O « Hirak » argelino (1/2): quando o povo argelino impõe prolongamentos à Primavera Árabe
Em 2 de Abril de 2019, o presidente argelino Abdelaziz Bouteflika deixou a carga de chefe de Estado, que ele ocupava desde 1999. Ele o fez sob a pressão da rua, finalmente apoiada pelo comando do exército, o qual pensa provavelmente que a destituição do rais lhe permitirá, de uma maneira ou de uma outra, conservar os seus privilégios. Volta numa revolta pacífica, qualificada às vezes de « Revolução do Sorriso » por causa do ambiente de festa e pacífico no qual ela aconteceu.
Por lembrança, a Argélia é um grande país de 2,4 milhões de km² (o maior de África) e de 41,32 milhões de habitantes (o 8° do continente). Dominado nos tempos mais antigos pelos Númidas (Berberes), o território que corresponde hoje ao Norte da Argélia (a sua parte a mais povoada) foi ocupado por Roma, após o desaparecimento de Cartago em 148 antes de J.-C. É a altura da província de Africa Nova, nascida nas ruínas do reino númido de Massinissa (IIndo século antes de J.-C.), cujos sucessores não conseguiram conservar a unidade. O país argelino é finalmente invadido pelos Árabes, após uma curta ocupação dos Vândalos e dos Bizantinos; mas a pacificação do território é tornado difícil por causa da resistência berbere, a qual acaba com a morte de Koceila (686), e com a de Kahina (702), princesa cristã do Aurès que tinha conseguido cristalizar a luta. O islã torna-se ao longo dos séculos a religião eestruturante da sociedade, embora a diversidade de interpretações do dogma islâmico exprima-se ainda mais, no Magrebe, porque permanece uma forma de resistência em relação à dominação árabe. O que se traduz pelo relativo bom acolhimento que recebem certos cismas, por exemplo o ramo carijista, e depois o xiismo dos Fatímidas. Muito cedo autónomo do reino dos Abássidas (após uma revolta berbere no século VIII), a Argélia não existe, então, de forma nenhuma como Estado, e ainda menos como nação. Ela é fraccionada em pequenos reinos, e é o objeto de lutas entre dinastias carijitas.
Diante das vontades secessionistas no Magrebe, os Fatímidas, originários de Baixa Cabília e que dominam, desde a cidade do Cairo, toda a África do Norte (909-1171), incentivam tribos árabes nómados a migrar para o Oeste, a partir de 1050. São as invasões hilalianas; elas não só destabilizam a região, mas também acelerem a sua arabização, no plano demográfico, e sobretudo socioeconómico e cultural. A « mistura » é desde então iniciada entre culturas árabes e berberes, e muda profundamente o rosto do Magrebe. Se elas distinguem-se ainda, são agora embos constitutivas da identidade argelina.
À ocupação dos Almóadas (1147-1269) chegados do Anti-Atlas (Marrocos), seguiu a dinastia dos Zianides (ou Abdalwadides), a qual resiste às ambições dos reis Hafsides e Marinides vindos respectivemente do Leste tunisiano e do oeste marroquino. Mas ela não impede um lento declínio que facilitará a tpùada da codade de Orão em 1509 e de outras praças fortes de menos importância pelos Espanhóis (apesar de um desastre a frente de Argel em 1541). O século XVI vê sobretudo os Tucos otomanos instalar-se de forma sustentável: a regência de Argel permanecerá de 1515 até 1830 e tornará esse território um dos berços da pirataria no Mediterrâneo – Khayr ad-Dîn, governador otomano de Argel (1518-1533), mas sobretudo corsário conhecido pelo nome de Barbarossa, é uma das figuras as mais conhecidas desta história. O resto, já é conhecido: o emir Abd el-Kader cria, ao favor do tratado da Tafna, entre 1837 e 1847, um verdadeiro Estado independente, e resiste à França, presente desde 1830, antes de ser detido e obrigado a exilar-se. Durante os 132 anos de ocupação francesa a política de integração dos departamentos argelinos, que consagrava os muçulmanos como cidadãos de segunda classe, e a expropriação de milhares de Argelinos ao benefício de um milhão de Franceses imigrantes, deixam germinar na população ressentimentos profundos em relação à França « metropolitana ». Uma realidade descrita com uma linda letra pelo autor Yasmina Khadra no seu livro O que o dia deve à noite (2008).
Nascido a cerca de 1930, o movimento nacional argelino é estimulado pelos eventos da Segunda Guerra mundial, e pela repressão brutal da revolta da região de Constantina em Maio de 1945. A partir do 1eiro de Novembro de 1954, a Frente de Libertação Nacional (FLN) lança uma guerra muito violenta de libertação do território argelino, embora as autoridades francesas negarão muito tempo a sua realidade, falando apenas dos « eventos » de Argélia. Em Os Condenados da Terra, publicado em 1961, o psiquiatra e ensaísta martiniquês Frantz Fanon oferece uma análisa muito interessante dos transtornos mentais que resultaram dos traumatismos da guerra, com base a sua experiência na Argélia. Diante de uma situação militar no impasse, a Argélia ganha finalmente a sua independência ao favor da chegada no poder do general de Gaulle el França (1958), o qual reconhece o direito do povo argelino à autodeterminação em 16 de Setembro de 1959. As reações desesperadas de uma parte do exército francês (golpe de Argel em Abril de 1961) e dos « Pieds-noirs » (os Franceses de Argélia)), e a violência que seguiu, não impedem a assinature, em 18 de Março de 1962, dos acordos de Evian (ratificados por referendo em França e na Argélia), prelúdio à proclamação da independência em 3 de Julho de 1962 e à partida da maior parte dos « Pieds-noirs » e dos Harkis (os Argelinos que cooperaram com a administração francesa durante a guerra contra o FLN).
