Estamos em democracia? (1/3) A mascarada do sistema representativo
Já faz vários anos que nos questionamos, na Europa e além, sobre o estado da democracia e dos nossos sistemas políticos. Os muitos casos de corrupção expostos, a subida da extrema-direita, e acima de tudo a ascenção da abstenção e a imagem negativa da classe política, são certos dos elementos que fazem dizer a uns e outros que nosso sistema está em crise e deve ser renovado. Poucos, porém, são aqueles que questionam o próprio conceito de « democracia » e a maneira relevante de alcançá-lo. O termo é usado constantemente, pelo mundo, para designar vários sistemas representativos e práticas muito diferentes. Uns elementos de reflexão sobre o assunto.
Muitas vezes, politólogo constatam depois de umas eleições que « os grandes perdedores, foram os que não foram votar ». A subida constante da extrema-direita na Europa e em certos países do continente americano faz dizer que a democracia europeia está « em crise ». Por cerca de dois séculos, o sistema representativo emergiu como o modelo político que permite a implementação da democracia ao nível das nações, e agora parece óbvio para a maioria dos cidadãos que nenhuma alternativa credível pode substitui-lo. O historiador e sociólogo francês Rosanvallon até fala, no seu livro O povo não encontrado, história da representação democrática na França (1998), de « horizonte óbvio do bem político ». De muitas maneiras, o que chamamos « democracia » parece inacabado, inclusivo na Europa e nos Estados-Unidos. Isso é evidenciado pelo desinteresse dos cidadãos, que muitas vezes abstêm-se ou nem se inscrevem nas listas eleitorais, pela crescente distância entre representados e representantes, que confiscam o poder, ou também pela perda de credibilidade das elites e dos partidos tradicionais, dai um voto crescente em vafor dos extremos. Em geral, o sentimento que domina nossa sociedade onde o povo tem teoricamente o poder, é a decepção.
Para entender essa decepção, esse mal-estar democrático, precisamos procurar as causas desde o início da teoria do sistema representativo: logo então, manifestou-se uma tensão entre a teoria da democracia e sua implementação. A expressão « democracia representativa », aparecida pela primeira vez com Hamilton em 1777, já evoca uma noção diferente do sistema de democracia direta. No início, não se refere à democracia como a imaginamos muitas vezes, mas à um regime sistema político intermediário associando poder popular e valores aristocráticos (ainda falamos hoje e com razão de « barões locais », de « feudos eleitorais », etc.), bem como a uma divisão do poder que faz política uma esfera especializada gerida por peritos (com uma classe política encarregada da direção do país). Podemos recordar-nos dessa definição muito correta da palavra « elite » dada pelo economista francês Georges Elgozy, no seu Contradicionário, ou o Espírito das palavras (1967): « substituto da aristocracia no regime democrático ».
A confusão procurada entre « democracia » e « representação do povo »
Podemos então começar removendo essa ambiguidade voluntariamente mantida por quase dois séculos: não, não somos em democracia. O povo não tem poder em si entre duas eleições. Existe às vezes o referendo como modo de consultação possível do povo entre duas eleições. Em Portugal, a última vez que foi usado era em Fevereiro de 2011, quando 59,25% dos votantes (43,61% de participação) validaram a legalização do direito ao aborto. Muitas vezes, só o poder eleito é que tem o poder de iniciativa sobre a prática do referendo e decide então do assunto da consultação e da formulação da questão. Além disso, os resultados são às vezes ignorados. O exemplo do tratado de Lisboa sendo um dos exemplos os mais ilustrativos: um texto (o Tratado constitucional) recusado por 54,67% dos votantes franceses e 61,54% dos votantes neerlandeses em 2005 foi aprovado dois anos mais tarde pela via parlamentar, sob uma forma mascarada. O referendo assuma então o seu papel: o de criar a ilusão de uma democracia. No entanto, se aceitamos que em questões importantes, o povo não deve ser chamado a pronunciar-se diretamente e simplesmente, pois o desejo da maioria não seria apreciado pelos dirigentes, então, de fato, admitimos que não estamos em democracia.
