Moçambique: Afonso Dhlakama, ou a falta de visão de longo-termo
Desde a sua criação nos anos 1970, a Renamo lutou contra o poder da Frelimo, seja nos tempos do partido único, seja desde o acordo de paz de 1992 e as eleições de 1994. Mas, enquanto o líder de oposição Afonso Dhlakama está chegando aos 64 anos de idade, sem perspectiva de obrigar a Frelimo a deixar o poder, e sem parecer preparar sua sucessão na liderança da sua formação política, é importante colocar a questão do futuro preparado pela Renamo, e em particular pelo seu presidente. Quais são os planos de Afonso Dhlakama, para Moçambique, e para a Renamo?
Em 17 de Agosto deste ano, a Comissão Mista de preparação ao Diálogo apresentou um primeiro acordo relativamento a um processo de reforma destinado a iniciar uma descentralização do Estado moçambicano, de tal forma que certas províncias reclamadas pela Renamo fossem governadas pelo primeiro partido de oposição. Esta promessa de compromisso e de paz para Moçambique ainda não foi confirmado, pelos legisladores ou pelo governo, e a nomeação de « governadores provisórios » membros da Renamo, proposta pelos mediadores internacionais, ainda não foi anunciado pela presidência Nyusi, que provavelmente prefira ganhar tempo. Os assassinatos (mais dois!) por baleamento, por desconhecidos, do ex-deputado renamista Jeremias Pondeca, membro da Renamo na equipa do diálogo político, em 8 de Outubro passado, em plena rua, na zona de Costa do Sol em Maputo, e de Juma Ramos, chefe de mobilização da bancada renamista na assembleia provincial de Sofala, em 30 de Outubro em Beira, indicam que a paz ainda não está perta. Tal como a continuação de práticas violentas pela Renamo, por exemplo no início de Outubro passado, com três ataques armados na zona do rio Fudza, aos limites entre as províncias de Zambézia e de Sofala – 14 homens armados renamistas foram mortos durante a resposta das Forças de Defesa e Segurança (FSD). Em Outubro, também foram notados bastantes ataques da Renamo na província de Manica, o que agravou o número de deslocados no centro do país. E em 27 de Outubro, os deputados da Frelimo pediram à Procuradoria-Geral a ilegalização da renamo, acusada de « ataques a unidades sanitárias, aos autocarros e comboios de transporte de passageiros e mercadorias », e de « agir contra as leias ». No final do mesmo mês, líderes comunitários do distrito de Meconta, na província de Nampula, denunciaram alegadas perseguições protagonizadas pela Renamo. Em 31 de Outubro, a polícia moçambicana confirmou o assassinato pela Renamo de dois secretários de círculo da Frelimo na província de Sofala, e uma tentativa de assassinato sobre um terceiro. E em 3 de Novembro, novo ataque da Renamo numa localidade, desta vez num posto administrativo do distrito de Lugela, na Zambézia.
No entanto, a perspectiva nova que representa para a Renamo, no futuro, a governação de algumas províncias, deve questionar sobre a resiliência da Renamo, a sua capacidade a « produzir » elites políticas e administrativas (incluindo relativamento jovens), e a permanecer um partido forte; e também sobre a visão de Afonso Dhlakama e dos seus colegas para Moçambique, e em particular para as províncias potencialmente afectadas pela alternância política.
A visão para Moçambique: nada para o bem comum, tudo para suas ambições de poder
« A Renamo é um partido político. O pouco da democracia que existe em Moçambique é graças à luta da Renamo. É um projecto que vem desde 1977. Entre 75 e 77, a Frelimo era o único partido, desenvolvia as aldeias comunais, execuções, fuzilamentos, tribunais revolucionários, entre outros. isto tudo a Renamo juntou como projecto e criou a democracia. A Renamo forçou a Frelimo a ir até Roma para assinar os acordos de paz. Infelizmente, a Frelimo não aceitou o projecto político da Renamo, mas continuamos a lutar por uma democracia multipartidária, Estado de direito », dizia Afonso Dhlakama ao jornal O País, numa entrevista publicada em 8 de Agosto de 2016. É uma ideia constante defendida pela Renamo: os membros e os eleitores desse partido consideram que ele é que trouxe a democracia em Moçambique. Uma afirmação que merece ser revista... Primeiramente, porque a existência da Renamo nem impede a Frelimo de dominar todos os órgãos de decisão nacionais e locais (fora dos 4 Conselhos municipais que pertencem ao MDM...), e de controlar toda a vida administrativa e econômica do país; pior, através a sua participação nas eleições, a Renamo legitima um sistema profundamente clientelista que torna quase impossível uma alternância.
