partida era que no marco eleitoral, no marco democrático, as mulheres negras podem decidir do futuro da democracia. Mas mais do que isso, era também uma pergunta: como a gente podia aproveitar do processo eleitoral para perguntar o quê que as mulheres negras queriam decidir? Afinal, podemos decidir eleitoralmente, mas qual é a decisão do nosso novo projeto de sociedade? O formato político, tanto para a linguagem do movimento que para a campanha, é muito tentar construir uma narrativa mais positiva sobre mulheres negras.
Uma das coordenadoras [da Rede Umunna] é uma estatística, a Juliana Marques. Esse é um outro ponto que a gente tinha em comum: um interesse com dados e produção de indicadores. A gente fez uma reunião de imersão, e percebeu que a gente não conseguia alencar dados positivos sobre mulheres negras. Que existe uma barreira de engajamento em participação política muito forte entre mulheres negras. E essa barreira, ela vinha com um fato, de que assumir uma identidade negra e agir politicamente, é cair numa narrativa que muitos autores chamam de « afro-pessimismo »: se você se percebe como mulher negra, se percebe com um número dos menores indicadores da sociedade, o grupo que não carrega nenhum indicador de bem-estar. Então a gente tentou entender qual seria esse grande dado positivo sobre mulheres negras; e foi aí que a gente chegou no 27%, que foi o dado que a gente mais trabalhou: o dado mais positivo sobre mulheres negras, é que nós somos o maior grupo demográfico brasileiro, e o grupo que mais apoia indiferentemente os corpos da sociedade, as políticas pró-direitos humanos. É o grupo da sociedade que mais vota por questões progressistas. Então a gente trabalhou essa narrativa que era: « Mulheres negras decidem ». De fato, mulheres negras decidem. E isso coloca a sociedade brasileira num novo lugar. [...] Como a população de mulheres negras é 0,2% a mais do que os homens, nós somos o maior grupo demográfico. Mas nós também somos um dos grupos que mais participa dos processos democráticos. Então também de forma ativa, somos o maior grupo, não só qualificado para votar, mas que comparece.
O AdL: A partir de uma definição do afrofeminismo que considera que existe uma hierarquia das discriminações e que as mulheres negra estão em baixo da pirâmide, como você definiria o afrofeminismo, especificamente no contexto do Brasil?
Eu sou uma feminista interseccional e descolonial, então acredito que existe uma interseção de opressões. Isso significa que não é exatamente que ser uma mulher negra, é « abaixo » de ser uma mulher branca. Não é tão direto. Mas que esse conjunto de opressões opera nas especificidades, tipo uma mulher, negra, latino-americana, lésbica ou bissexual, acumula. Mas não é só que acumula. É fatorial: multiplica, porque não é que para descobrir as opressões que passam por uma mulher negra, é só preciso pegar as opressões que acontecem com um homem negro, e juntar com aquelas de uma mulher branca. Esse conjunto de opressões produz algo específico. Então não é hierárquico exatamente, por mais que os indicadores sejam hierárquicos. [...] Nós não acreditamos numa olimpíada das opressões, ou seja, de maneira nenhuma uma experiência por exemplo de assédio sexual de uma mulher branca vale menos do que um relato de assédio de uma mulher negra. Está fora disso. Mas é que essa combinação de opressões produz um lugar na sociedade muito específico, para quem carrega esse conjunto de opressões. E esse lugar produz uma visão do mundo – que é o debate da perspetiva –, produz uma maneira de sentir essa opressão e de entender a sociedade, muito específica.
