O « Hirak » argelino (2/2): será que a Argélia está a acabar com vinte anos de « sistema » Bouteflika?
Em 12 de Dezembro passado, os Argelinos foram chamados às urnas, um pouco mais de oito meses após a queda de Abdelaziz Bouteflika. Porém as organizações da sociedade civil que acompanhavam os protestos cada sexta desde Fevereiro de 2019, e uma grande parte da oposição política, reclamavam, previamente, a partida de todos os representantes do regime e o lançamento de um processo constituinte que permitiria um verdadeira transição para um sistema democrático. Contudo, os militares no poder, liderados pelo chefe do comando Ahmed Gaid Salah, mantiveram a eleição presidencial no quadro constitucional existente. Uma maneira de dizer que a derrubada de Abdelaziz Bouteflika, após vinte anos de reinado, não era o resultado de um movimento revolucionário com uma mudança de regime no final, mas apenas da incapacidade do então presidente de assegurar mais tempo as suas funções. Uma maneira, portanto, de não questionar os interesses dos militares que não deixam de ser, desde a independência (em 1962) e ainda mais desde a guerra civil da década de 1990, os verdadeiros mestres do regime.
E o fim do regime, os manifestantes tinham (e têm) razão de o exigir. Pois além da figura de Bouteflika ou dos seus próximos, é todo um sistema que implementou-se há décadas e que esclerosa profundamente o país, em todos os planos. E o que poderíamos qualificar, na Argélia, de « Estado profundo » para falar do sistema da ditadura com todas as suas ramificações, vai além dos únicos serviços de inteligência e das instituições militares. Trata-se de um conjunto combinando uma corrupção abissal, uma economia cansadíssima e improdutiva que fechou-se na armadilha da renda dos hidrocarbonetos, um partido-Estado incapaz de renovar-se ou de aceitar o princípio de alternância, e sobretudo oligarcas todo-poderosos, despóticos e com comportamentos quase-mafiosos. Análise.
A Revolução « do sorriso » vem de longe. Um de fatores fez fermentar há muito tempo a ira e as frustrações de toda uma geração de Argelinas e de Argelinos. Os protestos da Primavera passada foram precedidos por um clima de contestação difuso há quase dez anos, marcado por uma acumulação de lutas setoriais. Além disso, já o vimos o mês passado (O « Hirak » argelino (1/2): quando o povo argelino impõe prolongamentos à Primavera Árabe), apesar das especificidades que caraterizam cada país afetado pela Primavera árabe, ingredientes semelhantes são observados na Argélia: ao mesmo tempo elementos demográficos, sociológicos, e outros ligados à fraqueza do tecido económico e social. Muitas variáveis, como o número de crianças por mulher, ou a mortalidade infantil, que caíram drasticamente nos últimos vinte anos, e a taxa de alfabetização, a qual aumentou, constituem um terreno muito fértil para permitir o surgimento de uma revolução, ainda mais num sistema autoritário, liberticídio e esclerosado – uma gerontocracia, aliás. A esses elementos estruturais acrescentaram-se a queda da cotação dos hidrocarbonetos nos últimos anos, que reduziu as rendas do regime (e portanto a sua capacidade a « comprar » a paz social); e também um enfraquecimento das ferramentas de repressão, em primeiro lugar os serviços de inteligência e de segurança em 2016, resultado das lutas de poder, em particular entre o clã Bouteflika e o general Tufik.
É portanto uma juventude frustrada mas cheia de esperanças que lançou-se no maior movimento de protestos que a Argélia conheceu desde os motins e as manifestações de Outubro de 1988. Após a queda do rais Bouteflika em 2 de Abril, a rua não deixou de reclamar a partida do pessoal político dirigente. Várias figuras foram obrigadas a demitir-se – ou até, o veremos mais longe, encontram-se perseguidos por atos de corrupção. Entre elas, podemos em particular mencionar Mourad Bouchared, indefectível apoio do antigo presidente há mais de dez anos, que deixou as funções que ele cumulava, de secretário geral da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido presidencial, logo em Abril, e de presidente da Assembleia Popular Nacional, em Julho. Como resultado de que Slimane Chenine, membro de uma pequeno coligação de três partidos islâmicos (Ennahda-Adala-Bina, contando quinze deputados no total), foi designado presidente da Câmara baixa, tornando-se assim o primeiro oponente a ocupar a carga desde a independência. O movimento popular estabeleceu muito rapidamente como objetivo a evicção dos três « B », símbolos do poder saindo: Abdelkader Bensalah, presidente da Câmara alta do Parlamento na altura da demissão de Bouteflika, e que tornou-se chefe do Estado por interino em 9 de Abril; Tayeb Belaiz, presidente do Conselho constitucional argelino (encarregado de supervisionar a eleição presidencial); e Noureddine Bedoui, Premeiro ministro desde o mês de Março, e antes disso ministro do Interior entre 2015 e 2019. Antes da eleição do 12 de Dezembro, só um dos três, Tayeb Belaiz, substituido por um magistrado, Kamel Feniche, demitiu-se – era em 16 de Abril. Quanto a Ahmed Gaïd Salah, isso foi dito, ele permanecia, na hora da presidencial, chefe do comando militar, e revelou-se o verdadeiro piloto desta transição que não é verdadeira. Aliás, foi ele que ordenou, após um primeiro adiamento – ela era inicialmente anunciada para o 4 de Julho, para concluir os três meses de interino constitucional de Abdelkader Bensalah, mas tinha sido cancelada por falta de candidatos –, a data do 12 de Dezembro para a realização da eleição presidencial. Dado esta imobilidade política, mas também o resultado da presidencial, a tarefa revela-se considerável para acabar com o sistema da ditadura.