Um verdadeiro sistema democrático já existiu na Europa. Podemos considerar que foi o caso em Atenas, na Grécia antiga (pelo menos para cidadãos de sexo masculino, uma vez que mulheres, estrangeiros ou escravos eram escluidos dos direitos ligados à cidadania).Até o século V antes de J.-C., a esfera política continuava sendo o monopólio dos nobres, e o empobrecimento dos camponeses não parava de aumentar, questionando a calma e a unidade da cidade e provocando reivindicações dos comerçantes e artesãos que desejavam participar dos processos decisionais. A reforma do sistema espalhou-se por mais de 100 anos, com quatro construtores: Dracon (século VII antes de J.-C.), Solon (640-558 antes de J.-C.), Pisistrado (600-527) e Clisthenes (570-508). O princípio desse novo regime baseia-se na participação do povo na tomada de decisão. A cidade organizava cerca de trinta vezes por ano assembleias abertas e contando até 6 000 cidadãos. Estava-se debatendo coletivamento para ratificar as leis, votar o orçamento, decidir sobre paz e guerra. No hemiciclo, qualquer cidadão ateniense tinha a palavra. Foi concedido um subsídio diário aos mais pobres para compensar os dias de trabalho perdidos. Todos tinham que poder participar com a mesma importância, independentemente do seu nível social. A política tornou-se assunto de todos os cidadãos, e os Atenienses estavam construindo uma consciência política e um forte ativismo cívico.
Não somos, à luz da teoria política, em uma democracia, pois a democracia constitui um regime no qual, cada um por sua vez, os governantes são governados, e os governados governantes, e onde todos os cidadãos participam da vida política. O sistema representativo está longe disso: ele realmente estabelece uma casta social em si, encarregada de assuntos políticos. Lembremos que nosso chamado sistema representativo foi inventado no final do século XVIII nos Estados-Unidos e na França para constituir uma alternativa à democracia como também à monarquia. É um regime que possui apenas certos aspetos « democráticos », mas que não corresponde realmente ao ideal democrático inicial.
Até o século XVIII, as opções políticas eram as seguintes: ou um sistema abertamente aristocrático, como a monarquia de direito divino, ou a democracia, ou seja o povo que decide na sua totalidade, como em Atenas na Antiguidade ou nas cidades italianas do Renascimento. Os inícios da Revolução francesa ainda são caracterizados por essa concepção. O abade Sieyès (1748-1836), por sua contribuição, vai participar ativamente à evolução da interpretação dos conceitos no contexto revolucionário. Homem de Igreja, ensaísta e deputado do Terço Estado nos Estados gerais reunidos em 1789, ele próprio opôs o conceito de « governo representativo » ao de « governo democrático », que ele claramente rejeitava. No seu discurso do 7 de Setembro de 1789, ele explicou que « os cidadãos que designam representantes renunciam e devem renunciar a fazer eles mesmos a lei; eles não têm vontade particular a impor. Se eles ditassem as vontades, a França não seria mais esse Estado representativo; seria um Estado representativo. O povo, eu o repito, num país que não é na democracia (e a França não pode ser), o povo só pode falar, só pode agir através os seus representantes. » Enquanto Jean-Jacques Rousseau criticava o sistema representativo britânico e pronunciava-se para uma democracia direta, Sieyès optou por defender o sistema representativo. Em um, o povo decide sobre as leis que lhes são aplicadas e os delegados que ele elege são submetidos a mandatos imperativos. Num outro (o nosso), o povo elege representantes com um mandato representativo que não são só porta-vozes, mas que decidem das leis que se aplicam. O povo não é associado à tomada do poder; ele é sujeito à oferta política. O que, em países como os nossos que contam milhões de habitantes, só pode levar a uma « elitização » da vida política. Elitização acentuada pelo desenvolvimento de estabelecimentos de ensino superior (« grandes escolas » em França), universidades e institutos privados ou semi-privados (como, em França, Sciences Po ou a Escola Nacional de Administração), e pela professionalização da vida política que contraria o princípio democrático, reconhecendo a todos cidadãos a mesma aptidão para ter juízo na área política.