Aí, [sobre as espicificidades do afrofeminismo brasileiro] eu acho que tem dois pontos: um ponto, que não é uma especificidade do Brasil, mas uma especificidade da América latina, mas que é importante no caso brasileiro nesse contexto. É que a América latina (e o Brasil), possui uma experiência muito concreta de conjunção de debates sobre identidade, de debates sobre classes e desigualdades. A América latina, se compararem com outras regiões, carrega esse peso de ser a região mais desigual do mundo. O que não quer dizer que seja a mais pobre do mundo, mas a mais desigual. Ou seja, onde a experiência de classe é muito relevante. E por um outro lado, a América latina é marcada pela experiência colonial de um projeto racial. [...] No caso brasileiro, a independência [em 1822] não gera o fim da escravidão. Não é uma especificidade só do Brasil, mas é um pouco raro. [...] O Brasil tem duas datas que são fundamentais no século XIX: 1888 e 1889. 1888 é a abolição, e 1889 é a proclamação da república. Talvez [...] se essas datas tivessem sido invertidas, a História do Brasil seria outra. Mas o Brasil é um país onde a república não é responsável por talvez uma das maiores opressões e uma das maiores estruturas que fundaram a sociedade brasileira. O fim da escravidão é um legado da monarquia no Brasil. E muitos grupos que apoiavam a monarquia param de apoiá-la com o fim da escravidão. Muitos autores dizem que na verdade, o Brasil, ao contrário dos outros países da América latina, foi um império porque ele precisava proteger a escravidão. Então o tamanho do Brasil, o fato do Brasil não ter sido dividido, [com] esse modelo mais centralizador, a construção do império tinha a ver com o fato de proteger, não só o sistema cultural e a escravidão, mas o sistema económico básico do Brasil. Essa é uma especificidade do Brasil.
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O segundo ponto que é uma especificidade do [afrofeminismo brasileiro]: não é um movimento de minorias políticas, nem de minorias demográficas. O Brasil é a maior nação negra fora da África. Tem uma população negra que é apenas menor que a da Nigéria. Então é muito potente criar um discurso de convocação [...]. Isso é bem interessante. Durante a nossa campanha, [...] eu falei [que] se esse movimento chegar a 5% das mulheres, já [estaríamos] falando de algo maior do que as Primaveras árabes, ou do que Black Lives Matter, porque 5% da população de mulheres negras no Brasil, é um contingente enorme. Isso explica muito como os protestos pela Marielle tornaram massives. Isso explica muito por que as manifestações [...] sobre violência e mulher negra, são tão massives. Não é porque todas as pessoas debatem nisso, mas porque formam um grupo muito grande.
O AdL: No mês de Julho de 2018, uma Brasileira de 29 anos de idade, Tatiane Spitzner, mulher branca e advogada, foi filmada pelos vídeos de segurança do seu prédio, espancada pelo marido, alguns minutos antes de ele matá-la. Seu assassinato provocou um grande debate no Brasil. No entanto, o fenômeno da violência contra as mulheres não é nada novo. Se fosse uma mulher negra e empregada, será que teria provocado uma polêmica do mesmo jeito?
Isso é importante. Tem vários exemplos que a gente pode pensar. Existem coisas que acontecem na experiência de uma mulher branca no Brasil, que são específicas de uma mulher branca. Por exemplo, o mito da fragilidade, a ideia de que a emancipação feminista passa pelas mulheres se assumirem-se como fortes, capazes de fazer. Isso, é tão distante da realidade de qualquer mulher negra no Brasil. Eu inclusivo lembro-me, a primeira vez que eu tive em contato com isso. Eu sou de uma família muito matrilinear e matriarcal, onde as mulheres, as avós, são muito importantes – e é uma coisa muito comum das experiências das mulheres negras no Brasil. Eu não tenho a mínima memória de alguma mulher da minha família que não trabalhou, que não carregava o baldo... [...] Por exemplo, se você está saindo de um aeroporto, você está com uma mala muito pesada, a ideia de que alguém vai parar para carregar sua mala, ela é uma experiência das mulheres brancas no Brasil. Isso não acontece com os corpos das mulheres negras, que no Brasil foram atareladas à experiência da escravidão e da servidão. Nós somos a imagem da « forte », da « pronta para servir ». [...] Uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Aí, sobre a reação, eu acho que talvez é o ponto mais interessante de 2018. Eu acho que isso explica o « Mulheres negras decidem », isso explica as vitórias eleitorais que muitas mulheres negras nas legislativas tiveram. Que talvez, pela primeira vez, uma morte política foi mais relevante porque foi uma mulher negra. Se fosse uma parlamentar branca que tivesse sido assassinada, ou se fosse um quadro, um homem branco da esquerda, não teriam enchidas as ruas [...]. Estou querendo ser mais positiva porque exatamente essa foi a esperança de toda a minha vida – como o valor da vida de mulheres negras não sensibilizava, não gerava comoção. [...] Talvez a grande mudança política, é a gente conseguir, não dizer que a morte da Marielle é mais importante do que a de uma outra parlamentar branca, mas é conseguir entender com muita clareza quanto aquele assassinato ou quanto a pressão de uma mulher negra, ela representa toda as falhas da sociedade brasileira. Então, ela se torna esse caso « perfeito » para a gente discutir os nossos problemas.