Apesar da oposição a qualquer autoritarismo, defendida por vários líderes da luta pela independência, entre os quais Krim Bekcacem, chefe guerrilheiro assassinado em 1970, e Ferhat Abbas, presidente da Assembleia constituinte de 1962-1963, falecido em 1985, a Argélia conheceu um regime de partido único e um sistema socialista, intervencionista e repressivo. De fato, após a presidência de Ahmed Ben Bella (1963-1965), vítima de um golpe de Estado, o coronel Houari Boumediene cumula até a sua morte, de 1965 à 1978, as funções executivas, e lança o país numa política de grandes obras e numa vaga de nacionalizações, em particular os hidrocarbonetos (petróleo, gás); os activos das empresas francesas de petróleo presentes na Argélia tornam-se propriedade do Estado por 51% em 24 de Fevereiro de 1971. Uma reforma agrária e uma « gestão socialista das empresas » são também lançadas em Novembro de 1971. A repressão política é terrível.
Ela diminua gradualmente na presidência de Chadli Bendjedid, coronel no poder de 1979 à 1992; ele designa um Primeiro ministro, lança a liberalização da economia e acaba com o sistema de partido único. Contudo, o processo de democratização iniciado após os motins de Outubro de 1988 é brutalmente interrompido em Janeiro de 1992, quando o exército anula as eleições legislativas em curso, que iam a consagrar a vitória dos islamistas da Frente Islâmica da Salvação (FIS) – o qual já tinha amplamente ganhado o primeiro torno, o mês anterior. Durante uma década, o país, que vive sob um regime de estado de emergência, é controlado pelo aparelho militar e marcado por uma violenta guerra civil caraterizada pela guerrilha conduzida pelos islamistas, por uma terrível vaga de atentados e pela repressão violenta e sem concessão orquestrada pelo Estado. Ela faz pelo menos 200 000 mortos. É neste contexto que Abdelaziz Bouteflika, « filho » do sistema, chega no poder em 1999 – após uma « travessia do deserto » política na décadas de 1980 e 1990.
Este conjunto de elementos é determinante para entender a Argélia de hoje. A dimensão plural da identidade argelina, até recentemente negada pelo poder, é intrínseca à questão cabila, posta em luz durante a efémera Primavera berbere de Abril de 1980, durante a qual manifestantes, na Cabília e em Argel, reclamaram a oficialização da língua amazigue e o reconhecimento da identitade berbere. Além disso, a dominação esmagadora e até recentemente incontestada da Frente de Libertação Nacional – e o seu laço à renda dos hidrocarbonetos – é um fato estruturante (a não ser o fato estruturante) e esclerosante da vida política argelina desde a independência. Finalmente, as lembranças da guerra civil da década de 1990 explicam porquê os Argelinos « atrasaram-se » para contestar o sistema Bouteflika (comparando com os países vizinhos que foram o teatro da Primavera árabe em 2011), e talvez também a influência relativamente fraca (para não dizer nula) que os islamistas, ao contrário do que foi constatado em outros países da região, parecem ter no movimento de contestação atual.
Os anos Bouteflika : da « pacificação » da sociedade à esclerose de um sistema corrupto
Abdelaziz Bouteflika tomou oficialmente posse das funções de chefe do Estado em 27 de Abril de 1999. Ele não faz nenhuma concessão real em termos de democracia, porém este antigo diplomata mostra logo a sua vontade de restaurar a paz, a segurança e a estabilidade. Ele submete a referendo um projeto legislativo de « concórdia civil » em 16 de Setembro de 1999, aprovado por 98,6% dos votos (85% de participação, oficialmente). Em 29 de Setembro de 2005, novo referendo: uma Carta para a paz e a reconciliação nacional é aprovada por 97,3% (para uma participação de 79,7%). Paralelmente, iniciou a profisionalização do exército argelino (2000).
Tragicamente, a « pacificação » do país, enquanto o número de atentados islâmicos baixou, passa ainda pela repressão. Assim, a revolta da Cabília, num contexto de marginalização cultural, transforma-se em « Primavera Negra » em 2001-2002. A reação violenta das forças de ordem faz, segundo a Liga argelina para a defesa dos direitos humanos, pelo menos 126 mortos e mais de 5 000 feridos, e detenções brutais, seguidas por torturas e humiliações, são orquestradas. Um trabalho sincero de transparência e de justiça nunca foi conduzido sobre esses eventos. Ela explica entre outras coisas a persistência dos rancores dos ativistas berberes contra a maioria (arabófona), mas ela permite pelo menos, naquela altura, o reconhecimento da língua tamazight pelo Estado, como « língua nacional ».