Rousseau estimava portanto que a representação é essencialmente oligárquica e cria uma separação entre os que governam e o resto da população. No Contrato social ou Princípios do direito político (1762), ele escreveu com razão: « A soberania não pode ser representada, pela mesma razão que pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não representa-se: ela é a mesma, ou é outra; não há meio. Os deputados do povo portanto não são nem podem ser os seus representantes, são apenas seus comissários; eles não podem concluir nada definitivamente. Qualquer lei que o próprio povo não ratificou é nula; não é uma lei. O povo inglês pensa ser livre, está enganado; é apenas durante a eleição dos membros do parlamento: assim que são eleitos, ele é escravo, não é nada. Nos breves momentos da sua liberdade, o uso que ele faz dela merece que ele a perca. »
Hoje, aceitamos como evidência o modelo de representação em vigor. No entanto, é sua própria substância que questiona: os representantes não são os delegados de um grupo ou de uma opinião mas os representantes da vontade geral – vontade esquiva na verdade! No processo representativo, realidade e ficção coexistem, uma vez que o povo como sociedade com toda sua complexidade real contradiz a unidade abstrata do povo-nação. O problema da representação vem então do trabalho de encarnação que deve realizar o processo eleitoral. Contudo, a luta pelo sufrágio universal (masculino), até 1848 e depois até o Segundo Império, monopolizou a maior parte da luta política pelo progresso democrático, orientado nos eleitores, não sobre os eleitos supostos os representar.
É diante dessas contradições entre teoria e realidade que outros caminhos foram evocados durante os debates sobre o sistema representativo no século XIX. Com a Revolução industrial e a emergência da classe operária, a noção de « povo », supostamente universal por incluir tanto os operários ( e mais emplamente os obreiros) como os burgueses, estava em declínio. Já em 1832 vem o debate sobre a representação política dos proletários, a sociedade sendo dividida em duas classes, a burguesia e o proletariado, segundo os São-simonistas (Saint-simoniens, em francês). É somente a partir dos anos 1860 que a ideia de representação social ganha um real eco, enquanto o regime bonapartista relaxava o seu controle sobre a oposição. Liberais e republicanos, que unem-se nas eleições de 1863, procuram um modo de designação dos candidatos. A ideia de um comitê eleitoral representativo da opinião impõe-se, mas nenhum operário sendo escolhido, os primeiros operários apresentam-se. As candidaturas são marginalizadas, mas essa situação provocou uma ruptura entre republicanos (que ainda haviam no entanto introduzido a questão operária em 1848) e proletariado, e o fim do universalismo revolucionário.
É nesse contexto que o Manifesto dos sessenta (Manifeste des soixante em francês) é redigido (assinado por sessenta operários) fazendo advocacia para a representação operária. Esse Manifesto, um dos textos fundadores do movimento operário francês, sugere antes de tudo que após a conquista do sufrágio universal, os operários (e os obreiros em geral, por extensão) devem emancipar-se socialmente para assegurar sua emancipação política, pois a sua representação é nem garantida nem efetiva. Com o fracasso dessas candidaturas operárias, essa questão da representação do proletariado traduz-se concretamente com a emergência dos congressos operários, nos quais então os trabalhadores são diretamente representados, até o século XX. Já não se insiste sobre a distinção entre pessoas mais capazes do que outros, mas sobre a encarnação da parte a mais lambda do povo, o movimento operário nascendo de um culto da modéstia individual. Em 1852, na eleição presidencial francesa (que nunca aconteceu por causa do golpe de Louis-Napoléon Bonaparte em Dezembro de 1851), a ideia de votar para um operário desconhecido surge. Ou seja, votar não no que diz respeito às capacidades de um candidato, mas para o que ele significa por sua condição social.
