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O acendedor de lampiões

Estamos em democracia? (3/3) A necessidade de mecanismos participativos vinculativos

2 Octobre 2023 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Democracia

Propaganda no metro em Paris (França), chamando os habitantes a votar para o orçamento participativo (em Setembro de 2018).

Propaganda no metro em Paris (França), chamando os habitantes a votar para o orçamento participativo (em Setembro de 2018).

A ideia de orçamento participativo teve origem em Pelotas, no Rio Grande do Sul, em 1983, com um programa mais ou menos equivalente. Surgiu finalmente em Porto Alegre, capital do mesmo Estado, na gestão do Partido dos Trabalhadores (PT), em 1989, como resultado da pressão de movimentos populares por participar das decisões governamentais. Desde então, este modelo de gestão ganhou reconhecimento da população como também ao nível internacional. Esse processo, apesar de encontrar uma visibilidade mediática e um sucesso bem inferiores aos das eleições de representantes, deve reter a nossa atenção, nesses tempos de contestação do sistema representativo. Em França, o movimento dos Coletos amarelos particularmente, iniciou-se em Novembro de 2018 (em reação à subida da fiscalidade sobre os combustíveis) e exprimiu claramente uma crise de representatividade. Duas reivindicações o atestam: a abolição dos privilégios reservados aos eleitos, e o Referendo de iniciativa cidadã. A ocasião de aprofondir a reflexão sobre os desafios e as muitas oportunidades ofertas pela participação – um princípio democrático que coloca os cidadãos como atores do sistema, e que convence cada vez mais pelo mundo, qualquer seja a sua forma.

Tal como o movimento dos Indignados ou de « Geração 500 euros » em Portugala partir de 2011, ou mais ainda o movimento social massivo que afetou o Brasil em 2013 (aos custos da então presidente Dilma Roussef), o movimento dos Coletos amarelos em França vinha de um profundo sentimento coletivo de exasperação social, de injustiça fiscal e de morosidade democrática. O sistema já não permitia mais à classe politique dirigente de responder às necessidades das pessoas. Os eleitos seriam deconectados, segundo os manifestantes, das realidades diárias de uma maioria da população – uma situação acentuada pela origem social e as vantagens ligadas às funções eleitivas, com uma representação sempre catastrófica dos operários, dos empregados e em geral dos trabalhadores pobres nas assembleias nacionais, ao benefício das categorias como os quadros superiores, os funcionários, ou ainda as profissões liberais. O simples custo das vantagens financeiras e em bens e serviços (carros de função, apartamento de função, passagens ferroviárias ou aérias de graça, etc.) dos políticos e ex-minitros, presidentes ou chefes de governo basta a descredibilizar a classe política, e não é por acaso se em França, durante a crise dos Coletos amarelos em 2018-2019, informações sublinhando as vantagens choquantes dos antigos chefes do Estado circularam amplamente nas redes sociais virtuais, alimentando a polémica: apartamento de função, secretários particulares, carro com motorista, policiais mobilizados, etc. Valérie Giscard d’Estaing, presidente da República entre 1974 e 1981, custava então, sozinho, 2,5 milhões de euros cada ano, Jacques Chirac, chefe do Estado entre 1995 e 2007, 1,5 milhão, e Nicolas Sarkozy 2,2 milhões. Quando sabemos que já aconteceu esse último faturar suas participações a conferências no estrangeiro a 250 000 euros, essa situação pode deixar perplexo. Tais verbas permiteriam reabrir serviços públicos de proximidade ou testar ferramentas originais de luta contra a pobreza (pelo menos a um nível local) como por exemplo a renda universal (revenu universel em francês).

Esse sentimento de distância entre o modo de vida dos eleitos e o quotidiano de milhões dos nossos concidadãos inscreve-se num contexto geral de agravamento das desigualdades por mais de trinta anos, e de precarização crescente. O estílo de vida de uma boa parte da classe política não é novo, mas ela tem conseqüências infelizes para a democracia: classes dirigentes, política e económica, têm interesses comuns, relacionados ao estílo de vida caro e ao sentimento que elas têm na âmbito da globalização. Além disso, existe uma forte confusão com muitas mídias mainstream (em particular quando essas pertencem a grandes grupos), que podem, sob o disfarce de neutralidade e de objetividade jornalística, defender à vontade os partidos políticos partilhando a mesma base de valores. Valores necessários à preservação dos interesses financeiros: a dominação do mercado e a concorrência sacrossanta livre e sem distorções, a ideia de que o setor privado sempre seria mais eficiente do que setor público (e que o setor público deve sempre ser lucrativo, incluindo às custas do serviço prestado), e a teoria segundo a qual a redução de impostos para os ricos e as grandes empresas teria um impacto no longo prazo para toda a sociedade, graças aos investimentos realizados logicamente por esses últimos.