Com subvenções, ou ainda com a melhoria dos indicadores de educação e de saúde, o regime compra a paz social, mas o seu balanço não deixa de ser catastrófico, antes de tudo porque ele não diversifica a economia. De fato, com excepção as suas matérias primas, a Argélia não exporta nem produz quase nada. Beneficiando, porém, de um clima e de terras aráveis muito favoráveis, de uma população jovem e globalmente instruída, ela tem trunfos incontestáveis. Sobretudo, a concentração dos poderes e das riquezas esclerosa a economia e o aparelho administrativo a todos os níveis.
Além disso, as liberdades públicas, já amplamente questionadas durante a guerra civil, são regularmente espezinhadas sob Bouteflika. A fechadura das eleições pelo FLN – que torna inconcebível qualquer alternância política – e o consenso de todos os corpos pilares do regime a cerca da figura de Bouteflika, apresentado como uma garantia de estabilidade, desviam os Argelinos da vida política. As eleições sucedem-se e são todos parecidos. Abdelaziz Bouteflika é eleito logo no primeiro torno das presidenciais de 1999, 2004 e 2009, com respectivamente 73,8%, 85% e 90,2% das votos. Quanto às legislativas, elas não permitem mais alternância. Em 2022 como em 2007, o FLN ganha entre um quarto e um terço dos sufrágios expressos, em primeiro lugar, e a sua maioria relativa dos deputados na Assembleia Popular Nacional permite-lhe cada vez constituir um governo de coligação com a Reunião Nacional Democrática (RND), a segunda força política no Parlamento. Mas cada vez, o clima clientelista a cerca do poder e a segurança de uma vitória do FLN (nas legislativas) e de Bouteflika (na presidencial) trunca os resultados a montante das campanhas eleitorais – sem esquecer as práticas de enchimentos de urnas e as pressões observadas sobre os eleitores no próprio dia do voto.
O vento da Primavera árabe, iniciada com a Revolução tunisiana em Dezembro de 2010, não vei perturbar realmente esta realidade. Na Argélia, é preciso distinguir, naquela altura, o protesto social da (mais fraca) contestação com dimensão política. Motins são observados, entre o 3 e o 7 de Janeiro de 2011, em eco das que acontecem na Tunísia; breves, elas protestam sobretudo contra o desemprego endémico e a subida dos preços de primeira necessidade (sem interrupção desde 2008). O governo anuncia, em 3 de Fevereiro, um conjunto de medidas com alvo baixar os preços dos géneros alimentícios. Para comprar a paz social, o regime fecha-se portanto um pouco mais na dependência aos hidrocarbonetos (cujos rendimentos permitem esses « presentes »), em vez de iniciar uma reflexão para repensar o modelo económico. E essa estratégia só funciona parcialmente, pois o país conhece, a partir de Março de 2011, uma vaga de greves e de movimentos sociais, em diversos corpos de empregos: jornalistas, guardas comunais, agentes dos serviços aéreos, estudantes, e até antigos combatantes...
Ainda em 3 de Fevereiro de 2011, para antecipar uma revolta de tipo político, o executivo anuncia o fim (efetivo em 24 de Fevereiro) do estado de emergência decretado em 1992, e proclama a abertura das mídias à oposição, e também o direito a manifestar (excepto na capital). Por outro lado, a contestação política nunca toma realmente uma dimensão de massa. Constituida por sindicatos, associações, coletivos, inteletuais independentes e partidos políticos, a oposição reúne-se sob a bandeira da Coordenação Nacional para a Mudança e a Democracia, criada em 21 de Janeiro de 2011. Essa última organiza protestos cada semana, em Fevereiro, Março e Abril, mas esses, muito fracos, são violentemente reprimidos pela polícia. Em 15 de Abril de 2011, o próprio Bouteflika anuncia uma revisão da lei sobre os partidos políticos, do Código eleitoral, do Código da Informação, e antes do mandato em curso, da Constituição de 1996. Porém, aprovadas uma após as outras entre Novembro de 2011 e Fevereiro de 2012, essas reformas legislativas (sobre as associações, sobre a informação e sobre os partidos políticos) revelam-se muito rapidamente uma cortina de fumo e fortalecem-se, de fato, denuncia a oposição parlamentar, a dimensão liberticida do regime. Finalmente, uma reforma da Constituição tem lugar em Fevereiro e Março de 2016: volta ao limite de dois mandatos presidenciais (não retro-ativo), definição da liberdade da imprensa, fortalecimento do papel do Parlamento na designação do Primeiro ministro, estatuto de « língua oficial » para o tamazight... De fato, a ordem política não sai revolucionada por essa sequência.