O AdL: É difícil falar das problemáticas políticas e sociais atuais no Brasil, sem falar do vosso recém-chegado presidente da República Jair Bolsonaro. Já fazem uns meses que ele iniciou o seu mandato. Como você analisa a vitória dele, lembrando-se que ele teve a quase 50 milhões de votos logo no primeiro torno, e a quase 60 milhões de votos no segundo?
57. Porque se ele tivesse 60 milhões, ele teria sido o presidente com o maior número de votos no Brasil. Mas o Lula ainda foi o presidente com o maior número de votos no Brasil. Isso parece pouco mas é importante. Porque isso mostra as contradições da sociedade brasileira. Como políticos tão opostos mobilizaram tantas emoções e os corações?
O AdL: O que significa que tem provavelmente muitas pessoas que votaram para um e depois para outro...
Sem dúvida! Talvez as únicas que não fizeram isso foram as mulheres negras. Claro que algumas votaram para ele; estatisticamente, as mulheres negras evangélicas pentecostais. [...] Não foram os evangélicos que fizeram Bolsonaro ganhar, mas sem dúvida os evangélicos foram muito importantes, e quando a gente olha para as mulheres evangélicas, esse foi o lugar onde mais mulher votou no Bolsonaro. Então possivelmente, aí tem mulheres negras. Mas se a gente analisar [...], a gente vai ver que a maior barreira para uma mulher evangélica votar para Bolsonaro é o fato de ela ser negra. Isso é bem importante. Em todos os colégios eleitorais, de Estados ou cidades onde a população de mulheres negras é maior, Bolsonaro teve as piores derrotes. [...] O motivo pelo qual Bolsonaro não ganhou no primeiro turno inclusivo, foi por conta das mulheres negras, isso é claro.
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Brasil é um país de mais de 210 milhões de habitantes. O que significa que a maior parte da sociedade brasileira não gosta, não apoia Bolsonaro. [...] Um processo eleitoral não é um retrato da sociedade. Ele mal é um retrato de um processo eleitoral. E na eleição de 2018, não existia nenhuma outra resposta que conseguisse conquistar mentes, emoções, que garantisse com que as pessoas fossem votar, que não fosse a defesa da democracia, ou seja um voto anti-Bolsonaro, ou então um voto anti-PT [Partido dos Trabalhadores]. Então é contextual. A sociedade brasileira, ela não virou extremamente conservadora porque Bolsonaro ganhou. Não que a gente não tem os nossos conservadorismos, mas eu fico tentando diminuir o que foi esse processo eleitoral, para responder [sobre] o que é a sociedade brasileira.
O que aconteceu para mim é muito claro, e isso é bem no centro do nosso debate: é que em 2018, um setor da extreme-direita e um setor do liberalismo econômico no Brasil aceitaram com muita facilidade entrar no mais radical dos discursos de direita que o Brasil já viveu, e criaram uma máquina política, que não é um processo brasileiro. É um processo global, a gente também não inventou nada. E a esquerda talvez foi muito pouco hábil para responder a esse processo. Sei que é prepotente porque eu sou ativista do feminismo negro, mas sem ser prepotente, nada em 2018 e 2017 era mais forte do que o movimento de mulheres, e mais forte do que as mulheres negras. Esse debate, ele basicamente foi ausente na decisão do cargo da presidência. Nas legislativas que é uma eleição super-complexa, um cálculo matemático, muitas pessoas foram votar por mulheres negras. [...] Porque de alguma maneira, em 2018, por conta do assassinato da Marielle, se criou também uma sensação de urgência, tipo parecia que era a última vez que as pessoas podiam fazer isso. E isso sequer apareceu na corrida presidencial. [...]