Sistema representativo versus sistema participativo?

Num primeiro capítulo: Estamos em democracia? (1/3) A mascarada do sistema representativo, já tínhamos tratado da oposição histórica, desde Iluminismo, ou século das Luzes (siècle des Lumières, em francês), entre sistema representativo e democracia direta, tal como ela existia inicialmente na Grécia antiga, em Atenas, ou mais tarde nas cidades italianas de Florença ou Veneza. A História é pontuada de experiências « participativas » que tiveram pouco eco, à final, sobre a reflexão política moderna. Sob pressão do abade Sieyès (1748-1836), que siblinhava a desordem que representaria um povo se governando sozinho, a Revolução francesa viu os partidários do sistema representativo ganhar esse debate. Em nome do governo, os processos políticos participativos (como o sorteio) foram descartadas ao benefício de uma representação cujo horizonte ia progressivamente a ser ampliado com o sufrágio universal. Desde então, há uma certa confusão terminologia em França e na Europa, pois o sistema representativo era suposto ser, inicialmente, uma alternativa ao sistema democrático, que permitia o surgimento de uma aristocracia eletiva – e não uma democracia na sua significação etimológica. A convicção a cerca desta escolha era a seguinte: importe que certas pessoas didicam-se totalmente à política e assumem a carga da direção do país, e a organização de eleições regulares seria suficiente para designar os melhores para assumir-la.

O sistema representativo, qualquer seja o país, apresenta lacunas, pois há inexoravelmente o risco de ver uma « classe » dirigente vivendo com um estílo de vida confortável, com seus privilégios, suas redes, muitas vezes desconectada das preocupações de muitos dos seus concidadões e exposta à influência de muitos grupos de pressão. A limitação do número de mandatos no tempo, ou ainda a redução ao mínimo dos subsídios dos eleitos (ou pelo contrário, para que sejam menos facilmente corruptíveis), podem constituir tentativas para melhorar o sistema. Mas é preciso observar que a consolidação de um certo número de corpos intermediários supostos levar a voz do povo aos dirigentes não deixa de ser necessário: as associações, os sindicatos, os partidos políticos, etc. (Estamos em democracia? (2/3) A feira dos corpos intermediários)

No entanto, vê-se também que muitos dos corpos intermediários perderem também, nos últimos anos, uma boa parte do seu capital de confiança. No que diz respeito aos partidos políticos, a desconfiança que os afecta explica por parte os resultados das últimas eleições gerais e europeias, em 2017 e 2019 em França com a queda do principal partido de esquerda (o Parti socialiste) e depois do principal partido de direita (Les Républicains), ao benefício de forças « novas » (En Marche) ou ditos de contestação (La France Insoumise, Front national); tal como os das últimas eleições gerais no Brasil, com a bafada eleitoral que conheceram os partidos tradicionais como o PMDB, o PSDB e o PT, ao benefício de um candidato (Jair Bolsonaro) que, apesar de estar na vida política há décadas (e membro de um partido, o PSL), aparecia « fora » da vida dos partidos. Frequentemente infiltrados por alguns que monopolizam o poder – às vezes até dão simplesmente o sentimento de servir de tranpolins para uma carreira política –, os corpos intermediários sofrem igualmente de uma crise de representatividade, e o sucesso do movimento dos Coletos amarelos, desde o final de 2018, explica-se também com essa novidade, ou seja, o fato que nenhum deles contribuirem para o seu sucesso. As redes sociais participam certamente dessa transformação, porque eles permitem a cidadões lambda de implementar ações fácis e baratas, de coordenar-se, de fazer ouvrir a sua voz sem organização estruturada.

Teoricamente, nossa sociedade está lidando com um sistema que o sociólogo Rosanvallon caracteriza de « economia geral da representação ». Esse sistema implementou-se, não de uma só vez, mas ao longo de um processo político que durou entre dois e três séculos em França e em muitos países na Europa. Os elementos de equilíbrio tornaram o modelo (republicano) nascido da Revolução complexo, o pluralizando, mas isso era necessário e participa modestamente a certos progressos da representação (porque o povo é complexo). No entanto, dado o que era originalmente a democracia (um sistema de representação direta dos habitantes, reunidos em assembleia, ao exercício do poder), podemos legitimamente argumentar que os termos « democracia participativa » soam como um pleonasmo. Etimologicamente, o termo « democracia » vem do grego dêmos, o povo, e kratos, o poder ou a autoridade. Mas será que podemos ter o poder sem participar?