Os sessenta queriam, com o Manifesto, pôr fim ao monopólio da competência dos notáveis republicanos. Por isso, eles sublinharam os progressos da instrução nos meios operários e insistirem na dimensão social do universo político. Eles criticavam os burgueses por não conhecer os operários, e então por não ser competentes na questão do trabalho, legitimando uma representação separada. Acha-se então no Manifesto tanto uma crítica da visão tradicional elitista da representação, e o questionamento da ideia de competência política. De forma mais ampla, esse debate sobre a representação operária revelou a complexidade da questão da representação. Deve a eleição produzir as identidades ou legitimar um poder? É uma oposição também entre abordagem sociológico e filosófico.
Ao mesmo tempo, a ideia de estabelecer um parlamento representando bem a sociedade tem sucesso no século XIX. Mas em sociedades de indivíduos, a unidade de representação não é fácil de identificar. Categorias devem ser distinguíveis por todos. Enquanto a partir dos anos 1880, o sufrágio universal (masculino) torna-se comum em França (só depois das Guerras mundias em quase todo o resto da Europa, fora de raros países: Suíça, Reino-Unido, países escandinávios, Bélgica...), ao contrário de muitos países europeus ou americanos (Portugal, Espanha, Alemanha, Brasil, etc.) onde monarquia constitucional rima com sufrágio censitário, enquanto isso então, uma nova reflexão abra-se para melhorar a democracia representativa: como dar corpo a uma sociedade cuja diversidade é tão óbvia? Durkheim, pai da sociologia francesa, constatou que o homem não tem nada a ver com essa entidade abstrata definida no âmbito de princípios revolucionários. Não estamos mais, como foi o caso no Manifesto dos sessenta, numa reivindicação de integração de uma parte da população, mas na ideia de que o progresso da representação dos interesses é inseparável do desenvolvimento das ciências sociais.
Em Bélgica onde o processo de revisão constitucional que acontece de 1890 a 1893 estimula as imaginações, os socialistas querem dar toda sua dimensão sociológica à representação, enquanto à direita, os liberais defendem a ideia que o sufrágio universal implica de controlar o povo, e por isso propõem que a representação dos interesses substitua a dos indivíduos. Um consenso sobre um sistema de representação professional é definido em 1892-1893: é um sistema de voto plural, reforma a final bastante modesta, mas que inicia o debate sobre uma possível transformação do sufrágio em outras partes da Europa. Em França sobretudo, a ideia de uma assembleia com composição professional progride (projeto de lei do abade Lemire em 1894), e até a ideia de uma terceira assembleia encarregada de representar o trabalho surge de maneira precisa e formal. Veja-se assim a evolução considerável que conhece a cultura política desde os anos 1870. Entende-se bem que a dificuldade concentra-se na definição de categorias relevantes a representar. O próprio Proudhon limita-se a uma referência aos grupos naturais existentes; mas definir um grupo natural é muito complexo. Em 1848, Pierre Leroux propôs à Assembleia constituinte que o corpo legislativo fosse formado por cientistas, artistas e industriais eleitos pelo povo em listas organizadas por categoria. Mais tarde, os adeptos do São-simonismo no início do século XX inscrevem-se na mesma linha, definindo por princípio as profissões úteis para o funcionamento da sociedade. Mas essa abordagem toma mais em conta a racionalidade do governo do que a própria estrutura da sociedade.
No início do século XX, nenhuma solução faz unanimidade. Nos anos 1890, enquanto há um relativo consenso sobre os objetivos, cada autor propôs sua classificação particular. Charles Benoist tenta ultrapassar clivagens tomando aquela usada pela estatística geral para os recenseamentos da população. Mas as sete profissões escolhidas (agricultura, indústria, comércio, transporte, administração pública, profissões liberais, rentistas) constituem uma classificação mais relevante do que outras, enquanto notamos que ela deixa de lado as « profisséoes desconhecidas » e a população não classificada? As categorias estatísticas conservam um carácter muito convencional, daí as dificuldades para compreender a substância de uma sociedade real na sua diversidade.
