Overblog
Editer l'article Suivre ce blog Administration + Créer mon blog
O acendedor de lampiões

Os desafios da democracia moçambicana (1/3): a laboriosa constituição de um Estado de direito

4 Février 2018 , Rédigé par David Brites Publié dans #Moçambique, #Democracia

Em 27 de Abril de 2016, foi descoberto pelo um grupo de camponeses uma vala comum no posto administrativo de Canda, no Gorongosa (província de Sofala), numa área que foi utilizada para a extração de areia para a reabilitação da EN1, num lugar próximo de uma mina de extração ilegal de ouro, entretanto abandonada devido o escalada da violência militar na região desde 2015. Com cerco de 120 corpos (« Uns já em ossadas e outros ainda em decomposição », disse um dos camponeses), nos quais uns 20 corpos espalhados à volta.

Esta descoberta revela práticas de raptos, assassinatos e violências impressionantes, que fazem lembrar os tempos da guerra civil – claro, cada lado acusa o outro de ter criado esta vala comum, e foi em vão que Daviz Simango, líder do partido MDM, exigiu então uma investigação aos fatos e o envolvimento do Parlamento e do Ministério público: « Agora que temos imagens, a grande questão que se coloca é saber quem matou aquelas pessoas. » Ainda em 26 de Maio de 2016, moradores no distrito de Mocuba (Zambézia) descobriram uns 28 corpos, provavelmente vítimas (civis ou armados) de combates entre Renamo e Forças armadas nacionais. Se sabe que, em Abril e em Maio de 2016, muitas pessoas fugiram a província de Zambézia para campos de refugiados no Malawi, onde já estavam, desde Janeiro e Fevereiro de 2016, uns 12.000 refugiados moçambicanos que tinham deixado zonas de combate.

Ao sair das violências entre Renamo e as Forças de Segurança e de Defesa Nacional, esses dramas devem obrigar os partidos a negociar (o atual ciclo de negociação Renamo-governo iniciado em Maio de 2016 ainda não assegurou a paz), e os cidadãos moçambicanos e a classe política (nacional e local) a superar as clivagens e a assumir os diferentes desafios que encontra agora e no futuro o Moçambique. Pois mesmo com uma acalmia nos confrontos entre Renamo e governo, a segurança política não está ai, como o ilustrou o assassinato, em 4 de Outubro passado, do presidente do município de Nampula, Mahamudo Amurane, membro do MDM, em contestação com o seu partido mas cuja morte pode servir os interesses da Frelimo como da Renamo; os culpados, claro, ainda não foram identificados. A confusão que esforçou o edil interino de Nampula, Manuel Tovoca, a deixar a liderança do Município um mês a seguir este crime, ilustra os desafios que ainda encontra Moçambique para ter uma situação de pluralismo sã, uma justiça eficiente, um diálogo político acalmado e construtivo, e uma cultura da alternância realmente implantada. Assim está Moçambique, a uns meses das próximas eleições autárquicas, e um pouco mais de um ano antes das futuras eleições nacionais, previstas em 2019. Este grande país, que estenda-se « do Rovuma ao Maputo » (Samora Machel, 1977), deve responder de maneira responsável às três grandes problemáticas políticas: os direitos e as liberdades no âmbito da república e num processo de democratização aceitável; o princípio da alternância política (ao nível nacional, mas também provincial e local); e o desafio quentíssimo da descentralização.

Na Ilha de Moçambique, na província de Nampula.

Na Ilha de Moçambique, na província de Nampula.

O reino da intolerância política: a necessidade de garantir as liberdades e os direitos fundamentais

A pesar de todos os signos de abertura política e da liberdade de expressão, houve na história do Moçambique moderno uma continuidade entre um regime político ditatorial, liderado pela Frelimo e que impedia qualquer abertura democrática até 1990, e um sistema que pretende-se democrático mas que na realidade não é nem transparente nem aberto. Entre os dois: a perpetuação das mesmas elites frelimistas, com ausência de alternância   um assunto que teremos a ocasião de aprofundir no artigo do mês que vem. Problema: neste contexto, continuam as mesmas pessoas que acham-se os únicos legítimos a dirigir a nação, os mesmos indivíduos sem cultura democrática nenhum, sem interesse pelos direitos humanos ou a transparência da vida política, e sem vontade de abertura ou de ouvir os seus cidadãos. Esta situação traduz-se, com a subida das contestações na sociedade civil, numa certa violência que afeta profundamente o Estado de direito moçambicano.