Eu particularmente acho Haddad [candidato do Partido dos Trabalhadores] um quadro muito competente [...]. Mas ele está longe de se conectar, não só emocionalmente, mas de se conectar com as pautas, não mais extremas e mais radicais, mas com as pautas mais potentes de um novo projeto de direitos, de um novo projeto para a esquerda. Teve uma leitura muito equivocada no segundo turno. O PT achava que se ele diminuísse o debate, a polarização, se se afastasse mais do debate sobre mulheres, direitos, violências, ele talvez ganhasse. Só que ele virou nada, porque quem panfletava até a noite eram as ativistas negras. [...]
Tem um caso super interessante: tem uma agência de investigação de dados que se chama Data Lab, que fica na favela da Maré, que fez uma pesquisa no microcosmo do complexo da Maré. É um dos mais importantes do Rio de Janeiro, e tem um perfil demográfico super diverso, mas a maior parte da população é negra. [...] os dois partidos mais votados [lá] foram o PSL [Partido Social Liberal] que é o partido do presidente da República, e o PSOL [Partido Socialismo e Liberdade] que era o partido da Marielle. A Marielle era da Maré, e o PSOL no Rio de Janeiro tinha candidaturas de mulheres negras que eram da Maré, que fizeram campanha na Maré e que, nesse caso, ganharam. Ou seja, o que o complexo da Maré e essa pesquisa nos ensinam, é que quando a esquerda escolha disputar esse território com o autor certo, com o discurso certo, com a identificação certa, ganha. [...]. Acho esse exemplo muito emblemático do que poderia ter sido 2018.
O AdL: Houve a morte da Marielle em 2018, e esse ano a ida para a Alemanha do deputado Jean Wyllys, por causa de ameaças de morte. Parece que a situação está mais tensa, mais insegura para os militantes dos direitos humanos. Como você vê os anos que vêm?
Existe uma coisa em política: é muito difícil, principalmente em quadro de representação, voltar. Em geral, a participação de mulheres na política, ela para ou aumenta. [...] Por exemplo, uma deputada federal, eleita num Estado, em geral produz na próxima eleição municipal três vereadores. Porque essa mulher, ela consegue colocar a nível nacional a importância de uma pauta, e em geral o partido passa a colocar mais recursos e atenção, e as pessoas se sentem influenciadas por aquela figura política. Então mais pessoas se voluntariam. [...] Em cidades importantes, Belo Horizonte, Rio, Niterói, mulheres negras [foram] eleitas com discurso feminista, de base, em partido de esquerda. E uma campanha muito feita com o financiamento coletivo, com tácticas ativistas. O quadro mais exemplar desse movimento, para quem acompanhava a política, era a Marielle.
A Marielle [...] já estava a mais de um ano e meio no mandato, e ela começava cada vez mais a aumentar a pauta dela [...]. E aí a última noite dela, ela estava num evento que se chamava « Jovens mulheres negras movendo as estruturas ». Aí ela sai desse evento, que era no centro da cidade, e é executada com tiros na cabeça, a duas ruas do maior centro de monitoramento da América latina – que é no Rio de Janeiro. Há tanto simbolismo nesse processo. Isso é um trauma social. E esse processo, no dia seguinte, se converte no maior protesto pós-morte já enfrentado pelo Brasil, que por muitos motivos ganha essa gente do mundo. [...] Foi um caso onde a violência política foi o centro do caso, e que foi muito simbólico! [...] Isso podia ter paralisado as mulheres negras, mas não, isso produziu não só um ativismo mais nas ruas, como isso fez que muitas mulheres negras que respondiam que não iriam participar porque tinham medo, decidiram se candidatar. É o caso de duas das três que ganharam nas legislativas no Rio, que [...] se sentiram convidadas por aquele movimento a voltar os olhos para a democracia.
Eu acho que é difícil produzir um outro trauma social que seja maior do que aconteceu com a Marielle. A gente está num crescimento que tem tudo para aumentar. [...] Agora, a maior reunião que a gente já fez, com o maior número de pessoas, foi a reunião exatamente na semana seguinte que Bolsonaro ganhou. Então não teve um decréscimo de participação com a vitória de Bolsonaro. Pelo contrário. Muitas mulheres negras que ainda não estavam engajadas resolveram se engajar depois que Bolsonaro ganhou.
O AdL: A vitória de Bolsonaro e aquele em reação à morte da Marielle: parecem dois movimentos muito contraditórios.