Quando o presidente Bouteflika punha sob controlo as forças de segurança e de defesa, para melhor os envolver à esfera política
Vinte anos de presidência Bouteflika viram exprimir-se rivalidades profundas dentro do próprio regime, e permitirem à corrupção e ao nepotismo de implementar-se profundamente. O chefe do Estado pôs gradualmente a nação sob o seu controlo. Após a pacificação do país no início da década de 2000, após uma década de guerra civil e após a Primavera negra na Cabília, o exército, do qual Bouteflika desconfia quando ele chega no poder em 1999, é domado de tanto manobras. O chefe do comando militar naquela altura, Mohamed Lamari, e os seus próximos, são as primeiras vítimas, após a sua primeira reeleição, em 2004. Ele é substituido pelo famoso Ahmed Gaid Salah, que torna-se uma dos mais próximos braços direitos do chefe do Estado, um pilar do regime. Na mesma vaga, em 2005, Bouteflika libra-se do seu « mentor », chefe de gabinete da presidência, o poderoso Larbi Belkheir, « padrinho » do regime (falecido em 2010). O general Mohamed Lamine Médiène, poderoso patrão do Departamento da Inteligência e da Segurança (DIS, DRS em francês), parece muito tempo insubstituível, ainda mais porque a estabilidade política e social, e até securitária, base-se por grande parte na eficiência dos serviços de inteligência – e a sua capacidade de repressão. Cacique do regime, muito influente, conhecido por a sua determinação contra os islamistas na década de 1990, aquele que ficou famoso pela alcunha de Tufik até é considerado, no estrangeiro, como o verdadeiro mestre da Argélia.
Paradoxalmente, é enquanto ele está enfraquecido, por dois ataques cerebrais em Abril e Maio de 2013, que Abdelaziz Bouteflika toma realmente o controlo de todo o aparelho do Estado. Após um tempo de retiramento, o DIS tornou-se de novo preponderante a partir de 2010, aproveitando vários casos de corrupçéao implicando próximos do presidente; foi o caso, por exemplo, quando ele encalhou a direção da compania pública de petróleo Sonatrach, pondo em causa publicamente o ministro da Energia e das Minas, delfim potencial de Bouteflika. Porém em Janeiro de 2013, o ataque do campo de extração de gás de In Amenas por um grupo jihadista deu de novo a iniciativa ao chefe do Estado e ao exército. Grave fracasso da inteligência, esta tomada de reféns abra a porta a uma restruturação dos serviços, e até, em Setembro de 2015, à evicção de Tufik. Em Janeiro de 2016, o DIS torna-se o Departamento de Vigilância e de Segurança (DVS, DSS em francês), colocado diretamente sob as decisões do presidente da República. Essas mabobras são possíveis graças ao apoio de Gaid Salah, ainda comandante do exército, e que apoiou, aliás contra a opinião de Tufik, a candidatura de Bouteflika a um quarto mandato em 2014 – o chefe do Estado, demasiado enfraquecido, foi invisível durante toda a campanha eleitoral.
Durante a guerra de sucessão que marcou o fim do reinado de um Bouteflika muito envelhecido, os dois homens fortes do regime, o general Ahmed Gaid Salah, que cumula desde 2013 a carga de chefe do comando militar com a de vice-ministro da Defesa, e Said Bouteflika, irmão do chefe do Estado e conselheiro à presidência, « coexistirem » e neutralizarem-se. Acrescentava-se o general Athmane Tartag, o qual herdou do que foi o Departamento da Inteligência e da Segurança, « decapitado » pelo chefe do Estado mais ainda poderoso. Um tio que decidia as principais nominações, e as decisões estratégicas que afetavam o futuro do país.
No plano político, o partido da Frente de Libertação Nacional (FLN), no poder desde a independência, já não tem a mesma influência do que antigamento; saiu enfraquecido da « década negra », marginalizado pelo exército num contexto securitário muito duro, e embora ele tem desde 2005 como presidente honorário o próprio Abdelaziz Bouteflika (que apoiou a cada uma das suas eleições à carga de chefe do Estado), é na presidência da República e na direção das forças de segurança – não na direção do partido – que se tomam as grandes decisões. Na área política, umas figuras tentam criar-se perspetivas para deixar aberta a possibilidade de um destino « presidencial », porém são raras, as tentativas muitas vezes efémeras, e são finalmente pouco apoiadas pelos verdadeiros atores do poder argelino. Entre elas, Ahmed Ouyahia, secretário geral da Reunião Nacional Democrática (RNC), a segunda força no Parlamento, e Primeiro ministro de modo descontínuo durante quase doze anos entre 1995 e 2019, é uma das figuras que mantem-se o mais tempo nas esferas do poder.
O sistema é totalmente esclerosado. O regime, acostumado a viver na renda do petróleo e do gás, continua a manter-se enquanto o próprio presidente está sistematicamento ausente das ceremónias oficiais. O statu quo é elogiado como uma garantia de estabilidade, porém o poder de compra nunca foi tão baixo, o dinar argelino é muito desvalorizado, os salários estagnam, o desemprego persiste a níveis muito elevados, e no final da década de 2010, a queda da cotação dos hidrocarbonetos limita a margem de manobra orçamental do Estado argelino, pois as reservas de câmbio foram derretidas (passando de 193 para 85 bilhões de dólares entre 2013 e 2018). Os jovens argelinas são particularmente penalizadas pelo contexto de morosidade, enquanto elas já sofrem da organização arcaico da sociedade: segundo um relatório da Organização Internacional do Trabalho, um terço de elas são descolarizadas, sem emprego e sem formação.
A corrupção é um dos piores flagelos. A Associação argelina de luta contra a corrupção avaliou entre 50 e 60 bilhões de dálares as comissões ganhadas em diferentes mercados. Quase nenhum setor escapa ao fenômeno, em particular a construção pública, através por exemplo o escândalo da auto-estrada Este-Oeste, um projeto sobre-faturado – e de uma qualidade claramente questionável. Outro exemple choquante: a Grande Mesquita de Argel, cujo custo, estimado a 900 milhões de dólares em 2008, já ultrapassa 2,2 bilhões, e cujas obras nunca acabam. Num artigo de Março de 2019, a journalista Samira Imadalou até detalhe, na mídia El Watan: « Até ao nível local, as autarquias não fazem excepção, com casos de desvios implicando eleitos locais e causando atrasos imensos em termos de desenvolvimento regional. Além disso, as grandes empresas públicas, como a Sonatrach [sociedade nacional criada em 1963, trabalhando no setor do petróleo], onde o dinheiro fluiu livremente, foram as primeiras a ser afetadas pelos escândalos de corrupção. » Em nome da preferência nacional, os mercados públicos – caraterizados por disfuncionamentos típicos de muitos Estados corruptos: opacidade das modalidades de seleção, insinceridade das escolhas, retro-comissões, sobre-faturações, etc. – favorecem as pessoas próximas do poder.