No Congresso do Instituto internacional da Estatística de 1895, matemáticos propõem a organização do governo com base uma pesquisa representativa. Para responder ao problema da enumeração representativa necessária para representar uma miniatura de toda a sociedade, o cientista norueguês Kiaer desenvolve as primeiras formas de cotas. Mas ainda surgem problemas técnicos, como a dificuldade de penetrar uma realidade urbana em constante evolução. Também sabemos que em sociologia as categorias são construidas e não naturais; contudo, em política, são categorias naturais que são procuradas. Assim, a democracia social de Benoist e Proudhon, procurando enriquecer sociologicamente a democracia, a desubstancializa.
A necessidade de sempre procurar um sistema mais maduro em termos democráticos
A ideia aqui não é ser injusto com os aspetos positivos dos nossos sistemas políticos, em termos de direitos e de liberdades. Mas é essencial não satisfazer-se do uso (abusivo) da palavra « democracia », quando a realidade é diferente. Sem dúvida, muitos cidadãos são decepcionados e desconfiam da classe política, suspeita por muitas razões de não defender o interesse geral. De fato, é difícil acreditar que atrás de políticas como o rigor orçamental que expõe milhões de pessoas à precariedade, a privatização de centenas de empresas públicas nas últimas décadas em toda a Europa, ou mesmo a concurrência « livre e sem distorção » (inclusive nos setores econômicos em que sua aplicação causa desastres), difícil acreditar então que atrás disso tudo esconde-se a preocupação sincera de melhorar a vida das pessoas e de contribuir à felicidade de cada um. A lista das reflexões que nasceram e construiram-se desde o século XVIII não tem como objetivo de apresentar soluções alternativas prontas aos sistemas políticos atualmente em vigor no Ocidente, mas simplesmente de lembrar que os nossos sistemas não devem ser apropriados pelos cidadãos como evidências em si, mas sim considerados com os desafios políticos e económicos que implicavam a sua concepção.
No melhor dos casos, as poucas reivindicações que ouvimos aqui e ali hoje em dia tratam dos modos de eleição para pedir uma maior proporção de proporcional nas eleições – é o caso em particular em França, e mais raramente em Grã-Bretanha, pois em ambos o modo de eleição é por maioria e circonscripção com candidaturas individuais, não proporcional com listas (como é o caso em países como a Espanha ou o Portugal) –, ou sobre a organização de referendos com mais freqüência – os processos de democracia participativa (consultações de bairro, etc.) permanecendo muito marginais e constituindo vezes demais uma simples garantia « democrática » para os eleitos. Contudo, o conceito de democracia implica a noção de participação aos processos de tomada de decisão. Veremos nos próximos capítulos desta série que existe, nos nossos países que qualificamos geralmente de democracia representativa, uma forma de participação de maneira relativamente marginal, através o que o sociólogo francês Rosanvallon chama a « democracia de equilíbrio », e que outros sistemas alternativos existem e já são aplicados em outros lugares com mais ou menos sucesso.
Para acessar a segunda e terceira parte deste artigo: Estamos em democracia? (2/3) A feira dos corpos intermediários; Estamos em democracia? (3/3) A necessidade de mecanismos participativos vinculativos
Já assinalamos várias vezes o papel muitas vezes fuins do líder. O partido, em vertas regiões, é organizado como um gangue cujo a personagem a mais dura é que assuma a direção. Fala-se facilmente da ascendência do líder, da sua força, e não se hesita, num tom cúmplice e ligeiramente admirativo, e dizer que ele faz tremer os seus colaboradores. Para evitar esses muitos escolhos, é preciso lutar com determinação para que jamais o partido torna-se uma ferramenta dócil entre as mãos de um líder. Líder, leader, do verbo inglês que significa conduzir. O condutor do povo, isso já não existe. Os povos não são nenhum gado e não precisam ser conduzidos. Se o líder me conduz, quero que ele saibe que ao mesmo tempo eu o conduz. A nação não deve ser um negócio gerenciado por um chefão. Portanto entende-se este panico que agarra as áreas dirigentes cada vez que um desses líderes torna-se doente. É a questão que os obceca, a da sucessão. O que irá acontecer se o líder desaparece ? As áreas dirigentes que abdicaram diante do líder, irresponsáveis, inconscientes, preocupadas essencialmente da sua boa vida, dos cocktails organizados, das viagens pagas e da rentabilidade dos truques, descobrem de vez em quando o vazio espiritual no coração da nação.