As pessoas chamam isso às vezes de polarização. Mas eu nem acho que essa polarização estava bem colocada nas eleições porque não foi o que existia de mais novo, sobre ativismo, democracia, que estava concorrendo contra Bolsonaro. Bolsonaro é muita coisa, mas ele é novo. A maneira daquele fazer político, foi construída na última década do Brasil, com o PT no poder. Ou seja, todo o discurso de Bolsonaro é alimentado por um setor da sociedade que se desgostou do projeto do PT. Por outro lado, esse ativismo colocou a Marielle como um dos maiores nomes do debate sobre defesa dos direitos humanos, depois da morte dela; também é fruto desses últimos anos do PT. Todas as mulheres que são coordenadores da Rede, quase todas, elas são frutas de educação específicas do governo do PT. A Juliana, que é estatística, que produziu todos os dados, e que fez os maiores jornais passar a referenciar um dado que é tipo do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que é o orgão nacional de dados, como um dado da campanha « Mulheres negras decidem », é uma pessoa que entrou na universidade por política de ações afirmativas dos governos do PT. A Gabi, que é a jornalista, ela fez uma universidade pública de elite, através de convenções específicas. Não só a reação [bolsonarista] ao PT, o ativismo de mulheres negras também é por bem e por mal fruta dos últimos quinze anos.
O AdL: O Brasil teve uma mulher presidente, eleita para dois mandatos. Será que aquilo ajudou as feministas?
Eu vou fazer uma comparação aqui com o movimento Black Lives Matter nos Estados-Unidos. O Black Lives Matter surge quando o Obama está no segundo mandato. A chamada « Primavera feminista » ou « Nova onda feminista », [...] por exemplo quando mais de 50 000 mulheres negras foram para Brasília lutar contra o genocídio, contra o aumento do feminicídio de mulheres negras, ou então quando as ativistas foram para a rua [...], acontece isso também no segundo mandato da primeira presidente eleita. [...] Se Obama não fosse presidente, o Black Lives Matter teria surgido no primeiro mandato. Teria surgido em 2009. Na verdade, isso conteve o ativismo, porque de alguma maneira, parece que não é o momento político para refundar o movimento negro nos Estados-Unidos. Parece que tem uma contradição. E é a mesma coisa com a Dilma.
A Dilma, ela não foi eleita no primeiro mandato agradando a base feminista. Ela era uma pessoa que sempre tinha dito que era em favor do aborto, mas quando concorre, pára de falar do aborto para conseguir a aprovação dos setores da Igreja.
Ela está longe de ser uma presidente ruim, só que existe uma frustração criada quando você tem como presidente uma mulher, ativista, que foi torturada por grupos, contra a ditadura, e que começa a fazer concessões para o grande capital. Ás vezes, você tem uma cobrança maior desses setores. [...] A Dilma talvez tenha sido a única presidente não corrupta do Brasil. Eu não tenho dúvidas que o Lula foi muito mais corrupto do que a Dilma. Não há proporção: o ódio que as pessoas têm contra a Dilma, é um ódio de gênero. Não é proporcional, e a maneira como as pessoas falam da Dilma, essa coisa de chamar ela de « puta », todo o processo de impeachment... Bolsonaro, no voto dele no impeachment, ele fez uma salva ao torturador da Dilma – [lembrando] que, basicamente o que ele tinha feito, foi colocar rato na vagina da Dilma.
O AdL: Tem conexões entre o movimento afrofeminista brasileiro e movimentos feministas indígenas?
Nos anos 90, um grupo de ativistas [escreveu] a Carta da patrilinearidade das mulheres negras e indígenas, que é uma carta super bonita, que a gente divulgou nas redes. Foi um momento super importante; é uma carta que reafirma as origens em comum das opressões entre as mulheres negras e indígenas, e que todas as decisões e avanços políticos alcançados pelas mulheres negras devem ser ampliadas para as mulheres indígenas. E todos avanços alcançados pelas mulheres indígenas devem ser compartilhados para as mulheres negras [...].
Nos governos do PT, o movimento negro teve muita atuação em algumas políticas específicas. Por exemplo as políticas de educação para cotas, que foi basicamente gerido por mulheres negras que tinham cargos no ministério da Educação. Foram rapidamente ampliadas em igual proporção – porque é feito em proporção da população – para indígenas. E outros exemplos assim, como o debate sobre demarcação de terra: quando ele avançou para populações Quilombolas [habitantes dos Quilombos, comunidades afro-descendentes cujos ancestrais fugiram a escravidão], em geral todas as regras passaram para as demarcações de terras indígenas. As desigualdades entre mulheres negras e indígenas são comuns. Ou seja, o componente racial e o componente de intersecção entre classe, e discriminação racial, é presente, é igual.