« Um punhado de oligarcas », os mestres invisíveis da Argélia
Além do exército, « um punhado de oligarcas enrequecidos graças aos contratos públicos e às larguezas fiscais e aduaneiras contribuem a manter em vida o sistema Bouteflika, notava o jornalista Ali Bahmane em 25 de Fevereiro, ainda em El Watan, muitos deles sendo reunidos no FCE [Fórum dos chefes de empresa] tecendo laços com os partidos políticos e as "organizações de massa" da galáxia presidencial ». Said Bouteflika, desde que faz parte da « guarda pessoal » do irmão (desde 2005), tem amplamente favorecido o alargamento dos círculos aos meios económicos, mais concretamente a um painel de homens de négocios entre os quais empreendedores que enriquecerem-se na década de 2000 ao ritmo dos contratos de infra-estruturas opacos e sobre-faturados. Presidente do FCE entre 2014 e 2019, Ali Haddad simbolizava este surgimento de oligarcas politicamente influentes – foi detido em 3 de Abril de 2019, cinco dias apó a sua demissão do FCE.
Yasmina Khadra, autor argelino de 64 anos, apresenta muito bem esta realidade no seu livro Que Esperam os Macacos, publicado em 2014. Ele descreve, no contexto de uma investigação policial, o perfil do rboba, ou « decisores da sombra », do qual ele diz que ele « tem a particularidade de nadar nas águas turvas sem nunca molhar-se ». Ele até acrescenta: « Na Argélia, não é necessário pecar para receber o céu em cima da cabeça. Muitas vezes, o destino só depende de uma mudança de humor, e a vida de uma simples chamada telefónica… […] E quando os rboba são com raiva, os trovões e os furacões fazem uma figura triste. Qualquer empregadinho em altas esferas vos certificaria, prova em apoio, que o beijo de um rboba é tão mortal como a mordida de dez cobras. » Tradução: a reputação de uma pessoa, na Argélia de Bouteflika, depende da boa vontade de uns barões, de uns caciques, de uns ricos.
Um caso, o de Vahid Halihodzic, é emblemático e permite ilustrar esta realidade – caso que fez um pouco barrulho fora do país na altura que aconteceu. Aquele que foi seleciuonador da equipa cional de football da Argélia a partir de Junho de 2011 tinha conseguido qualificar o país para a Copa do Mundo de 2014, e trouxe no Brasil um grupo jovem (e contestado). Chegados em oitavos de final, os « Fennecs » foram finalmente vencidos pela Alemanha (2-1), após um jogo mais do que honroso para a seleção nacional. Porém, Halihodzic, contudo aclamado pela imprensa e o público argelino durante o retorno em Argel, não reconduziu o seu contrato. Num comunidado publicado em Internet, ele explicou porqué, descrevando em particular as relações tensas que ele teve com as mídias, os quais discutiram as suas escolhas e até o valor do seu salário. A isso acrescentaram-se as pressões impostas pelo presidente da Federação argelina Mohamed Raouraoua, arquétipo da figura do rboba apresentada no livro de Yasmina Khadra. Raouraoua, muito rico e muito influente – até na esfera do poder do Estado –, desligou-se amplamente do trabalho do selecionador durante meses, e até incentivou orgões de imprensa que comiam-lhe na mão a « atacar » Halihodzic. Contudo, ele estava presente quando o Bósnio foi recebido pela presidência da República para ser congratulado para o bom percurso da equipa. Ai está todo o paradoxo da sociedade argelina sob e era Bouteflika, dominada por « barões » todo-poderosos e que ajoelham os talentes. « Num país onde os decisores esforçam-se a construir uma vila aos seus filhos, onde na realidade a questão seria de construir-lhes uma nação, escreve Yasmina Khadra, não é raro de encontrar talentes experientes fazer-se de escravo no fundo das tabernas para sobreviver. »
Uma outra noção é introduzida por Yasmina Khadra no mesmo romance, Que Esperam os Macacos, a de Béni Kelboun. Ele escreve sobre isso: « Na mitologia araberbere, Béni Kelboun designava os tribos canibais que atacavam os peregrinos e os missionários itinerantes antes da era do transporte em comum. Hoje em dia, chamamos Béni Kelboun os oportunistas sem escrúpulos que instituiram a malandragem em dogma. »
A descripção da Argélia contemporânea por Yasmina Khadra é terrível. Ele fala de « o pântano infestado de crocodilos que se tornou Argel », onde « os novos répteis não têm nem paciência nem escrúpulos [e] querem tudo e já, sem partilha e sem concessões ». Mais longe, ele escreve: « Os tempos sofreram mutações, e em Argel, não se distingue mais o vertigem da náusea; em brasa, os espíritos estão a derreter-se como chumbo num mistura de renunciamento e de desgoto. Argel já não é a mesma; as suas bases não têm mais mistérios do que atrações. Com os seus farristas exilados, a cidade é infestada por arrivistas brutalmente enriquecidos, sem classe nem estatuto, que acreditam sem dúvida nenhuma que as virtudes têm um preço, tal como o mérito. Eles colocaram de cabeça para baixa a escala de valores, andaram acima dos corpos de batalha e a ordem das coisas, pisaram as linhas vermelhas e os monumentos, convencidos de corromper as almas e também os juramentos, apenas cuspindo em cima. » O autor adopta um tom lírico quando ele nos partilha as reflexões de um dos seus personagens, Ed Dayem: « Ah! Argel, Argel... Inscritos aos eternos ausentes, os seus santos patrões escondam-se atrás das suas sombras, um dedo nos lábios para suplicar os seus paroquianos de fingir de morto; quanto aos seus hinos cantados com alegria, eles apagaram-se com a confusão de uma juventude em docas secas que não sabe fazer mais nada fora de cruzar os braços, esperando que uma ira declara-se na rua para devastar as lojas e incendiar os edifícios públicos. Fora de uma minoria de esnobes que pegam a Paris os seus piores defeitos, é uma total bastardização metastizada. Até o vício desemaranha-se na monotonia ambiente [...]. »
Como sair do sistema? A pedrinha do exército no sapato do Hirak
« Partem, libertam a Argélia », « Para uma Argélia livre e democrática », « FLN fora », « Farto dos generais », foram frases ouvidos nos protestos, os quais continuaram bem além da queda de Abdelaziz Bouteflika. Certamente, o poder multiplicou as tentativas de obstrução ao direito de reunir-se, por exemplo limitando o acesso à capital das pessoas vindo do resto do país. Logo no início do verão, em apenas um mês, umas cinquenta pessoas foram detidas, guardadas em detenção, a maioria por ter levado uma bandeira berbere, voltaremos nesse ponto, mas também, para muitos, por ter criticado o chefe do comando militar, como o fez o antigo veterano da independência, Lakhdar Bouregaâ, 86 anos de idade, detido em 29 de Junho para « ataque ao moral das tropas do Exército Nacional Popular e desrespeito a corpo constituido ». Os manifestantes, em Argel mas também em outras cidades como Constantina e Anaba, não pararam de reclamar a partida de Ahmed Gaid Salah, a libertação dos manifestantes detidos, e a implementação de um verdadeiro processo de transição democrática.