Um país que quer realmente responder às perguntas que lhe são feitas pela história, que quer desenvolver as suas cidades e o cérebro dos seus habitantes deve possuir um partido de verdade. O partido não é uma ferramenta nas mãos do governo. Bem pelo contrário, o partido é uma ferramenta entre as mãos do povo. É ele que para a política que o governo aplica. O partido não é, nunca deve ser o único ganibete político onde encontram-se, bem à vontade, todos os membros do governo e os grandes dignitários do regime. O gabinete político, muitas vezes infelizmente, constitui todo o partido e os seus membros ficam em permanência na capital. Num país subdesenvolvido, os membros dirigentes do partido devem fugir a capital como a peste, Devem residir, excepto uns raros, nas regiões rurais. Deve-se evitar centralizar tudo na grande cidade. Nenhuma desculpa com dimensão administrativa, nada pode justificar esta efervescência de uma capital já sobrepovoada e sobredesenvolvida, em relação aos nove décimos do território. O partido deve ser descentralizado ao extremo. É a única maneira de ativar as regiões mortes, as regiões que ainda não acordaram-se à vida.
[...]
Para chegar a essa concepção do partido, é necessário, primeiro, livrar-se da idéia muito ocidental, muito burguesa, tão desdenhosa, que as massas não conseguem dirigir-se. A experiência prova, de fato, que as massas compreendem perfeitamente os problemas mais complicados. [...] Um homem isolado pode mostrar-se rebelde ao entendimento de um problema mas o grupo, a aldeia entende com uma rapidez desconcertante. De fato se alguém toma a precaução de usar uma linguagem compreensível apenas pelos graduados em direito ou economia, será facilmente feita a prova de que as massas devem ser dirigidas. Mas se falamos linguagem concreta, se não somos obcecados pelo desejo perverso de embaralhar as cartas, livrar-se das pessoas, então percebemos que as massas compreendem todas as nuances, todos os truques. O uso de uma linguagem técnica significa que somos decididos a considerar as massas como profanos. Essa linguagem dificilmente oculta o desejo dos palestrantes de enganar as pessoas, de deixá-las de fora. A empresa de escurecimento da linguagem é uma máscara atrás da qual encontra-se delineada uma mais ampla empresa de èdespojamento. Quer-se ao mesmo tempo tirar ao povo e os seus bens, e a sua soberania. Pode-se explicar tudo ao povo, mas é preciso querer realmente que ele entende. E, se achamos que não se preciso dele, que, pelo contrário, ele pode incomodar a boa marcha das muitas sociedades privadas e com responsabilidade limitada, cujo objetivo é tornar o povo ainda mais miserável, então a questão é resolvida.
Se acha-se que pode-se perfeitamente dirigir um país sem envolver o povo, se pensa-se que o povo, pela sua única presença, perturba o jogo, ou porque o atrasa, ou porque, pela sua natural inconsciência, ele o sabota, então nenhuma hesitação é permitida: é necessário afastar o povo. Porém constata-se que, quando convida-se o povo à direção do país, ele não atrasa, mas pelo contrário acelera o movimento.
[…]
Mais o povo entende, mais ele torna-se consciente que, a final, tudo depende de ele próprio e que a sua salvação encontra-se na sua coesão, no seu conhecimento dos seus interesses e da identificação dos seus inimigos. O povo entende que a riqueza não é o fruto do trabalho mas o resultado de um roubo organizado e protegido. Os ricos param de ser homens respeitáveis, tornam-se apenas bestas rapinantes, chacais e corvos que chafurdam-se no sangue do povo.