Aberta pela primeira vez a observadores estrangeiros, as eleições legislativas de Maio de 2012, que fazem eco a esse conjunto de reformas, reforçam a hegemonia da Frente de Libertação Nacional, e do seu principal aliado no governo, a RND. Tal como nas anteriores, os disfuncionamentos da eleição (entre outras coisas, a delimitação arbitrária dos círculos eleitorais) confirmam as falhas democráticas persistentes. Com 15% dos votos exprimidos, a FLN ganha quase um assento sobre dois, e 24 partidos tendo reunido 36% dos votos só ficam com 18% dos assentos a partilhar-se. O nível de buletins brancos ou nulos (18%), tam como a abstenção, perta de 57% dos inscritos, ilustram o cansaço dos eleitores. As eleições legislativas de Maio de 2017 confortam esse constato. A participação cai a 35%, e se a coligação no poder conserva uma maioria absoluta de deputados, é sobretudo graças ao progresso da RND, pois a FLN conhece uma forte quebra na Assembleia (60 assentos perdidos, apesar de uma melhoria em termos de votos exprimidos). A Frente de Libertação Nacional não deixa de ser o primeiro partido no Parlamento.
Quanto à oposição, ela está num estado preocupante. Os islamistas, coligados na Aliança para a Argélia Verde (a qual reúne três partidos entre os quais o Movimento da Sociedade para a Paz), em 2012, e depois candidatos em ordem dispersa, em 2017, falham cada vez a encarnar uma alternativa credível – ao contrário do que observou-se após a Primavera árabe na Tunísia, no Marrocos e no Egipto. A participação de formações islamo-conservadores no governo na década de 2000, a sua falta de credibilidade, e sobretudo as lembranças da guerre civil, explicam provavelmente esse fracasso; contudo, os islamistas constituem a primeira força de oposição. Quanto à esquerda, o constato é ainda mais alarmante, com um pessoal envelhecendo e uma incapacidade choquante a pensar alianças. A Frente das Forças Socialistas (FFS), presidida desde 1963 por Hocine Aït Ahmed, tal como a Réunião para a Cultura e a Democracia (RCD), conduzido desde a sua criação em 1990 por Louisa Hanoune (primeira mulher candidata a uma eleição presidencial num Estado árabe), não faz melhor, estagnando a cerca de 3%.
O chefe do Estado tem posto o país sob o seu controlo, e em particular sob o da exército, e dos serviços de inteligência. Manobras ilustradas pela nominação de Ahmed Gaid Salah na carga de chefe do comando militar, e depois de Athmane Tartag na liderança do Departamento da Inteligência e da Segurança (DIS, DRS em francês), para substituir, respectivamente, Mohamed Lamari em 2004 e Mohamed Lamine Mediene, conhecido como « Tufik », em 2015. Paradoxalmente, é enquanto ele está claramente enfraquecido, fisicamente, por dois ataques cerebrais acontecidos em Abril e Maio de 2013, que Abdelaziz Bouteflika tem realmente o controlo de todo o aparelho do Estado. É graças ao chefe do exército, tornado em 2013 vice-ministro da Defesa nacional, o general Gaid Salah, que ele pode ser de novo candidato a um quinto mandato em 2014, contra a opinião de Tufik. Após uma campanha marcada pela estranha ausência em todos os eventos da FLN, ele vence, oficialmente com 81,5% dos votos. Porém a abstenção, que atinge um Argelino sobre dois, em forte subida em relação e 2009 (25%), ilustra o desconforto dos eleitores, cansados por um regime surdo às necessidades do povo, desagregado pelas lutas internas, e que mostra óbvios sinais de vacilo.
Finalmente, o poder presidencial, sobre iniciativa de Said Bouteflika, irmão mais jovem de Abdelaziz, deu gradualmente um lugar crescente a uns oligarcas que tornaram-se um novo pilar do regime. Ele os favoreceu particularmente graças aos contratos por ajute direto e a facilidades fiscais. Esses riquíssimos empresários, reunidos no famoso Fórum dos chefes de empresa (FCE), contribuem a manter o sistema Bouteflika em vida.
O quinto mandato, ou a candidatura a mais
A luta pela sucessão à presidência da República tendo ficado sem saída, o poder toma a iniciativa de lançar o chefe do Estado na corrida para um quinta mandato. Em 22 de Fevereiro de 2019, um primeiro dia de protesto nacional ambicionava contestar essa nova candidatura. Não é o fato de nenhum partido, de nenhuma organização, de nenhum líder político. O poder tenta discreditar essa sexta-feira da « dignidade recuperada » nas redes sociais e nas mídias. É preciso notar que logo no início, a validação da candidatura de Bouteflika pelo Conselho constitucional questionava, pois o artigo 139 do Código eleitoral exige a apresentação pelo candidato de « um certificato medical dado ao interessado por médicos ajuramentados » – o que, dado o seu estado de saúde, era claramente impossível. Contudo, em 3 de Março, apesar da contestaçéao, Bouteflika, desde Genebra, em Suíça, onde ele é novamente hospitalizado, faz registrar a sua candidatura, e o mesmo dia, ele faz publicar – se é que foi realmente uma decisão sua – uma « Carte à nação », na qual ele promete reformas políticas, um referendo de ordem constitucional, e uma eleição presidencial antecipada durante o próximo mandato.