As bonitas palavras de abertura que abriram a presidência Nyusi foram esquecidas pelo próprio. O diálogo com a Renamo não deu nada, não dá nada, e aliás, da mesma forma que o Guebuza antes, o Nyusi tentou resolver a questão da Renamo pela força, sobretudo em Outubro de 2015, quando as Forças armadas tentaram obrigar os homens renamistas a devolver as armas, e até alguns acusam o chefe do Estado de ter tentado eliminar o chefe da oposição moçambicana. Uma estratégia que não deu resultado, e que ainda mais não é desejada por uma maioria de cidadãos. A volta ao diálogo e as grandes reformas democráticas que o país necessita (despartidarização do Estado, descentralização, etc.) ainda são assuntos irresolutos. A intolerância política perpetua-se e aparece óbvia em todos os aspetos da vida pública, incluído nos mídias.

No âmbito duma carta da bancada MDM entregada em 29 de Outubro de 2016 à presidência da Assembleia da República, o deputado Geraldo Carvalho pronunciou estas palavras: « Se há duvidas que existem esquadrões de morte que perseguem e matam membros da oposição, não deve haver duvida que na cidade de Maputo, sobretudo nos órgãos de comunicação social públicos que vivem dos impostos do povo, pululam esquadrões de morte de caracter sob olhar impávido do senhor Primeiro-ministro. O Senhor Primeiro-ministro deve orientar os PCAs da TVL e Rádio Moçambique a acabarem com aqueles debates porque em nada contribuem para a paz, contribuem sobremaneira para a instabilidade social que se vive no país. » De fato, todos partidos e as forças da sociedade civil não têm um igual acesso à imprensa, aos mídias, e muitos deles não são neutros, e não assumam sinceramente o papel de informação dos cidadãos.

Pior, o ambiente político não melhorou desde o início do mandato de Nyusi. O assassinato do advogado e constitucionalista franco-moçambicano Gilles Cistac, em 3 de Março de 2015, baleado na avenida Eduardo Mondlane em Maputo, ilustrou as tensões que existem sobre a questão da descentralização: quinze anos depois do assassinato do jornalista investigador Carlos Cardoso em 2000, e quase um ano após o do juiz Dinis Silica, este crime, provavelmente planeado pelo clã Guebuza, o então presidente da Frelimo e ex-chefe do Estado, causou uma grande emoção na opinião pública, como o ilustrou a marcha do dia 7 de Março em sua homenagem em Maputo. A semana antes do assassinato do Gilles Cistac, ameaças de morte foram feitas anonimamente no Facebook contra vários « brancos » em torno de intelectuais da oposição (intelectuais da oposição que no entanto não pertencem à Renamo), nomeadamente Fernando Lima, mas também Fernando Veloso, diretor de Canal de Moçambique, os economistas João Manuel Ferreira dos Santos Mosca e Carlos Nuno Castel-Branco… e o próprio Gilles Cistac. Em 11 de Abril de 2016, o procurador da República Marcelino Vilanculo foi assassinado com vários tiros em frente à sua casa, em Matola; tal como o juiz Dinis Silica em 2014, ele tinha em mãos vários casos de raptos – por exemplo o processo de acusação provisória contra Danish Abdul Satar como mandante de raptos.

Jornal MediaFax - 10-02-2017.

Em Setembro de 2015, o economista Carlos Nuno Castel-Branco e o editor do diário Mediafax Fernando Banze acabaram um longo julgamento na cidade de Maputo. Os mesmos eram acusados de crimes contra a segurança do Estado e abuso de liberdade de imprensa, relacionados com uma opinião sobre o ex-presidente Armando Emílio Guebuza. Isto tudo iniciou-se com a publicação, em 2013, na conta Facebook de Castel-Branco de um post crítico da governação do então presidente Guebuza. Banze fez depois reproduzir o texto no seu jornal: o primeiro era acusado de crime contra a segurança do Estado, por alegada difamação e calúnia; o segundo de abuso de liberdade de imprensa. Incorriam em penas mínimas de um ano até dois anos de prisão e multa. O caso tinha sido levado não pelo próprio Guebuza, mas pelo Estado, representado pela Procuradoria-Geral da República. Se o julgamento acabou deixando livres e inocentes os dois acusados, vemos bem que a liberdade de expressão ainda não está totalmente assegurada em Moçambique. Certos assuntos públicos ainda são tabu, segundo a Frelimo. Na manhã do 8 de Dezembro de 2015, Carlos Jeque, jurista e analista político (que tinha anunciado o seu apoio à Renamo em 2014), foi baleado na rua, em Maputo; ele não morreu, mas isto indica a tensão no contexto dos confrontos com a Renamo e das discussões sobre a descentralização. Em 23 de Maio de 2016, o politólogo e comentador TV (e docente na Universidade Eduardo Mondlane) José Jaime Macuane foi baleado por indivíduos armados ao longo da Estrada circular de Maputo (na zona de Marracuene), por motivos que ficaram desconhecidos.