Da destrução do Estado-nação à necessidade de fazer participar os habitantes para fazer viver a democracia

É fácil entender a necessidade histórica de favorecer o modo representativo aos custos da democracia direta. Historicamente, a Europa construiu-se desde mais de dois séculos a cerca da noção de Estado-nação (um modelo que ela soube impor ou exportar no mundo inteiro, quando não desenvolvia-se de forma independente). Se podemos imaginar que uma democracia envolvendo a participação de todos os habitantes ou quase, reunidos em assembleia, seja coisa possível à escala de uma cidade-Estado, de um bairro ou de uma aldeia, obviamente à escala de um Estado-nação, isso isso é mais complicado por razões técnicas ligadas à demografia. Simplesmente porque quando somos milhões, é mais difícil para todos ter im papel ativo. A escolha de um sistema representativo, desde a Revolução francesa, basava-se certamente também na ideia de um povo incapaz de se governar sozinho, de uma necessária elite política no poder. Mas observa-se que o surgimento dos Estados-nações depois e a rivalidade que desenvolveu-se entre eles (na Europa tal como na conquista de colônias além-mar) não ajudou a questionar essa orientação geral dos regimes liberais. O processo da eleição é tranquilizadora pois autoriza a exprimir opinões para designar uma classe dirigente suposta ter um olhar global sobre o estado da nação – e então capaz de defender os nossos interesses sem sermos nós mesmo fisicamente presentes para validar as decisões.

Se seguimos essa lógica, podemos concluir que os processos participativos os mais eficientes são observados a um nível local, o que permite que os cidadãos se reúnam. Aliás, historicamente, foi o postulado do municipalismo libertário, um movimento político nascido no século XIX na onda do comunismo e do anarquismo, e teorizado no século XX pelo Americano Murray Bookchin – em França por exemplo, uma das experiências que aproxima-se mais disso é provavelmente a Commune de Paris, em 1871. Hoje no entanto, até os mecanismos os mais vinculativos e os mais ricos de participação (como o orçamento participativo) não nos conduzem a um sistema de democracia direta, como a Atenas antiga ou as cidades italianas do Renascimento conhecerem, mas sim para um sistema misto. É o que algumas pessoas chamam de democracia participativa, ou seja um modelo no qual o povo continua delegando seu poder a representantes que propõem e aprovam as leis, mas conserva no entanto o poder de apropriar-se de tal ou tal questão. Nesta configuração, os modos de participação reais podem ser diversos e participam todos de uma implicação crescente dos cidadãos na vida da Cidade: a extensão do direito de voto e sua frequência, a iniciativa legislativa com petições, a concertação dinámica sob forma de debates livres relativos a decisões locais ou nacionais (comités consultativos, conselhos de bairro, etc.), ou ainda a implementação de um sistema organizado que garante que as ideias construtivas dos cidadãos sejam examinadas.

Aparecido no final dos anos 1960, o conceito político de democracia participativa desenvolveu-se no contexto de uma interrogação crescente sobre os limites da representação, sobre a professionalização da vida política e sobre a omnipresência dos « peritos ». Assim afirmou-se o imperativo de por a disposição dos cidadãos os ferramentas para debater, exprimir sua opinião, impactar as decições que os concernam e chamar a atenção dos atores políticos.

As formas diversas da participação, das mais inconsistentes às mais vinculativas

desde a década de 1970 e em todo o mundo, os « processos participativos » basearam-se em processos novadores tendo um impacto concreto sobre a ação pública. Em 1971, o sorteio foi reintroduzido em política simultaneamente na Alemanha e nos Estados-Unidos com a organização de júris cidadãos. Em 1989, a cidade de Porto Alegre, no Brasil, desenvolveu uma experiência exemplar de orçamento participativo, que inspirou depois muitos outros municípios. No final dos anos 1980, os países escandinavos implementaram as primeiras conferências de consenso...