É portanto com o objetivo dividir a contestação que Ahmed Gaid Salah anunciou, em 19 de Junho, que as forças de ordem proibiam daqui em diante qualquer bandeira outro que « o emblema nacional » nos protestos. Entender: o emblema berbere,, constituido de três faixas horizontais azul, amarela e verde, com no centro a letra Yaz do alfabeto tifinague, não seria, portanto, jamais tolerado nas paradas de protesto. Por lembrança, os berberófonos, particularmente concentrados na Cabília, representam entre 25 e 30% da população argelina (pelo menos dez milhões de pessoas), segundo estimações. Como já o tínhamos dito na primeira parte deste artigo, as questões políticas, sociais e identitárias entrelaçam-se para a comunidade amazigue (berbere), amplamente marginalizada. A postura de Gaid Salah, portanto, não chega por acaso, ele tem como alvo cristalizar, por puro oportunismo, o foco na questão cabila – manobra sem sucesso, aliás. « A Argélia só tem uma bandeira […] símbolo da [sua] soberania […], da sua independência, da sua integridade territorial e da sua unidade popular », declarava então o general, denunciando « a tentativa de infliltrar as marchas e de levar outros emblemas que [o] emblema nacional por uma pequena minoria ». Palavras irrelevantes, ainda mais porque o emblema amazigue nunca foi proposto como substituição à bandeira nacional, e porque a dimensão amazigue da identidade argelina já é, de uma certa maneira, constitucionalizada – a língua tamazigue foi reconhecida « língua nacional » pelo Estado em 2002, e « língua oficial » em 2016.
Os Argelinos responderem ao exército, mostrando a sua unidade durante os protestos do 21 de Junho. Apesar de muitas detenções e ataques contra os manifestantes, e depois detenções provisórias ao título do artigo 79 do Código penal (o qual pune com entre um e dez anos de prisão « qualquer um que tomou iniciativa, por qualquer meio que seja, de prejudicar a integridade do território nacional »), a parada mostrou um lindo rosto e muitas bandeiras berberes convivendo naquele dia com o da Argélia. O jornal argelino Liberté publicou um título dizendo que, apesar da sua proibição, « o emblema amazigue triunfa em Argel ». No total, segundo um balanço oficioso de ONG argelinas, contava-se no final de Outubro mais de uma centena de prisioneiros ditos de consciência. Outras estimações evocavam 300; o número exato é difícil de conhecer, pois as autoridades recusam-se a o comunicar. Em 12 de Novembro, a Justiça condenou à prisão efetiva vinte e oito pessoas detidas em possessão da bandeira amazigue.
Paralelmente à repressão da rua, o poder procurou organizar um simulacro de transição. No início de Julho, após protestos de massa nos quais os manifestantes comemoraram os 57 anos da independência argelina (em 5 de Julho), o presidente por interino Abdelkader Bensalah propôs a criação de uma « instância de diálogo » independente e na qual não seriam associadas nem o exército nem o poder instalado, e que seria encarregada de organizar a futura eleição presidencial. É um chefe de Estado contestado que fez então esta proposta. De fato, porque o prazo de 90 dias previsto pela Constituição para o interino após a destituição do chefe do Estado expirou em 9 de Julho, Bensalah – com base uma decisão do Conselho constitucional propondo uma interpretação ampla da Lei fundamental, estimando que o mandato por interino tinha que ser prolongado até a eleição de um novo presidente – manteve-se na sua carga. Logo em 10 de Julho, Ahmed Gaid Salah reafirmou-lhe claramente o seu apoio.
Sem surpresa, em 26 de Julho, de novo um sexta feira, as ruas de Argel mobilizam-se para denunciar o painel designado pelo poder para constituir a « Instância de diálogo e de mediação » encarregada de negociar as modalidades da eleição presidencial. Painel cuja composição efectuou-se sobre sugestão do Fórum civil para a mudança, uma organização da sociedade civil. Uma das figuras do painel cristaliza os descontentamentos: Karim Younes, ex-presidente da Assembleia Popular Nacional e antigo ministro de Bouteflika na altura da repressão trágica na Cabília em 2001. Entre os outros membros do painel duja presença questiona, conta-se um antigo membro da Câmara alta do Parlamento nomeado na quota presidencial de Abdelaziz Bouteflika. Além da falta de representatividade induzida pela sua composição, é a própria existência desta instância que alimenta a polémica, pois ela não era pedida pela contestação e só existe por decisão arbitrária, ou seja, pela vontade de Abdelkader Bensalah – apoiado por Gaid Salah. Em 7 de Agosto, a Instância nacional reune-se pela primeira vez para dialogar com pessoas apresentadas como ativistas da contestação. A maioria julga necessário organizar a presidencial muito rapidamente, e sem intervenção do governo de Noureddine Bedoui. O dia a seguir, Gaid Salah julga que as revindicações fundamentais da contestação foram satisfeitas, que o objetivo é agora a presidencial, e portanto ele recusa implementar as raras medidas de apaziguamento propostas pela Instância de diálogo: libertação dos prisoneiros de consciência, desagravamento das revistas e do dispositivo policial nos dias de mobilização, etc.