Aí, você tem as suas especificidades: especificidade da experiência da dizimação indígena, o que faz com que a população indígena, ela seja uma minoria demográfica. O que torna, às vezes, muito difícil lutar por políticas públicas. Tem especificidades na forma de violência. Mas por outro lado, também, as populações indígenas, exatamente por serem minorias, conseguiram muitas vezes avançar em certos debates. Por exemplo, a demarcação de terras indígenas tem uma história muito mais longa do que a demarcação de terras para comunidades dos descendentes de escravos, porque existia a percepção de que uma política de reparação para comunidades indígenas pode retirar menos do Estado do que uma política de reparação para mais da metade da população brasileira – que significaria alternância do poder.
Eu acho que a gente está caminhando para criar canais mais efetivos [entre as pautas negras e índia]. No Pará e em lugares do Nordeste, existe uma identidade chamada de « afro-indígena ». [...] Mais do que essa irmandade de luta, existe também uma experiência muito comum.
O AdL: Forte da sua experiência, o que você aconselha para feministas, fora do Brasil, que tentam se organizar e tomar iniciativas?
Sendo uma pessoa responsável, eu acho que primeiro é falar para as mulheres ativistas para se proteger, sobretudo as mulheres negras. Elas precisam criar espaços seguros e confortáveis para criar outra política. E segundo, pode ser uma coisa que não é transformadora, mas é conseguir olhar para si, para suas comunidades, e perceber quais são esses elos possíveis de produzir levantes e uma mensagem comum. Isso não é muito simples, porque a maior parte das ativistas, em todas as sociedades, elas ainda são desses elementos que chegaram à universidade, que estão em processo de transformação, e que saíram das suas comunidades. [...] A comunicação de « Mulheres negras decidem » funcionava muito para gerações diferentes, e funcionava para pessoas de classes políticas diferentes. Eu acho que uma das coisas que faz parte da realidade brasileira, essas partes da base familiar, de boa parte das mulheres negras no Brasil, é que nós já somos líderes das nossas comunidades, já somos líderes do nosso espaço. Eu acho que essa é uma experiência muito dos grupos étnicos africanos, já que foram transferidos para o Brasil. Então reconhecer essa capacidade de liderança que já existe, e criar espaço para potencializar e perceber tudo o que as mulheres negras já constroem nas suas comunidades [...], essas são as melhores respostas para mais justiça.
[...] Existe muito essa ideia que são ideias que venham do Ocidente, mas isso não é verdade. [...] É o oposto na verdade. Essas incidências, essa outra maneira de ver, ela já faz parte das estruturas da sociedade [...]. As maiores defensores dos direitos humanos são, em geral, essas pessoas que mais vencem as experiências. Isso é concreto e isso é em toda parte. Não é um discurso que vem de fora, as ferramentas estão lá. Elas conhecem essas ferramentas. Elas só precisam pulsioná-las.
A América latina tem os indicadores mais fortes de feminicídios por exemplo. E muita gente fala que esse debate de violências domésticas é um debate que chegou da ONU, ou da classe média. Só que não. As denúncias, os mecanismo de proteção já foram criados nessas comunidades. O máximo que essas organizações devem fazer, e essa é uma dica para elas, é potencializar essas vozes e essa maneira de conduzir o processo. Porque a maior parte das soluções estão ali. [...] Se você não é uma mulher negra de uma comunidade empobrecida, talvez você mais tem para fazer é aumentar as redes de proteção dessas mulheres que estão trabalhando na suas comunidades, porque elas são potentes, e elas conseguem mobilizar mais pessoas que qualquer discurso de fora vai conseguir. [...] Uma boa cultura de escuta e de reconhecimento das capacidades de liderança, é muito importante. E dá certo.
Para ir mais longe, envolvendo-se ou buscando mais informações:
- A página Internet da campanha Mulheres Negras Decidem
- A página Facebook da Rede Umunna
- A página Internet Gênero e Número