Essa necessidade de revitalizar a democracia base-se num papel e um poder novos dados aos cidadãos, sobre a ideia de uma cidadania ativa e de um acesso suficiente à informação. A « democracia participativa » é uma forma de partilha e de exercício do poder, fundada na consolidação da participação dos cidadões à tomada de decisão política. Fala-se também de « democracia deliberativa » para valorizar os diferentes processos permitindo a participação de cidadãos a elaboração de decisões, durante a fase de deliberação. A democracia participativa ou deliberativa pode ter várias formas, mas é primeiramente instaurada no plano do planejamento do território e do urbanismo antes de estender-se na questão do meio-ambiente. As associações assumem en geral um papel importante, como interlocutores para as autoridades públicas. Em França, uma « Carta da participação do público », publicada em 2016, até lista as boas práticas nessa área.

Na prática, as formas de participação na França são diversas – tal como os seus impactos. Pode-se mencionar a consultação, que não supõe de ter em conta as opinões dadas. É por exemplo o caso de inquéritos públicos que precedem projetos públicos. Há também a concertação, que é igualmente muito limitada apesar do seu aspecto mais « político ». A concertação pública é enquadrada pela Carta da concertação, que impõe processos, convida a resforçar a transparência e a favorecer a participação, envolvendo os cidadãos nos debates. São por exemplo os conselhos de bairro, obrigatórios em França nas cidades de mais de 80 000 habitantes; certas initiativas, não vinculativas em termos de tomada de decisão, assimilam-se mais a ações de comunicação, um disfarce de democracia local, tal como os conselhos municipais de jovens que servem a comunicar para os alunos do segundo grau. Um dos limites da concertação e desse tipo de estruturas é que elas devem, para permanecer e ser eficientes, basear-se em atores que têm o tempo e as competências para estudar e reagir a projetos submetidos... o que não é tão simples.

Um terceiro mecanismo de participação, muito mais interessante por ser vinculativo, é o da co-elaboração, cuja experiência numa cidade como Paris é um bom exemplo. Essa forma de participação supõe um nível elevado de democracia participativa na medida em que é reservado uma parte do orçamento geral às decisões tomadas coletivamente. É portanto claramente vinculativo e impõe-se aos eleitos, além de ser transparente, pois os cidadãos (seja os que proporem os projeitos adoptados, seja delegados eleitos depois) são supostos assistir ao voto do orçamento pela câmara municipal e acompanhar a boa realização dos projetos.

Estamos em democracia? (3/3) A necessidade de mecanismos participativos vinculativos
Banca instalado pelo município de Paris, praça da Itália, no Suleste de Paris, entre o 7 e o 23 de Setembro de 2018, para permitir aos habitantes de participar ao voto do orçamento participativo de 2019.

Banca instalado pelo município de Paris, praça da Itália, no Suleste de Paris, entre o 7 e o 23 de Setembro de 2018, para permitir aos habitantes de participar ao voto do orçamento participativo de 2019.

Sempre na co-elaboração, podemos mencionar a « conferência de cidadãos », que tem como objetivo a participação dos cidadões ao debate público. Igualmente chamado « júri cidadão », ela desenvolveu-se em França, sobretudo nas áreas da saúde e do meio ambiente, depois de várias experiências na Alemanha e nos Estados-Unidos, e depois na Dinamarca, e tem como ambição de ser uma resposta a uma situação onde a decisão política é particularmente complexa e necessita um consenso da população. O primeiro que foi criado na França, em 1998, era sobre a temática das plantas transgênicas e foi organizado pelo Ofício parlamentar das escolhas científicas e tecnológicas (OPECST) com quinze cidadãos, e seguia a uma decisão polémica tomada em 1997 autorizando a cultura de certos milhos transgênicos. Posteriormente, poucas conferências de cidadãos foram organizadas ao nível nacional. O interesse sendo que, se os orgões de decisão não seguem as conclusões da conferência, eles devem fornecer as justificações para explicar por que não. O princípio, frequentemente usado nos países como a Dinamarca ou o Canadá, permite igualmente experimentar diferentes cenários e ver o qual deles ganha mais apoios dos cidadãos. No entanto, sabendo que os atores institucionais que os organizam são muitas vezes simplesmente consultativos, e dado o número reduzido de cidadãos participando, entende-se que o exercício democrático conhece certas limites.