Em 26 de Agosto, o chefe do comando militar reafirma o seu recuso categórico de uma transiç~~ao que poderia ter « consequências perigosas » e chama à organização rápida de uma eleição presidencial. Ile rejeita igualmente uma ideia chave proposta por Karim Younes, ou seja, a promessa prévia dos candidatos à presidencial de implementar as recomandações de uma futura conferência nacional de diálogo. Outras propostas desse tipo são lançadas, como uma presidencial com uma promessa dos partidos e dos candidatos de organizar legislativas antecipadas e de abrir um processo constituinte. Pistas varridas pelo general Gaid Salah, o qual denuncia a « tentativa de difundir ideias sombras que condenam o futuro presidente e lhe impõem agendas pré-estabelecidos » que seriam contrárias à Constituição.
No contexto desta crise institucional, durante todo o verão, o tabuleiro político revela-se em plena recomposição. Os partidos de oposição tentam estruturar-se a cerca de alianças, às vezes de circonsctância, criando uma bipolarização crescente da vida política. Por um lado, encontra-se partidários de uma solução que integraria-se no quadro constitucional presente, com objetivo a eleição de um novo chefe do Estado; por outro lado, defende-se a implementação de uma assembleia constituinte diretamente ligada ao movimento popular. Em 6 de Julho, os partidos políticos (Talaie El-Houriyet, El-Adala, Movimento da Sociedade para a Paz…) e organizações da sociedade civil mais em favor do primeiro cenário reuniram-se em Ain Benian, na periferia de Argel, para « jornadas nacionais do diálogo », com alvo implementar mecanismos para sair da crise e poder organizar, em prazos razoáveis, uma eleição presidencial. Além da libertação dos prisoneiros políticos e de consciência, e a liberdade da imprensa e de associação, o roteiro então produzido previa a formação de um governo de « competências nacionais » e ainda a implementação de uma instância eleitoral independente. Crítica em relação à instituição militar e às suas marionetes políticas (por exemplo Bensalah), esta coligação, dominada por nacionalistas e islamistas, reunindo partido sob a etiqueta das « forças da mudança », é de fato a corrente da oposição a menos ameaçadora para o poder.
Vários partidos históricos de oposição, como a Frente das Forças Socialistas (FFS), a Reunião para a Cultura e a Democracia (RCD), o Partido dos Trabalhadores (PT), o Movimento Democrático e Social (MDS), ou ainda o Partido Socialista dos Trabalhadores (PST), aos quais acrescentam-se a Liga argelina para a defesa dos direitos humanos e várias personalidades da sociedade civil, querem-se mais em ruptura com o sistema atual. Caraterizadas pela presença de forças ancoradas eleitoralmente à esquerda e na Cabília, essas formações cujo regrupamento chama-se « a alternativa democrática » pedem previamente a partida de todo o governo e a implementação de uma Assembleia constituinte. Temendo que uma simples eleição presidencial consagra de fato a continuidade do regime, estabelecem, em 26 de Junho, um Pacto político para uma verdadeira transição democrática, com uma lista das suas condições para participar a um eventual diálogo donde seriam excluidos as autoridades e o exército. Entretanto, no meio de Junho, uma centena de organizações da sociedade civil argelina, recusando a aceleração do calendário eleitoral desejada por Gaid Salah, chamaram a uma « transição entre seis meses e um ano no máximo » conduzida por uma ou umas personalidades consensuais. Sob o impulso de atores da sociedade civil, os dois pólos políticos, aqueles que pediam uma presidencial sob condições, e aqueles reclamando um processo constituinte, encontraram-se em 24 de Agosto, sem grande avanço concreto, para lembrar as exigências do movimento ainda insatisfeitas: « a libertação dos prisoneiros de consciência, a supressão das limitações nos espaços públicos, a libertação das mídias e o fim do bloqueio sobre a capital ».
Quanto à Frente de Libertação Nacional, a questão era de saber se ele ia a sobreviver ao ano 2019 – por enquanto, ainda está viva. Desde o 22 de Fevereiro, a FLN, tal como a Reunião Nacional Democrática (RND), outro partido da maioria presidencial (criado em 1997), são alvos dos manifestantes que as designam como grupamentos de corruptos ao serviço do clã Bouteflika. As chamadas para simplesmente dissolver a FLN, a qual tornou-se desde vinte anos um ponto de partida para homens de negócios sem escrúpulos – e chamado por isso « o partido da chkara » (uma palavra que designa um pequeno saco de cor preta usado para comprar um bom lugar nas listas de candidaturas para ser eleito deputado) –, multiplicaram-se nos últimos meses. Em 20 de Agosto, até a poderosa Organização Nacional dos Mujahidines (ONM), composta de antigos combatantes, pediu às autoridades para tirar o « símbolo da FLN » ao partido. Aliás, a FLN e a RND permanecem, ambos, excluidos das discussões implementadas pela Instância de diálogo criada por iniciativa da presidência por interino. Enquanto a direção da FLN vê nessas manobras « agendas escondidas » que questionam a própria independência da Argélia, muitos Argelinos reclamam que a sigla da FLN seja « devolvida » à nação e libertada das conotações partidárias.
Ao ver a vitrine política do regime, o seu velhíssimo presidente, o seu partido oficial, a sua central sindical ou o Parlamento, dá para ver que o Hirak (« movimento ») reduziu o poder à sua única expressão bruta: o exército. Notamos que desde a queda de Abdelaziz Bouteflika, o poder impulsou uma verdadeira operação « mão limpas », como o tínhamos descrito na primeira parte deste artigo. Porém, com estas detenções, o exército procura, obviamente, acalmar a rua sem conceder nada no fundo. As operações de detenção são amplamente transmitidas nas mídias, porém, como o lembrava o jornalista Omar Kharoum num artigo de Maio publicado em El Watan, « os decisores parecem confortar-se no individualismo e na solidão deste roteiro », mas impedem sobretudo « o surgimento de um novo pessoal com o advento de instituições viáveis ». Ainda mais, a lustração não afeta só próximos do clã Bouteflika, mas também figuras de oposição, como Louisa Hanouna, secretária geral do Partido dos Trabalhadores, ou ainda Karim Tabbou, porta-voz da União Democrática e Social (UDS) e figura da constestação popular.
Obvianmente, um processo histórico está em marcha e faz tremer os mastotondes do sistema. Mas esta sequência pode ser apenas uma parte de xadrez finamente conduzida, até recentemente, por Gaid Salah e os seus próximos, e que poderia concluir-se, se mudanças institucionais são realizadas após a eleição presidencial (o que é pouco provável), com renovação profunda da paisagem política, económica e social argelina. No âmbito desta renovação política, vemos bem, porém, que as reações e os espasmos do sistema agonizante reclamam, nas oposições, a maiora vigilância.