1eiro, 8, 15 de Março... Os manifestantes encontram-se todas as sextas para reclamar a partida do rais. O poder tenta vários curingas. Em 11 de Março, Bouteflika aceita, finalmente muito rapidamente, de renunciar ao quinto mandato, mas anuncia várias medidas, um conjunto de decisões que aparecem sobretudo como uma tentativa de controlar a « transição ». Entre elas: um prolongamento do quarto mandato em curso, e portanto um adiamento da eleição, e ainda uma « conferência nacional inclusiva e independente » após a presidencial – essa lembra as « Jordanas da sociedade civil » que tinham reunido em Junho de 2011 parceiros sociais e representantes da sociedade civil (para legitimar as reformas legislativas de 2011-2012), e que não tinham sido outra coisa do que uma palhaçada.
O movimento de protesto não enfraqueça, embora ele conserva uma dimensão muito pacífica, e festiva, daí o nome de « revolução do sorriso ». A pressão popular isola Abdelaziz Bouteflika. Em Março, à medida que os protestos ganha força, demissões multiplicam-se no Fórum dos chefes de empresa (FCE), abalado pelo movimento, em particular em 28 de Março o presidente dessa associação patronal, Ali Haddad, riquíssimo homem de negócios e (até então) poderoso apoio do regime. Quanto a Ahmed Gaid Salah, ele não manda o exército contra a rua. Ironia da história, é esse último, que deve tanto a Bouteflika, que lhe dá o golpe final. Pois, é sob a pressão do Alto-comando do éxercito exigindo a aplicação « imediate » do artigo 102 da Constituição, que Abdelaziz Bouteflika « [notifica] oficialmente ao presidente do Conselho constitucional a decisão de por fim ao seu mandato em qualidade de presidente da República ».
Como isso foi possível? A faísca foi a perspetiva de uma candidatura do presidente Bouteflika a um quinto mandato, porém o movimento nascido em Fevereiro de 2019 caraterizou-se sobretudo pela sua profundidade histórica, geográfica e sociológica. De fato, já o vimos acima, os protestos da primavera foram precedidos por um clima de protesto difuso há quase dez anos. Uma acumulação de lutas setoriais observa-se há muito tempo, deixando germinar descontentamentos profundos: desde a massa de desempregados ao inumeráveis corpos de empregos, passando por motins, um empilhamento de resistências sociais ou, quando elas vêm das comunidades berberes (entre 25 e 30% da população, segunda estimações), identitárias. Além disso, um conjunto de fatores fazem fermentar há muito tempo as iras e as frustrações e conduzirão a esse movimento, como foi observado uns anos antes no resto do mundo árabe. Apesar das especificidades que caraterizam cada país (Tunísia, Egipto, Líbia, Síria, Sudão, Argélia, etc.), os mesmos ingredientes são, de fato, constatados, justificando de uma certa maneira o título deste artigo: ao mesmo tempo evoluções sociais ligadas a determinantes demográficos e sociológicos, e elementos évolutions sociétales liées à des déterminants démographiques et sociologiques, et « gatilhos » que explicam-se pela fraqueza do tecido económico e social dessas sociedades.
Lembramos o que escriviam no seu ensaio O Encontro das civilizações, os demógrafos frencês e sírio Emmanuel Todd e Youssef Courbage: o estudo de um conjunto de variáveis demográficas e sociológicas, como o número médio de crianças por mulher, a mortalidade infantil, ou ainda a taxa de alfabetização, permite mostrar (a obra foi publicada em 2007) que a maioria das sociedades do Médio Oriente e do Magrebe conhecem a sua transição demográfica, e isso explica as perturbações sociais e políticas que são lá constatadas. Muitas revoluções nas sociedades europeias, lembram eles, acontecerem durante as transições demográficas, e obviamente, essas transições, tal como a elevação da taxa de alfabetização, conduzem as novas gerações dos países arabo-muçulmanos a revindicar cada vez mais o acesso à modernidade, à liberdade e à democracia, e a contestar o princípio de autoridade.
Neste contexto explosivo, qualquer crise política ou social de um certo tamanho pode concluir-se com um movimento revolucionário. Em 12 de Fevereiro de 2019, o engenheiro e ensinante francês Jean-Marc Jancovici, conhecido pelo seu trabalho de sensibilização e de vulgarização sobre os assuntos de energia e de clima, lembrava no canal Internet francófono Thinkerview que, em 2011, no Egipto, na Tunísia e na Síria, tínhamos a conjunção de vários fatores, climáticos mas também energéticos: « O fator energético, é o pico energético da zona OCDE em 2006. Por trás: problemas económicos, crise financeira em 2009, e naquele momento os turistas ficam em casa. Portanto as receitas de exportação de país com forte dependência ao turismo como a Tunísia, o Egipto, Marrocos também (mas Marrocos é um caso mais particular), [...] a Síria, baixam. E na mesma altura temos um stress hídrico crescente acerca da bacia mediterrânica, no âmbito do câmbio climático (endémico). E em 2010 temos um duplo processo que aplica-se. Temos uma subida das cotações do petróleo, que provoca com ela uma subida do curso de todas as matérias primas – porque todas as matérias primas são dependentes do petróleo para várias razões diversas [...]. E além disso, enorme canícula em 2010 na Rússia, e acontece que essa canícula dividiu quase por dois a produção de cereais russos – e a Rússia é um grande fornecedor à exportação no mercado mundial, [ela] fornece entre 15 e 20% do total [...]. Em Julho, a Rússia diz: "Este ano, não exportaremos". Overnight: a cotação do trigo na bolsa de Chicago pega 30%. Portanto as importações alimentares, as do Egipto, que é o maior importador de trigo do mundo – e que importa muito mais coisas ainda, porque faz muito tempo que o Nilo não alimenta mais os seus habitantes –, e as da Tunísia, que laboriosamente importa a metade do que ela come, as importações alimentares daqueles países explodem, enquanto as suas receitas de exportação viram feias, na sequência da crise energética (e portanto financeira) de 2006. Portanto temos uma tesoura energie-clima aplicada a aqueles países, e tivemos "revoltas da fome". »
Ele conclui: « Marrocos é um pouco mais particular, porque ele tem uma agricultura de subsistência mais desenvolvida que os outros países, ele é menos importador de alimentos. [...] E a Argélia [condicionou] as suas importações com o petróleo e o gás, cuja cotação subia, mas a Argélia, quando as [suas] exportações de petróleo e de gás irão a tornar-se suficientemente baixos, com uma população suficientemente elevada, num chão incapaz de alimentar [esta população], é escrito. Não sei quando, mas é escrito. » Quando o engenheiro francês diz essas palavras, faltam apenas dez dias antes da primeira sexta-feira de protesto na Argélia.