No mesmo sentido, pode-se mencionar também a pesquiza deliberativa, que é a adaptação do modelo democrático dos Town Meetings da Nova-Ingleterra (onde o povo reuniu-se num mesmo lugar para discutir e tomar decisões sobre questões relativas à comunidade), mas à escala do Estado-nação. Esse método, elaborada e proposta pelos professores americanos James S. Fishkin e Bob Luskin, consiste em combinar a técnica da pesquiza com a deliberação – baseando-se no princípio segundo o qual a qualidade da deliberação diminui com a aumentação do número de participantes. A ideia é constituir um amostra nacional representativo do eleitorado, reuní-lo, fornecé-lo as informações objetivas e necessárias sobre o problema em debate, e depois organizar uma discussão (com fases mais ou menos intensivas, em presença física, em pequenos grupos, etc.) durante a qual cada um pode formular perguntas a um conjunto de peritos e de políticos. A participação das mídias e sobretudo da televisão na cobertura do evento deve dar à pesquiza deliberativa uma dimensão pública e uma certa transparência. Apesar de todas as falhas que podemos lhe achar, esse conceito foi usado muitas vezes: cinco vezes no Reino-Unido com o canal de televisão Channel 4, ou ainda nos Estados-Unidos, onde a metodologia serve regularmente a esclarecer os debates locais ou nacionais. Na Dinamarca, uma pesquiza deliberativa foi realizada em 2000 antes do referendo nacional sobre a adesão à moeda única europeia (o euro), retransmitido na televiséao nacional. Na Austrália, o governo usou esse ferramenta para esclarecer os debates pré-referendo sobre a reconciliação com os aborígenes em 2001. Vemos bem, nesses dois últimos casos, que o processo não foi pensado como um fim em si mesmo, auto-suficiente, mas sim como ferramenta complementar à discussão parlamentar ou ao referendo, usado para melhorar a qualidade do debate, a compreensão das questões e o envolvimento dos cidadãos lambda.

Esses mecanismos permitem introduzir realmente democracia no sistema?

Os mecanismos de concertação para a elaboração das polícas locais, mesmo quando não têm um carácter vinculativo, e apesar das suas limitas, apresentam um interesse: introduzir os cidadãos no debate, e dar para eles um canal de expressão em direção dos decidores. Em Kingersheim, na periferia de Mulhouse (no território de Haut-Rhin, em França), o presidente da câmara municipal Jo Spiegel instituou os conselhos participativos para as grandes decisões do município. Compostos por 40% de voluntários, por 20% de pessoas diretamente interessadas e por 40% de cidadãos sorteados, os seus membros recebem uma formação prévio (e uma ajuda à tomada de palavra, com professionais do debate público), e os seus eleitos são sobretudo presentes como animadores do debate, mais do que como decidores. Em 2016, umas quarenta pessoas de conselhos participativos tinham reunidos, em dez anos, quase 700 participantes sobre questões diferentes – cada conselho reunindo no máximi 50 pessoas. Esse exemplo mostra que a eficiência do processo depende sobretudo da sinceridade dos eleitos que o organizam. Se cidadãos são reunidos sem preparação ao debate e sem as informações necessárias ao tratamento de um caso, então naturalmente o processo só servirá a tirar lindas fotografias. Por outro lado, se a coletividade garante que os cidadãos envolvidos no processo estejam previamente preparados, as chances de sucesso são melhores.

No mesmo sentido, pode-se mencionar, no território da Drôme, em França, a aldeia de Saillans que é considerada como pioneira em termos de matéria participativa. Nessa aldeia, em 2014, a maioria que ganhou as eleições autárquicas apresentou um programa previamente elaborado por todos os habitantes que podiam e queriam participar a o construir. Desde então, graças à « Comissões participativas » e « Grupos Ação Projeto », o executivo municipal limita-se por grande parte a implementar as decisões tomadas a montante pela população da aldeia. A aldeia de Vandoncourt, no território do Doubs, ainda em França, segue uma experiência similar desde 1971.