A presença da comunidade argelina em Paris, no protesto do 1 de Maio celebrando a Festa do Trabalho.
A presidencial para sair da crise?
Num « discurso à nação », Abdelkader Bensalah anunciou em 15 de Setembro passado (dois dias após novos protestos de massa nas ruas de Argel), que a eleição presidencial teria lugar em 12 de Dezembro. Na véspera, o presidente por interino tinha assinado duas leis (aprovadas na mesma semana pelo Parlamento) com alvo a eleição: uma lei sobre a criação de uma autoridade « independente » encarregada de organizar o processo eleitoral (conduzida finalmente por um antigo ministro da Justiça, Mohamed Chorfi) e uma outra revisão da lei eleitoral. Um conjunto de décisões sucessivas tomadas sob a pressão do chefe do comando militar, o qual tinha ditado a agenda eleitoral uns dias antes. Neste contexto, a desconfiança é total em relação ao governo, como o ilustrou a mobilização, durante vários dias no meio de Outubro, de dezenas de milhares de manifestantes contra a nova lei sobre o investimento no setor dos hidrocarbonetas, texto elaborado numa forte opacidade e cujo conteudo exato não é tornado público. Em 27 de Outubro, os juizes e os procuradores argelinos que, apoiados pelo Sindicato Nacional dos Magristrados (SNM), iniciaram uma greve ilimitada para reclamar o fim do « controlo do poder executivo sobre o poder judiciário », em particular « sobre as prerogativas do Conselho superior da magistratura », e ainda o cancelamento da mudança de atribuição de 3 000 deles, ou seja, os três quartos dos efetivos. Esta greve, com uma dimensão inédita para esta instituição, até ameaçava o próprio processo eleitoral, pois os magistrados assumem um papel determinante na organização das eleições – porque são entre outras coisas encarregados de supervisionar o registro eleitoral e de recensear os resultados do voto em cada município.
O formalismo absurdo da administração e da autoridade encarregada da eleição, a qual anunciou um aumento nunca vista das inscrições nos registros eleitorais, « em particular na juventude », acentuou o desconforto ambiente, e em paralele, o torpor do Outono caniculário de Argel e os testemunhos no resto do país não vei realmente confirmar este entusiasmo. Pelo contrário, a oposição manteve o seu boicoto quase unánimo, e a rua mobilizou-se a várias ocasiões para contestar a candidatura de antigas figuras do regime. Na véspera do prazo para depositar a sua candidatura para a presidencial (vinte e dois foram depositadas), e de novo na ocasião do aniversário do lançamento da guerra de independência, as Argelinos manifestaram em massa, em 25 de Outubro e em 1 de Novembro, ou seja, as 36° e 37° sextas consecutivas, contra o poder. Finalmente, a Autoridade nacional independente das eleições (ANIE), novo organismo suposto garantir a transparência e a equidade da eleição, anuncia em 2 de Novembro a lista dos candidatos aprovados, cinco no total, validade no dia a seguir pelo Conselho constitucional: Azzedine Mihoubi, dirigente da Reunião Nacional Democrática desde Julho de 2019; Abdelkader Bengrina, em nome do partido islamista El-Bina; Abdelmadjid Tebboune, várias vezes governador de região e ministro desde a década de 1980; Alis Benflis, já candidato à presidencial em 2004 e 2014; e Abdelaziz Belaid, já candidato em 2014. Os quatro primeiros já tinham todos sido membros pelo menos um vez do governo, na carga de ministro, ou mesmo na de Primeiro ministro para Alis Benflis (entre 2000 e 2003) e Abdelmadjid Tebboune (em 2017); quanto a Abdelaziz Belaid, ele foi deputado entre 1997 e 2007. Além disso, Alis Benflis e Abdelaziz Belaid são ambos trânsfugas da FLN, a até Alis Benflis foi secretário geral do partido entre 2001 e 2004. Não foi claro se os detentores do poder tiveram um candidato privilegiado, contudo eles contavam que ele fosse ligado ao sistema, que ele não aparecesse em ruptura contra ele – o que já era o caso, uma vez que essas cinco candidaturas tinham sido aprovadas. Porém os relés eleitorais do regime – como a FLN ou a União geral dos trabalhadores argelinos (UGTA) – tendo sido varridos pela contestação (e pela ofensiva « judiciária » do comando militar contra as redes do clã Bouteflika), o resultado da eleição permanecia incerta.
A campanha foi marcada pelos discursos sem concessão do poder denunciando por exemplo uma manipulação « do estrangeiro » (entender: da França) e a subida suposta de forças centrífugas (cabilas em particular); em 3 de Dezembro, o ministro do Interior Salah Eddine Dahmoune até disse sobre os manifestantes, ainda opostos ao calendário eleitoral imposto por Gaid Salah, que eles são « pseudo-Argelinos, traidores, homossexuais e mercenários » ao serviço do colonialismo francês. Na rua como nas redes sociais virtuais, os Argelinos responderem-lhe, usando em particular um hashtag significativo: « Somos todos mercenários perversos e homossexuais ». Aliás, um outro fato marcou a campanha: a constância da mobilização popular. Ao longo das semanas, os cinco candidatos à presidência tiveram amplamente a ocasião de medir a amplitude e a ancoragem da rejeição que eles suscitam. Melhor, a data do 12 de Dezembro foi bem mal escolhida, pois a véspera, em 11 de Dezembro, correspondia ao aniversário dos grandes protestos de 1960, os quais, após a batalha de Argel, tinham significado ao colonizador francês a persistência do movimento nacionalista argelino; um povo estimado a várias dezenas de milhares de pessoas aproveitou então por mobilizar-se de novo, invadindo as ruas do centro de Argel, apesar das intervenções sistemáticas e muitas vezes brutais da polícia a cada tentativa de reunião e manifestação. Em 13 de Dezembro, ainda, para a 43° sexta consecutiva do Hirak, a contestação exprimiu-se amplamente. Saido vencedor da eleição com 58,13% dos votos, Abdelmadjid Tebboune, 74 anos de idade, é logo fortamente contestado e enfraquecido. Em particular, podemos notar a abstenção recorde conhecido naquele dia da eleição, pois apenas 39,88% dos inscritos mobilizaram-se – 41,07% no território nacional e 8,83% para os Argelinos do estrangeiro –, um número inferior por mais de dez pontos ao de 2014, o qual já era o mais fraco até então. Quanto aos votos brancos e nulos, o seu número – um milhão 245 000 ! – representa 12,76% dos votantes.