Acima de tudo, as aspirações « democráticas » da Renamo estão mais parecidos com um desejo de tomar o poder, ou pelo menos de o compartilhar com a Frelimo, do que com uma vontade sincera de democratizar o país. E aliás, o combate iniciado pela Renamo em 1977 não era nada democrático, era uma luta anti-comunista que tinha por objetivo a tomada do poder pela força, não o estabelecimento de um sistema democrático. Este objetivo só foi colocar-se no programa da Renamo no final dos anos 1980, quando o movimento, com pressão norte-americana e para aparecer diplomaticamente « aceitável » aos Europeus, no contexto do fim da Guerra fria. Quem pode pensar seriamente que, se a Renamo tinha conquistado o poder logo no final dos anos 70, teria estabelecido um regime pluralista e garantindo as liberdades fundamentais e os direitos humanos? Será que os combatentes anti-comunistas em outros países instauraram uma democracia? Será que na República democrática do Congo (Zaire), Mobutu Sese Seko, presidente de 1965 a 1997, estabeleceu uma democracia depois da queda em 1960 e do assassinato de Patrice Lumumba em 1961? Será que no Burkina Faso, Blaise Compaoré, presidente de 1987 a 2014, permitiu alternância política depois do assassinato do presidente Thomas Sankara (1983-1987)? Há como duvidar das intenções da Renamo quando iniciou, com uma violência terrível, a guerra civil, ainda mais porque na altura, o movimento armado era apoiado por regimes não-democráticos (África do Sul com regime de apartheid, Rodésia-Zimbabue neo-colonial, etc.). Aliás, denunciado pela Frelimo (informação de Rádio de Moçambique no início de Agosto), o rapto e o assassinato de uns 108 membros da Frelimo em Sofala entre Janeiro e Julho de 2016 não tranquiliza sobre as práticas políticas e securitárias da Renamo, nem hoje enquanto está na oposição, nem no futuro se tomar um dia o poder – é esta mesma Renamo que denunça um suposto « esquadrão da morte » criado pela Frelimo com objetivo matar figuras da oposição.
« As instituições devem ser fortes, as eleições devem ser livres e transparentes, os tribunais devem funcionar. As forças não pertencem aos partidos, como a Polícia, Forças Armadas, o desenvolvimento económico e emprego para a juventude. Que haja unidade nacional, não apenas nas palavras, que as pessoas de diversas regiões do país se sintam irmãos e que haja desenvolvimento, sobretudo a paz, este é o projecto político da Renamo. » Estas palavras, ainda pronunciadas por Dhlakama a O País, em 8 de Agosto de 2016, não são confortadas pela postura belicista do velho presidente da Renamo. Atrás das frustrações dos povos do centro e do norte de Moçambique que nunca tiveram realmente o sentimento de ser dirigidos por governantes legitimos, se escondam ambições políticas e financeiras sem límites, que só podem ser comparadas às ambições dos próprios líderes da Frelimo, cujas políticas traduzem-se pela confiscação das riquezas do país. Enfim, os líderes da Renamo, ao pretexto de defender a democracia, querem uma parte do bolo.
As propostas relativas à descentralização formuladas pela Renamo desde as eleições de Outubro de 2014 ilustram o grau de oportunismo desse partido, em particular aquele do 16 de Março de 2015, recusado pela maioria frelimista na Assembleia legislativa, em 30 de Abril do mesmo ano. A reforma em si não era um projeto nacional coerente, pois só previa uma autonomia para as províncias onde a Renamo dizia ter ganhado as eleições. O primeiro partido de oposição não oferecia um projeto de descentralização para o país, mas um plano de partilha do poder geograficamente localizado e claramente ao benéficio da Renamo. Acima de tudo, a análise do projeto no detalhe revelava a imaturidade (ou a incompetência) dos quadros da Renamo em termos de direito institucional. Antes disso, as discussões sobre criação de um estatuto para o segundo partido mais bem representado no Parlamento ou para o segundo mais bem votado na eleição presidencial reforçaram ainda mais essa sentimento que, duma maneira ou duma outra, a direção da Renamo estava mais à procura do seu próprio interesso do que o do povo. Os combates desse ano mostram também que a defesa das suas reivindicações é claramente privilegiada pelo primeiro partido de oposição, a pesar de provocar a morta de civis. Para voltar a dados sobre ataques da Renamo em 2016, incluindo sobre civis: Moçambique: a Renamo e a subida da violência, uma estratégia perdedora
Qual sucessão na liderança da Renamo?