Finalmente, último tipo de mecanismo participativo: o referendo, que pode ter formas variadas. O Venezuela por exemplo propõe teoricamente um referendo dito revocatório, que permite a um certo número de cidadãos, a partir da metade do mandato do presidente da República e na base de um mínimo de assinaturas recolhidas, de submeter ao voto popular o fim do mandato presidencial. Foi usado em 2004 no tempo de Hugo Chávez, mas o seu sucessor, Nicolás Maduro, achando que não poderia ganhar essa consultação, impediu a organização de um novo em 2016 – no prazo do 10 de Janeiro de 2017, a oposição não tinha reunido o número de assinaturas suficiente. De maneira mais geral, observa-se que o referendo pelo mundo é muito usado para validar a adopção de uma medida legislativa (por exemplo o referendo sobre a proibição do comércio das armas e das munições no Brasil em 2005, o referendo de 2007 em Portugal sobre a adopção do casamento homosexual, ou o referendo em Malta em 2011 sobre a legalização do divórcio), de um tratado internacional (tal como o referendo irlandês sobre o Tratado de Nice organizado em 2001, o de 2010 na Eslovénia sobre a resolução de uma disputa frontaleira com a Croácia, ou o referendo neerlandese de 2016 sobre a validação do Tratado de associação ligando a Ukcrânia à União europeia) ou de uma mudança constitucional ou de regime (por exemplo o voto sobre o fim da monarquia na Itália em 1946, aquele sobre a independência da Escócia em 2014; o sobre a adopção de um regime republicano na Austrália em 1999, ou aquele sobre a redução do mandato presidencial em França de sete para cinco anos em 2000). Pontualmente, pode ter sido usado para resolver (ou tentar resolver) situações de crise internacionais ou nacionais; foi o caso de muitos referendos de independências (por exemplo no Sudão do Sul em 2011), ou sobre acordos de paz (na ilha de Chipre em 2004, e mais recentemente na Colômbia em 2016 e na Macedonia em 2019). Muito frequentemente, observa-se,em função de quem teve a iniciativa da consultação ou do resultado final, contestações pelos perdedores – incluindo quando a organização eleitoral e a transparência do processo de voto não criaram polémica. Uma demonstração de que a apreciação do jogo democrático é variável em função do contexto, como o tinhamos mencionado no primeiro capítulo desta série. E no entanto, o referendo não deixe de ser provavelmente, com as eleições diretas (quando elas permitem uma representação fiel do corpo eleitoral, por exemplo com um modo proporcional ou misto), o método mais democrático e mais legítimo de expresséao popular.

A oportunidade das novas tecnologias, e sobretudo de Internet

Certamente, podemos argumentar que a escala do Estado-nação complica a implementação da democracia direta. Mas desde duas décadas, o desenvovimento de Internet mudou as coisas, oferecendo possibilidades de ferramenta ao serviço da participação. E os exemplos de experiências usando o ferramenta digital não faltam: os orçamentos participativos on-line (na cidade de Belo Horizonte no Brasil por exemplo, ou em certos municípios em França), as assembleias participativas electrônicas (como o projeto Ideal-EU, primeira assembleia participativa electrônica europeia, realizada pelas Regiões de Poitou-Charentes, Catalunha e Toscana), ou ainda a e-participação legislativa (implementada na Estônia). Um site Internet dedicado à democracia participativa, chamado Democrateek, propôs federar iniciativas políticas e dar-lhes visibilidade, disponibilizando para todos uma comunidade e ferramentas de lobbying cidadão.

A ideia não é substituir-se ao debate físico, mas completá-lo com uma escala desterritorializada. Nos Estados-Unis por exemplo, a administração Obama tinha desenvolvido uma participação on-line sem precedentes para os cidadãos – já na sua campanha eleitoral, verificou-se que esse modo de expressão tinha sido útil para contrabalaçar a influência dos grupos de pressão privados potentes – em particular quando chegou o debate sobre a reforma do sistema de saúde.

É verdade que as iniciativas de participação democrática on-line opõem-sea muitos problemas sérios: a falta de vontade dos dirigentes, o risco de privatização e de opacidade da mecânica democrática por empresas funcionando com código informático e algoritmos proprietários. Mas felizmente, nessa área, as coisas mudam rapidamente. É para responder a esses limites que a lógica de bem comum digital (o open source, ou seja: de código aberto) impõe-se como uma possibilidade garantindo aos cidadãos o controle do seu ferramento de expressão democrático. Além disso, as sociedades civis mobilizam-se cada vez mais para apoiar uma participação cidadã direta na construção das políticas públicas. Podemos mencionar o Partido da Rede (Partido de la Red em espanhol), um movimento criado na Argentina para as eleições legislativas de 2013 com objetivo de dar a possibilidade aos cidadãos de decidir diretamente do voto dos seus deputados. Para isso, o movimento tinha desenvolvido um aplicativo open source, « DemocracyOS », permetindo votar sobre cada projeto de lei e cujo código pode ser reutilizado e readaptado. Tal ferramenta, na perspectiva de uma sociedade onde cada um teria mais tempo e informação acessível para pronunciar-se sobre os projetos de lei em debate, tornaria quase obsoleta a função de deputado – ou poderia permitir de o limitar a uma simples carga de delegado, encarregado de debater no hemiciclo mas obrigado à final a votar o que a maioria dos eleitores da circonscripção dele decidiu.