Do seu lado, o aparelho de Estado é enfraquecido quando surgem as primeiras reuniões de contestação. O desmantelamento do Departemento da Inteligência e da Segurança (DIS) em 2016 e a destituição de certos dos seus quadros fizeram-lhe perder muitos relés na sociedade, e portanto enfraquecerem a capacidade de repressão « subterrânea » do Estado. Além disso, o poder tinha, em 2014, posto meios financeiros consideráveis e amplamente pago os seus relés. Mas desde então, a situação económica degradou-se inexoravelmente, entre outras coisas com a queda da cotação dos hidrocarbonetos. As reservas de câmbio passam de 194 bilhões de dólares em 2013 para 72 bilhões em Abril de 2019. Na mídia argelina Maghreb émergent, o jornalista Tarik Hafid escreveu, num artigo publicado em 23 de Fevereiro de 2019: « Em 2019, o poder não tem dinheiro e habitações para distribuir. Ele já não pode fazer mais promessas. Não há mais grandes projetos para inaugurar. De fato, teve a relança da refinaria de Sidi Rezine [em Meftah, a 26 km de Argel], mas esse desperdício de dinheiro é um outro escândalo e por no CV da Sonatrach [sociedade nacional que obra no setor do petróleo na Argélia]. Teve também o lançamento do complexo integrado de transformação do fosfato de Bir El-Ater, um projeto "fictivo" de 6 bilhões de dólares. Tem também esta grande mesquita [de Argel] que custou o equivalente de vários hospitais modernos. Na realidade, só tem agora este punhado de predadores que esconde-se atrás do capricho de uma velho homem doente que, diz-se, quer morrer presidente. »
Caraterística original do movimento de protesto: o lugar dos cantos vindos do mundo do football nas manifestações. De fato, as bancadas dos estádios de football desenvolveram, na Argélia, desde uns quinze anos, uma cultura musical em si. Emigração clandestina, corrupção, desemprego, ditadura: os temas abordados por esta contra-cultura insubordinada ao poder encontraram naturalmente o seu lugar nos protestos, entre Fevereiro e Abril. « Desde 1962, os estádios são a caixa de ressonância das revindicações sociais de toda uma juventude masculine, explicou o politista franco-argelino Youcef Fatès, mencionado em Le Monde diplomatique de Maio de 2019. Historicamente, os clubes de football sempre foram um espaço de contestação do poder. Revestem uma dimensão sociopolítica de resistência e de luta anticolonial [e foi amplamente o caso com o surgimento do clube MCA, a equipa a mais popular do país, num contexto de ressurgimento do anticolonialismo nas décadas de 1920 e 1930]. » Um exemplo emblemático: um dos hinos da contestação (ouvido lodo em 22 de Fevereiro), La casa del Mouradia, vem das bancadas de fãs da USMA, um dos mais importantes clubes de football do país.
O monarca caiu, e depois?
A eleição presidencial era inicialmente prevista em 4 de Julho de 2019, ou seja, um prazo muito curto após a queda do rais. Desde então, ela foi adiada e organizada em 12 de Dezembro passado, havemos de voltar nesta sequência. Na altura da saída de Bouteflika, a oposição política estava numa situação de grande fragilidade e divisão, e portanto de impreparação. Além disso, a escolha de passar primeiro por uma nova eleição presidencial, sem propor uma refundação profunda do regime, questiona. É porque o general Ahmed Gaid Salah, ainda na direção do exército, recusa que a transição faz-se fora do quadro constitucional. Em 30 de Abril, em margem de um dos seus deslocamentos em Constantina, ele rejeitou claramente as revindicações dos manifestantes, que exigem maiores mudanças, e ele reafirmou « o empenhamento profundo do comando do exército […] à Constituição », sob o pretexto que « qualquer mudança ou alteração das suas disposições não releva das prerogativas » do exército, mas sim, « do presidente que será eleito » (se ele o desejo); para ele, uma presidencial é a « solução ideal para sair da crise ».