Para Abdelmadjid Tebboune, os desafios são consideráveis. São primeiramente de ordem político, e até constitucional. Previamente, podemos constatar que os dois dos três « B » encarregados da transição e que não tinham deixado o poder, demitiram-se finalmente em 19 de Dezembro passado, no dia da tomada de posse do novo presidente: Noureddine Bedoui, ao benefício de um novo Primeiro ministro; e Abdelkader Bensalah, o qual deixou logicamente a carga de presidente por interino, ao benefício do novo chefe de Estado em função.
Trata-se agora de implementar uma grande parte das revindicações levadas pelo movimento de protesto, que saiu nas ruas quase um ano inteiro, cada sexta feira. A obra é enorme, ainda mais se tomamos em conta a influência ainda determinante do exército na vida política. O novo poder tem a carga de promover um clima favorável ao debate público, às liberdades individuais e coletivas (em particular de expressão e de reunião), e portanto à democracia. A politização da instituição judiciária esses últimos meses, tal como o clima de repressão implementado pelo chefe do comando militar, palpável durante a eleição presidencial, revelam os disfuncionamentos democráticos óbvios do sistema atual (o que, claro, não tem nada de surpreendente), e as constâncias do antigo regime. Abdelmadjid Tebboune declarou às mídias após a sua vitória à presidencial, querer defender a liberdade da imprensa e preparar uma nova lei eleitoral « [separando] definitivemente o dinheiro da política », e sobretudo ele prometeu « alterar a Constituição [...] a qual será submetida a um referendo popular ». Mas não detalhou nem o procedimento que pretendia implementar, nem por quem o texto seria modificado, e ainda menos quais partes da Constituição seriam alteradas. Permanecemos portanto bem longo do processo constituinte reclamado pelos manifestantes. Sobretudo, a repressão dos movimentos em favor da democracia e dos defendedores dos direitos humanos, em particular aqueles ligados ao Hirak, continua e acentua-se desde a eleição: uma maneira de mandar uma mensagem clara às e aos que ilusionaram-se sobre a coloração do mandato presidencial que abriu-se há quase dois meses.
Um risco existe de ver repetir-se um cenário à moda mauritana (2008) ou egípcia (2013), ou seja, ver o exército tomar qualquer pretexto para provocar a queda do presidente civil (mais ou menos) democraticamente eleito, por exemplo se este mesmo presidente decide afastar do poder altos oficiais do exército, questionar o influência da instituição militar, ou se ele torna-se impopular e deve enfrentar um movimento de protesto. Por enquanto, o falecimento de Ahmed Gaid Salah – ele tinha ditado a agenda eleitoral ao presidente por interino Abdelkader Bensalah durante nove meses, e tinha uma influência grandíssima nas chefes de Região (Wilaya), os quais permanecem os verdadeiros mestres políticos e securitários da Argélia – parece afastar esta ameaça; mas no contexto atual, difícil poder afirmar que o seu sucessor retirará-se da cena política e que os militares voltarão nos seus quartéis. Aliás, várias figuras da instituição militar e dos serviços de inteligência forjaram laços (diretos ou indiretos) com a esfera económica nacional, incluindo o setor dos hidrocarbonetos, e é provável que muitos não aceitam sem reação de questionar esses interesses, não mais do que aceitariam de por em luz as responsabilidades de uns e outros em eventos de repressão, por exemplo aquela que sofreu a Cabília em 2001.
A morte por ataque cardíaco, em 23 de Dezembro, de Ahmed Gaid Salah, o homem forte da transição, quase octogenário inflexível e guardião do sistema, poderia ter deixado uma margem de manobra maiora a Abdelmadjid Tebboune, com uma oportunidade histórica para lançar uma verdadeira transição constitucional. Logo em crise de legitimidade – o próprio dia da proclamação da sua vitória, os manifestantes qualificavam Tebboune de « presidente coca » em referência a um caso de droga no qual está ligado o filho dele –. o chefe do Estado teria sido bem inspirado de adoptar uma postura realmente revolucionário em relação ao « Estado profundo ». Em 14 de Janeiro passado, ele foi convidado a isso por milhares de estudantes, saidos reclamar uma « transição democrática »; como cada terça feira, o cortejo estudantil desfilou nas principais artérias do centro da cidade para ir até os Correiros (Grande Poste), prédio emblemático e ponto de reunião do Hirak. Nesta ocasião, uma plataforma em quatorze pontos, retomando as principais revindicações do movimento revolucionário, foi conhecida, incluindo a organização de eleições legislativas e autarquicas antecipadas. Porém, Tebboune até então nem reagiu à postura construtiva dos líderes dos protestos.
O novo poder tem a carga de promover um clima favorável ao debate público, às liberdades individuais e coletivas (em particular de expressão e de reunião), e portanto à democracia. A politização da instituição judiciária nos últimos meses, tal como o clima de repressão implementado pelo chefe do comando militar, palpável durante a eleição presidencial, revelam os disfuncionamentos democráticos óbvios do sistema atual (o que, claro, não tem nada de surpreendente), e as constâncias do antigo regime. Abdelmadjid Tebboune declarou às mídias após a sua vitória à presidencial, querer defender a liberdade da imprensa e preparar uma nova lei eleitoral « [separando] definitivemente o dinheiro da política », e sobretudo ele prometeu « alterar a Constituição [...] a qual será submetida a um referendo popular ». Mas não detalhou nem o procedimento que pretendia implementar, nem por quem o texto seria modificado, e ainda menos quais partes da Constituição seriam alteradas. Nenhuma referência, em nenhum lugar nos seus discursos, às revindicações concretas da sociedade civil mobilizada desde Fevereiro de 2019. Além disso, Abdelmadjid Tebboune, porque cumula (como é de costumo na Argélia) as suas funções com as de ministro da Defesa, é assistido nesta carga pelo novo chefe do comando militar, Said Chengriha, o qual substituiu Ahmed Gaid Salah. E, se ele é o primeira nesta função a não ter passado pelo Exército de Libertação Nacional (o qual conduziu a guerra de independência), conclusão de três anos de mudanças importantes na instituição militar (passagens à reforma, destituições, detenções por corrupção e enrequecimento ilícito, etc.), contudo o major-geral Chengriha não encarna realmente uma mudança de geração na alta hierarquia do exército. Esta última permanece mestre verdadeiro do país.