Podemos também mencionar Demodyne, uma plataforma independente sem fins lucrativos criada na França em 2015. Disponível em todo o território, ela permite aos cidadãos de co-construir em tempo contínuo o programa para sua cidade, região e seu país. Para cada um dos três níveis, os usuários podem propor, debater, votar e estabelecer prioridades – desmontração que a problemática da escala nacional, considerada como ampla demais para permitir a participação dos habitantes, pode ser por parte esclarecido graças às novas tecnologias. Até a animação ao vivo de sessões de trabalho mistas (presencial/on-line) é possível, e incentivada. E as administrações públicas têm contas dedicadas.

Em Porto Alegre, no Brasil, um sistema « wiki » (um site Internet que enriquece-se das contribuições dos usuários de Internet) permite agora de cartografiar o território e de identificar os problemas que encontram os habitantes da cidade. Esse site inscreve-se no âmbito da plataforma « wikicity », um conceito baseado em quatro eixos: cultura da cidadania, ética da atenção, responbilidade partilhada e envolvimento cívico. A plataforma referenciava, em 2019, 1 800 causas, divididas em doze categorias, por exemplo o meio ambiente, a cultura, a saúde, o empreendedorismo, ou ainda a segurança. O usuário de Internet que deseja inscrever uma nova causa no wiki pode encaminhar sua solicitação à Prefeitura (o equivalente da Câmara municipal no Brasil), criando assim um número de rastreamento que lhe permite seguir o tratamento.

Na Finlândia, desde Março de 2012, a Constituição deixe a cada cidadão adulto a oportunidade de inscrever propostas de lei na agenda parlamentar. Essas últimas são examinadas pelos eleitos, com a condição de recever o apoio de pelo menos 50 000 outros cidadãos finlandeses (ou seja, 1% da população). Para optimizar o uso e o impacte desse dispositivo, a ONG Open Ministry iniciou em Outubro de 2012 uma plataforma facilitando o envolvimento dos cidadãos: participação on-line, oficinas de trabalho abertos, mesas redondas, etc. E quando acabam as discussões, advogados voluntários ajudam a tornar o texto conforme ao formato das proposições de lei. Em 2019, cinco propostas de lei acompanhadas pela ONG tinham atingindo o cabo de 50 000 assinaturas e tinham sido então submetidas aos parlamentares; eram sobre temáticas diversas, por exemplo o casamento homosexual, ou a evolução da legislação sobre o copyright (direitos autorais) – aliás, sobre este último ponto, mais de 1 140 contributores foram envolvidos na co-redação do projeto de lei cidadão.

Nos Estados-Unidos, o prisma da participação cidadã foi particularmente desenvolvido na frente do financiamento público. O site www.citizinvestor.com/ propõe de fato aos cidadãos norte-americanos de participar ao financiamento de infra-estruturas públicas. Perto da lógica dos financiamentos participativos (ou crowdfunding, em inglês), essa plataforma on-line permite aos cidadãos de contribuir ao esforço de investimento da cidade, por exemplo para a renovação de uma piscina de bairro, a construção de novos parques, a instalação de áreas de jogo infantíl, etc. Na medida em que o orçamento do município já é o resultado das contribuições (fiscais) dos cidadãos, os valores investidos com essa plataforma são, claro, dedutíveis de impostos – uma forma, portanto, de decidir como são usados os seus impostos. Dado que elas são debitadas só se a totalidade do valor necessário à conclusão do projeto é atingindo. Entre o seu início em Setembro de 2012 e o final da década, perto de 70% dos 21 projetos submetidos por 17 municípios diferentes atingirem o objetivo de financiamento. Em 2019, 112 outros municípios pensavam em submeter projetos. A doação média era então de 150 dólares, e 12% dos « investidores cidadãos » apoiaram mais de um projeto.

Os limites da democracia participativa: ou como compensar um sistema que representa mal os eleitores?