O processo de transição da Tunísia vizinha, conduzido laboriosamente (mas com sucesso) entre 2011 e 2014 – e que abriu-se com a eleição de uma assembleia constituinte, antes a aprobação de uma nova Constituição, e a organização de eleições gerais –, parece não ter inspirado o poder argelino; porém, não deixa de ser o caso o mais sucedido de transição democrática observado nos países árabes desde as revoluções de 2011. A escolha de manter o quadro existente indica que o chefe do comando nega ainda a dimensão revolucionária do movimento nascido em 22 de Fevereiro de 2019, para fingir que considera a demissão de Bouteflika como um simples vazio técnico do poder.
Desde o 9 de Abril, Abdelkader Bensalah, em qualidade de presidente da Câmara alta do Parlamento, assume o interino da presidência da República. Porém, a contestação continue após a queda de Bouteflika. Pois a rua não deixa de reclamar a partida dos « três B », prelúdio indispensável, do ponto de vista dos manifestantes, para uma mudança real de sistema: Abdelkader Bensalah, chefe do Estado por interino; Tayeb Belaiz, presidente do Conselho constitucional argelino, encarregado de supervisionar a futura eleição presidencial (em particular validar as candidaturas e garantir a regularidade das modalidades de voto); e Noureddine Bedoui, Premeiro ministro desde o mês de Março (e já ministro do Interior entre 2015 e 2019). As sextas 5, 12, 19, 26 de Abril… os manifestantes não desmobilizam-se, e ainda têm uns avanços. Sob a pressão, em 16 de Abril, Tayeb Belaiz demite-se da direção do Conselho constitucional; é substituido por um magistrado, Kamel Feniche. Contudo, é o único dos « três B » a ter deixado as suas funções antes da eleição presidencial do 12 de Dezembro passado.
Sobretudo, uma onda de investigações judiciais é agora aberta sobre casos de corrupção ou de abusos de poder, com alvo personalidades ligadas ao regime – o general Salah assegurou que o exército garante que essas investigações serão preservadas de qualquer pressão... Vários poderosos e riquíssimos homens de négócio, próximos do que os chama-se geralmente o « bando » (içaba) dos Bouteflika (Abdelaziz e Said) – já foram detidos provisoriamente. É o caso de Ali Haddad em 3 de Abril, cinco dias após a sua demissão do Fórum dos chefes de empresa; esta figura dos negócios argelinos, proprietário e presidente (impopular) do clube de football USMA, foi entre outros ligado a um ampla escândalo de corrupção ligado à construção da auto-estrada Este-Oeste. Em 22 de Abril, é Issad Rebrab, PDG (entre outras coisas) do grupo privado Cevital (que emprega 12 000 pessoas no eletrónico, na siderurgia, no eletrodoméstico e na construção) e considerado como a primeira riqueza do país, que foi detido para « falsa declaração sobre o movimento de capitais ». Na véspera, em 21 de Abril, são irmãos bilionários (líder de um império que age em diversos setores, como a agro-indústria, o engenharia petrolífera), os Kouminef, que são detidos, os quatro sendo ouvidos no âmbito de uma informação judiciária para « não respeito dos compromissos conteudos em contratos concluidos com o Estado, tráfico de influência para obter vantagens indevidas e desvios fundiários » em particular. Em 4 de Maio, Said Bouteflika, tal como os generais Tufik e o seu sucessor na liderança dos serviços de inteligência, Athmane Tartag, são detidos, sujeitos a um regime de depósito pelo tribunal militar de Blida para « atentaria à autoridade do exército » e « conspiração contra a autoridade do Estado »; eles são julgados diante desta juridição, em conformidade do Código de justiça militar. Umas dezenas de pessoas, pilares políticos do sistema Bouteflika, desfilam durante as semanas a seguir, convocadas no âmbito de grandes processos anti-corrupção, como os antigos chefes de governo Abdelmalek Sellal e Ahmed Ouyahia, ou ainda o antigo secretário geral da FLN Djamel Ould Abbes, em prisão para casos de corrupção ligados à sua carga de ministro.
Com a detenção desses homens antes todo-poderosos, o poder procura acalmar a rua, mas sem iniciar uma refundação real do sistema. Num artigo chamado « Detenções que não enganam ninguém », publicado em 6 de Maio em El Watan, o jornalista Omar Kharoum explicava muito bem: « Essas medidas inesperadas, colocar na prisão pessoas que foram tanto posto na luz popular nos últimos tempos, talvez remam no sentido dos desiderata da vox populi. [...] Esses fatos de polícia [são] mantidos mediaticamente como operações "mãos limpas" [...]. Mas [...] os decisores parecem confortar-se no individualismo e na solidéao do seu roteiro e néao parecem tomar a coragem de tentar soluções radicais para permitir o surgimento de um novo pessoal com o advento de instituições viáveis, tal como desejado, em voz alta, por milhões de cidadãos. » E o jornalista acrescenta que « a detenção de muitas pessoas desacreditadas para o seu exercício da responsabilidade ou do mau uso do dinheiro público [...] néao deixa de ser pouco, em relação ao desejo exibido, ou seja, a vontade de reinstalar em trilhos bons o sistema político e económico nacional ».