O processo de decisão totalmente vertical dentro da própria Renamo confirma a personalidade clientelista e autoritária do Afonso Dhlakama. As deserções sucessivas da Renamo esses últimos anos também o comprovam: a ruptura de Raul Domingos em 2004 e de Daviz Simango em 2008 são as mais famosas, mas não são as únicas. De fato, o Dhlakama impede desde 1979 a emergência de outras personalidades dentro da Renamo. E isto é provavelmente um dos principais problemas deste partido, o que, é verdade, a governação de províncias poderia corrigir, permitindo novas personalidades emergir. Hoje, não se conhece muitas figuras do partido, além do porta-voz do movimento, António Muchanga, do Secretário geral e deputado da Renamo, Manuel Bissopo, ou talvez do chefe de gabinete de Afonso Dhlakama, Augusto Mateus, ou do advogado da Renamo, Arnaldo Tivane. Sem esquecer, claro, a própria sobrinha do Dhlakama, E quem sabe, um dia, Afonsinho, filho de Dhlakama, mas que é ainda jovem demais.
Ivone Soares, ainda relativamente jovem (37 anos) e conhecida por sua personalidade forte, é provavelmente a mais provável para suceder a Afonso Dhlakama, o tio dela. Ela nasceu em 1979, em Maputo; filha do engenheiro electrónico, Liberato Bernado Soares, e de Maria Arminda Rensamo Dhlakama, antiga combatente da luta pela independência, ela morrou muito tempo, na sua infância, no bairro central da capital. Licenciada em Ciências de comunicação e Mestre em administração pública, ela entrou na vida política como militante, aos 14 anos, colando panfletos da Renamo em 1993-1994, durante a primeira campanha eleitoral do Mozambique contemporâneo. Aderou ao partido aos 18 anos, Em 2014, ano de eleições e então de campanha eleitoral, foi considerada como uma das 50 personalidades emergentes no continente africano pela revista The Africa Report. Para alcançar seu patamar atual, Ivone Soares desempenhou várias funções na Renamo, desde a de chefe do Departamento de Relações internacionais, passando pelo cargo de porta-voz de Gabinete central de Eleições, a membro da Comissão política nacional, composta por 11 membros, entre os quais o tio dela. Ela foi deputada nas eleições de 2009, e reeleito em 2014. Aos 31 anos de idade, ascendeu ao cargo de vice-presidente da Comissão das Relações internacionais, e segunda vice-presidente do Gabinete da Juventude parlamentar (2010-2013). Entre 2013 e 2014, desempenhou a função de relatora da Comissão de Ética parlamentar. Em Fevereiro de 2014, foi eleita presidente da Liga da Juventude da Renamo. Depois de ter desempenhado um papel central no retorno de Afonso Dhlakama à cidade de Maputo, em 4 de Setembro de 2014, ela assuma, desde as útimas eleições, os cargos de chefe da bancada parlamentar da Renamo, vice-presidente da Juventude no continente africano, e membro da Comissão permanente de Justiça e direitos humanos no Parlamento pan-africano.
Seria bom para a Renamo o velho líder do partido pensar nisto, porque a seguir dos confrontos nos quais ele saiu ileso, em Setembro de 2015 (ele tinha então denunciado uma « operação Savimbi »), várias personalidades do partido foram eliminados pelo « Esquadrão da morte », os últimos sendo José Manuel, membro do Conselho Nacional de Defesa e Segurança indicado pela Renamo, matado por baleamento em 9 de Abril de 2016 em Beira, e, recentemente, o ex-deputado da Renamo Manuel Lole, raptado em 12 de Julho de 2016 em Chimoio e cujo corpo foi descoberta sem vida na província de Sofala, dois dias depois. Em Abril de 2016, Canal de Moçambique divulgou uma lista de membros da Renamo assassinados ou na mira do « Esquadrão da morte » do governo: Elesson Jonasse, Filipe Macharine, Aly Djane Cálu, Albanu Massora Chimue, Joaquim Jacinto. Deve haver uma verdadeira sucessão pensado antes da Renamo ter perdido totalmente a sua « cabeça » de liderança.