A participação visa teoricamente a dar ao cidadão, a qualquer cidadão, um lugar central no processo democrático. Sem questionar o saber político dos eleitos nem os conhecimentos dos peritos, essa nova forma de partilha do poder necessita, a montante da sua realização, o reconhecimento de uma perícia cidadã legítima. Mas a participação só é eficiente se ela toma um carácter vinculativo (como o observamos nos orçamentos participativos), se ela deixa uma liberdade total de propostas aos cidadãos (e é o caso com o referendo de iniciativa cidadão, pois isso deixe aos cidadãos a escolha da questão e das respostas propostas) e se as classes sociais desfavorecidas têm os ferramentas para participar. Além disso, os processos participativos permitem favorecer a convivência ou a vida dos bairros, multiplicando as oportunidades de tempos coletivos e a inclusão de todos a cerca de projetos comuns (incluindo a cerca de temáticas inclusivas, como o acesso das pessoas deficiêntes nos lugares públicos). Eles permitem de promover políticas mais adaptadas às necessidades dos cidadãos, pela livre expressão e a escuta das divergências – vimos, aliás, que se a autoridade mostra receios às vezes em assumir uma problemática, as estruturas participativas podêm ser investidas da responsabilidade de responder a essa última. Finalmente, a ideia atrás é de melhorar as relações entre administração e usuários, pois os segundos são chamados a entender melhor os desafios e o funcionamente da primeira.

Todos os exemplos de iniciativas apresentadas não devem fazer esquecer que a questão da participação foi pensada, certamente com o objetivo de revitalisar a cidadania, mas também como um possível remédio para a crise de desconfiança que afeta a esfera política. Trata-se de recriar o laço (ou um laço aparente) entre a sociedade (através dos cidadãos ou através do tecido associativo) e as instituições. Por isso, geralmente são consultas simples e não vinculativas. Frequentemente, os eleitos locais conseguem simular a concertação e na verdade controlar cuidadosamente os mecanismos de participação. Muitos ferramentas consultativos desenvolveram-se nos últimos anos, desde a comissão extra-municipal ao conselho de bairro, passando pelos conselhos de crianças, de jovens, de estrangeiros ou de idosos. Em 2004, a Associação nacional dos conselhos de crianças e de jovens (ANACEJ) em França, por exemplo, registrou cerca de 1 200 dessas estruturas em várias coletividades territoriais. A proliferação desses ferramentas, à medida que cresce o sentimento geral de ruptura entre a classe política e os cidadãos, ilustra a teatralização dos eleitos locais, que devem mostrar-se sempre acessíveis, disponíveis e atentos com os administrados.

As experiências políticas com alvo dar um lugar crescente à sociedade civil nos processos de decisão e de controle existêm, em particular à escala local, e algumas são iniciativas sinceras ricas em lições – com os seus sucessos e os seus fracassos. Claro, as nossas mídias não fazem o seu trabalho, ou seja, nos informar sobre a existência dessas experiências, o que explica que, em geral, nunca ouvimos falar delas, seja sobre iniciativas observadas em Naples na Itália desde 2011, em Greboble em França desde 2014, em Madrid entre 2015 e 2019, em Barcelona desde 2015, ou ainda, do outro lado do Atlántico, em Valparaíso, no Chili, desde 2016 – para citar só uns exemplos. Mas, com demasiada frequência, as tentativas de democracia participativa produziram apenas modestas mudanças nas relações de poder e na redistribuição dos recrusos. Isso explica o receio dos eleitos a conceder aos cidadãos um direito de iniciativa de tipo referendo, pois essa forma de consulta permite « contornar » nossos eleitos; foi o caso com os Coletos amarelos em França, que teriam usado um ferramento desses para provocar uma consultação nacional vinculativa sobre as questões fiscais. Os governos não querem que seja mexida essa questão. Porque democracia e justiça social andam necessariamente de mãos dadas.

A escala local, os desafios traduzem-se às vezes por processos de remunicipalização de serviços públicos básicos que têm sido privatisados anterioramente, trazendo a questão de pensar as cidades e as aldeias de forma mais inclusiva. Água, energia, restauração escolária, transporte... Uma onda mundial de remunicipalização é em curso, e por exemplo, em França, é pela remunicipalização da distribuição da água e das energias que a constatamos melhor. Desde quase duas décadas, umas 50 cidades, sejam de esquerda ou de direita, de Paris até Grenoble, de Rennes até Nice, retomaram diretamente a gestão da água. Ai também, as regras vinculaticas impostas pelo âmbito europeu ou nacional vierem colocar essas iniciativas em tensão, nos lembrando que, a todas as escalas de decisão, o aprofundamento da democracia, a questão do controle dos recursos, e mais geralmente a exigência de justiça social, permanecem combates a conduzir.

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