Em breve, esta ofensiva judiciária teria por duplo objetivo de acalmar a contestação, oferecendo-lhe umas « cabeças », e de servir de pretexto a uma purga no âmbito das lutas de clãs internas ao poder. Além disso, a lustração não afeta só próximos do clã Bouteflika. Em 9 de Abril, é Louisa Hanoune, secretária geral do Partido dos Trabalhadores, que é colocada em detenção provisória – a sua libertação será pedida por vários partidos uma semana mais tarde, em vão. Em 25 de Setembro, no terceiro dia de um processo-relâmpago (onde ela foi julgada com Said Bouteflika, Mohamed Mediène e Athmane Tartag), esta oponente histórica à FLN (porém que foi bastante conciliadora com a presidência Bouteflika), é condenada a quinze anos de prisão pelo tribunal militar de Blida, para « conspiração com reuniões [com ambição de] atentar à autoridade do Estado e do exército ». Entretanto, Karim Tabbou, porta-voz da União Democrática e Social (UDS) e figura da constestação popular, é detido em 11 de Setembro, e apresentado o dia a seguir diante do procurador de Kolea, localizado a Leste de Argel. Acusado – como Lakhdar Bouregaâ – de « tentativa de desmoralização do exército », esse tribuno debatedor pugnaz (que exprime-se nas duas línguas do país, o árabe e o tamazigue), e figura crescente da oposição desde o início da revolução do 22 de Fevereiro, pode apanhar até dez anos de prisão. Outra voz da contestação, o advogado Salah Dabouz, defendedor dos direitos dos Mozabites (Berberes com rito ibadito, minoritários na Argélia), foi, ele, agredido com faca por um homem escondido com capuz em Ghardaia, uma localidade a 600 km ao Sul de Argel.
Obviamente, o regime foi profundamente abalado pelo movimento revolucionário e os seus ecos; contudo, a implementação de um regime realmente democrático, uma IInda República argelina transparente, marcada pela justiça e que aceita o princípio de alternância, não é óbvio. De fato, é difícil, para os caciques da FLN, deixar o poder, enquanto eles consideram que o seu movimento (a FLN) tem a legitimidade (claro, incontestável, segundo eles) na luta pela independência dos anos 1954-1962 – que tanto jovens argelinos não têm conhecido. Como se o país tivesse uma dívida à FLN, ou como se a luta conduzida pela FLN, finalmente, é que tinha tornado a Argélia uma nação. « [Ele] não limita-se a ser um super-cidadão exonerado de impostos, ele autoriza-se a raspar o fundo do Tesouro Público quantas vezes que ele quer. Na Argélia, chama-se esse privilégio a "legitimidade histórica". » Assim é que Yasmina Khadra descreve a figura arquetípica dos « decisores da sombra », caciques do regime, no seu livro Que Esperam os Macacos publicado em 2014; o romancista argelino retrata o « comité restrito de usurpadores "históricos" [que] puxa os cordelinhos por trás das instituições e os governos sucessivos, fazendo assumir a culpa aos decisores "visíveis", aos militares e, quando as coisas descambam, à mão do estrangeiro ». Como em muitos países que conhecerem um regime de partido único, existe uma confusão entre a « nação » e o partido da inependência, uma visão que esclerosa os debates sobre o tipo de regime a construir, pois é considerado que qualquer crítica contra a FLN (ou oligarcas mais ou menos ligados ao partido) seria de fato um ataque contra o próprio povo argelino. É talvez o grande mérito desta « revolução do sorriso »: ter questionado este olhar troncado, destacando a dimensão antinómica que existe entre a apropriação das riquezas por um clã e os interesses do povo.
Podemos notar, para acabar esta primeira parte, que o movimento, forte da sua dimenséao popular (que ninguém lhe contesta), apresenta, porém, verdadeiras fraquezas, e uma delas é a sua ausência de direção. Ao contrário da revolução no Sudão, que conduziu à queda de Omar el-Bechir em 11 de Abril de 2019, e onde a Aliança para a Mudança e a Liberdade (plataforma dominada pela Associação dos profissionais sudaneses) soube afirmar-se como líder na contestação, na Argélia, não há equivalente. problema, nenhum movimento popular pode instalar-se duradouramente sem direção. A mobilização argelina pode encontrar-se limitada pela pluralidade e a horizontalidade das suas instâncias de organização, onde cooperam atores muitos diversos: estudantes, grupos de oposição liberal e de esquerda, coletivos de trabalhadores,, representantes de profissões liberais, etc. Nenhuma instância tem a capacidade de revindicar a liderança. Porém, para impor queixas no quandro de uma negociação, de um correlação de forças com o poder, é preciso pelo menos uma interface identificada por todos, e se for possível incontestável. O futuro dirá se a revolução argelina tem conseguido ultrapassar os limites inerentes à sua horizontalidade. Por enquanto, a eleição presidencial organizada no mês passado parece indicar que não – havemos de voltar nesta última sequência na segunda parte deste artigo.
Para aceder à segunda parte deste artigo: O « Hirak » argelino (2/2): será que a Argélia está a acabar com vinte anos de « sistema » Bouteflika?