Permanecemos portanto bem longo do processo constituinte reclamado pelos manifestantes. Sobretudo, a repressão dos movimentos em favor da democracia e dos defendedores dos direitos humanos, em particular aqueles ligados ao Hirak, continua e acentua-se desde a eleição: uma maneira de mandar uma mensagem clara às e aos que ilusionaram-se sobre a coloração do mandato presidencial que abriu-se há quase dois meses.
Para a nova presidência, acrescentam-se ainda desafios económicos. Já o dizíamos o mês passado, a Argélia conhece há anos problemas estruturais: corrupção endêmica (105° na classificação de Transparency International de 2018); alto desemprego (pelo menos 12%), que afetava quase um terço dos 16-24 anos no início de 2019; capacidades produtivas muito fracas (a Argélia importa 70% dos produtos que ela consume), incluindo no plano alimentário; dependência em relação à renda dos hidrocarbonetos (as exportações de gás e de petróleo representam 95% das receitas em divisas e mais de 60% das receitas fiscais); clientelismo, peso da burocracia e ausência de liberdades, que degradam o ambiente empresarial; clima político e social pouco favorável à confiança, à tomada de risco e à inovação; fraqueza do setor turístico; etc. O movimento de protesto ainda fragilizou esta economia ofegante. Além disso, as ações intentadas contra os industriais próximos do clã Bouteflika contribuiram à queda dos conglomerados que gostavam apresentar-se como jóias do empreededorismo privado. A queda dessas empresas, certas delas vítimas do gelo das encomendas públicas, às vezes também dos ataques judiciários – os impérios económicos de Ali Haddad e dos irmãos Kouninef são particularmente afetados –, provoca o despedimento ou o gelo dos salários de dezenas de milhares de salários, enquanto número de subcontratantes e fornecedores ficam com faturas não pagas. Uma das causas desta situação: o país sofre de uma legislação penal e comercial inadequada. Outro ponto problemático, os proprietários das sociedades comerciais, tal como os magistrados, conhecem mal o direito empresarial. Em Setembro passado, a designação pela justiça de administradores permitiu o degelo das contas bancárias de algumas dessas empresas, a situação permaneceu desde então muito instável. Além disso, o clima geral alimenta incertezas tais que provoca um abrandamento notável dos investimentos estrangeiros no país. O setor da construção, o qual emprega quase um milhão de pessoas, sofre particularmente.
O preço relativamente baixo do petróleo e do gás nos mercados mundiais deixa pouca margem de manobra às autoridades – para equilibrar o seu orçamento, o país precisaria de um barril custando 116 dólares, ou seja, 50 a mais do que o nível atual, e manter o nível da sua produção, em queda livre desde Fevereiro de 2019 (e já muito afetada desde 2017 pela queda da cotação dos hidrocarbonetos). A situção, portanto, degrada-se inexoravelmente. Antes mesmo do grande desafio da diversificação da economia argelina, para sair da dependência do petróleo e do gás, do alvo de atingir a auto-suficiência alimentar e do de garantir empregos para uma população muito jovem (mais de um Argelino sobre dois tem menos de 30 anos), o novo chefe do Estado, portanto, deve resolver as urgências económicas e sociais que conhece qualquer país marcado por um movimento revolucionário como o nascido na Argélia em 22 de Fevereiro.
Quando foram votar (para os raros que o fizeram) em 12 de Dezembro passado, os Argelinos sairam provavelmente de uma área de grande incerteza política e social... para entrar numa nova. Será que a sequência que abra-se agora permitirá uma verdadeira transição, para consagrar o sucesso da revolução que conseguiu obrigar Abdelaziz Bouteflika a partir? Do lado do poder, os sinais são negativos, como o ilustrou a tomada de posse de Abdelaziz Djerad em 28 de Dezembro à carga de Primeiro ministro, um cacique cuja nomeação falta claramente de originalidade ou de vontade de renovação. Em paralele, a continuação das políticas de repressão contra os defendedores dos direitos fundamentais não deixa de ser muito preocupante e anunciador de um futuro sombrio, cheio de incertezas. Contudo, a Argélia pode contar numa sociedade civil dinámica, com forças poderosas como o Sindicato autónomo do pessoal e da administração pública, ou ainda a Liga argelina de defesa dos direitos humanos, mas também um painel diverso de atores associativos menos conhecidos mas muito envolvidos no terreno social ou na ação cidadã. Ela pode também contar com uma classe política, uma oposição sobretudo, que parece por enquanto mostrar ao nível dos desafios; e com umas poucas mídias que, ainda independentes, retransmitiram fielmente as queixas da rua ao longo dos últimos meses. Ela conta sobretudo, esta Argélia, com uma juventude atenta e consciente, que não aceitará mais de ver roubados os seus direitos e as suas liberdades.
Protesto da diáspora argelina contra a eleição presidencial, aqui em 1 de Dezembro de 2019, na Praça da República em Paris.
Este artigo sendo em grande parte inspirado do romance Que Esperam os Macacos (2014) de Yasmina Khadra, não resistimos à tentação de propor, como conclusão, este devaneio lírico que o autor confere ao personagem principal, o inspector Zine, no final da obra.
Eu recusa-me a acreditar na reciclagem da tua infelicidade, Argélia. O teu simulacro de vítima expiatória não engana ninguém e a tua convalescência foi longe demais. Um dia, o teu véu integral que trapaceie ao génio dos teus prodígios cairá e poderás despir-te para o mundo inteiro ver que tu não ganhastes uma ruga [...]. Argélia Bonita, Macia, Magnífica, eu recuso-me a acreditar que os teus heróis são mortos para ser esquecidos, que os teus dias estão contados, que as tuas ruas são órfãs das tuas lendas e as tuas crianças arrumados no depósito das estações fantasmas. Se for preciso sacudir as tuas montanhas para as espanar, beber o mar até a última gota para que as tuas calanches tornam-se uns pomares, se for preciso ir no fundo do inferno trazer a luz que falta ao teu sol, eu farei isso.