Entrevistado pelo jornal O País, no articulo publicado em 8 de Agosto de 2016, o líder da Renamo respondeu à questão da sua saúde e da sua presença nas eleições futuras: « De saúde estou bem. é claro que as pessoas sempre inventam que eu estou doente. Posso apanhar malária, ter febre, enfim, eu estou bem. Espero que as negociações aconteçam, para voltar a andar livremente. Estou confinado já há algum tempo. [...] Não sei [se vou candidatar-me], isso depende do partido Renamo. Se o partido achar que sou válido, ainda posso fazê-lo. Eu não mando em mim e não tenho preocupação em me candidatar. O importante é trazer a paz e democracia. » Ainda a O País, em 15 de Fevereiro de 2016, Afonso Dhlakama, à pergunta de quem ele vê como possível sucessor, respondeu: « Não sei, não sei. Cabe a cada membro mostrar trabalho suficiente para conquistar simpatia dos membros e chegar à presidência do partido. Não posso indicar ninguém, porque não se trata de poder tradicional. O meu pai, o régulo Mangunde, está a preparar um dos meus irmãos para lhe substituir. Eu fui eleito e o próximo presidente também deverá ser eleito de acordo com os estatutos do partido. » E naquela edição do 8 de Agosto de 2016, no mesmo jornal, ele respondia assim à questão da sua sucessão, e de como ele a prepara: « Não sou régulo. o meu pai é régulo e já sei que quando morrer um dos filhos vai substitui-lo, porque é o poder tradicional. No poder político não se fala de quem vai substituir, quem vai decidir é o partido. [...] Tal como afirmei, nós somos um partido democrático, realizamos congressos, temos os órgãos e eles é que deliberam. » Apesar destas palavras, quem pode imaginar que o Dhlakama, que tem a liderança deste movimento político (e do seu ramo armado) desde 1979, pode não ter influencia sobre a designação futura do seu sucessor.
O fato de Dhlakama não preparar realmente a sua sucessão, e de ele manter-se na liderança do partido, são provavelmente os maiores freios a uma potencial vitória da Renamo às eleições. Pois o chefe da oposição cliva demais para poder convencer eleitores além dos bastiões tradicionais da Renamo, no centro e no norte de Moçambique. Até agora, só o MDM é que consegue convencer eleitores além das clivagens tradicionais, que opõem o sul do país e Cabo Delgado (frelimistas) ao resto do país (renamista), mas ele não tem uma âncora eleitoral suficiente para substituir a Renamo como principal força de oposição. É a dimensão perversa de uma candidatura Dhlakama: ele cliva, ou seja, ele serva de « espantalho » para muitos cidadãos, que vejam nele o espectro da guerra civil (onde milicianos renamistas tiveram um papel terrível), mas ele atraia também muitas pessoas, incluindo jovens que têm esperanças políticas e sociais insatisfeitas.
De fato, enquanto ele lidera o partido, Dhlakama nunca poderá dirigir este país: a Frelimo, por medo de perder tudo o que tem, como por receio a vingança do velho chefe da guerrilha dos anos 80, nunca o permitira. Moçambique está então num impasse, e o líder da oposição prefira contar os mortos (incluindo civis) do que sair do ciclo de violência. No dia que Dhlakama deixa a liderança do movimento, todas as cartas da política moçambicana serão rebaralhadas, e para a Frelimo, então ameaçada porque perderá o seu espantalho habitual, e para o MDM, que poderá esperar tomar o lugar da Renamo como nova força alternativa moçambicana, e para a Renamo, que, se os seus dirigentes agem com inteligência, poderá finalmente realmente aspirar a governar. Isto não parece ser para um futuro próximo...
« Moçambique merece [...] uma oposição melhor », dizia o escritor Mia Couto em 17 de Junho de 2015, ao jornal Notícias. Claro, muitos pontos na crise política pós-eleitoral dependam da boa vontade da Frelimo, que domina as negociações logo que é o partido a possuir o poder, ao nível nacional como local. Mas obviamente, a Renamo não adoptou a estratégia mais relevante. E isto seria engraçado se não importava para milhões de pessoas, que apoiam este partido, e se a situação não impactava toda a sociedade moçambicana. O povo é o verdadeiro perdedor desta crise sem fim que conhece Moçambique.