Outro péssimo sinal: em 18 de Novembro de 2015, com os votos da bancada da Frelimo, mas também do MDM, a Assembleia da República aprovou um instrumento que vai dar espaço para que se executem escutas telefónicas aos cidadãos moçambicanos; só a Renamo é que votou contra por entender que o mesmo invade a vida privada dos cidadãos e não está claro quem é que pode exercer tais escutas. O sinal não era positivo. Práticas de repressão continuam, por exemplo com a polícia. Em Janeiro de 2016 em Manhiça (província de Maputo), sobre alegada soltura de criminosos por parte da polícia moçambicana, esta mesma polícia usou de balas verdadeiras para dispersar uma manifestação de protesto – naquela altura, o porta-voz da polícia declarou: « Usamos balas verdadeiras para repor a ordem na vila da Manhiça, mas não havia intenção de matar. » Na continuidade do voto parlamentar de Novembro de 2015, o Conselho Ordinário da Polícia da República de Moçambique (PRM) anunciou em Fevereiro de 2017 querer contatos telefónicos de cidadãos durante a emissão do bilhete de identidade (BI); os funcionários da Direção Nacional de Identificação Civil (DNIC) passarão a exigir que os cidadãos forneçam os seus contatos telefónicos durante o pedido de emissão do BI, para uma suposta maior articulação com os mesmos, bem como informá-los quando o documento estiver disponível. O tal orgão argumentou assim: « Vamos criar um bando de dados paralelos para comunicar com o cidadão, no sentido de evitar que nos guichés haja muitos BI não reclamados. » Mas há dúvidas sobre o uso real dessa bando de dados...

Em 30 de Março de 2016, a expulsão do território moçambicano duma cidadã espanhola, por ter participado, com ativistas moçambicanos, a uma manifestação sobre a questão das saias curtas nas escolas, mostrou também a capacidade ainda limitada das autoridades moçambicanas a ouvir qualquer sinal de contestação... Outro exemplo: provavelmente para denunciar os recentes escândalos financeiros e orçamentais do mês de Abril de 2016, circulou nas redes sociais um comunicado anônimo para chamar a manifestar pacificamente em 29 de Abril, mas 24 horas antes deste prazo, cães e militares fortemente armados, como também carros de guerra, foram instalados em toda a capital, para antecipar qualquer protesto e manifestação não autorizada. Entre os mandatos de Guebuza e de Nyusi, observa-se uma certa continuidade na abordagem do poder frente à democracia e a práticas de protesto público.

De fato, o ambiente político está numa situação catastrófica, como o ilustrou ainda, em Dezembro de 2015, o assassinato por linchamento (sendo regarado com gasolina, com instrumentos contundentes, com fogo, etc.) de Sousa Matola, antigo chefe de informação do MDM na Delegação política da cidade de Tete, morto na sede local do MDM. Em 9 de Abril de 2016, foi desta vez José Manuel, membro do Conselho Nacional de Defesa e Segurança indicado pela Renamo, que morreu, vítima dum assassinato por baleamento na cidade de Beira. A seguir este assassinato, Canal de Moçambique divulgou a lista de membros da Renamo assassinados ou na mira do famoso « Esquadrão da morte », um grupo que foi criado pelo governo (diz a Renamo) para raptar e assassinar membros da oposição: Elesson Jonasse, Filipe Macharine, Aly Djane Cálu, Albanu Massora Chimue, Joaquim Jacinto. Em 14 de Julho de 2016 na província de Sofala, o corpo do ex-deputado renamista Manuel Francisco Lole, que tinha sido raptado dois dias antes na cidade de Chimoio, foi descoberto sem vida na província de Sofala – um assassinato atribuído pela Renamo à ação do suposto « Esquadrão da morte ». Dia 8 de Setembro de 2016, Ivone Soares, chefe da bancada dos deputados renamistas e sobrinha de Dhlakama, escapou, quando desembarcou no aeródromo de Quelimane (Zambézia), a uma tentativa de assassinato, quando, disseram os seus próximos, dois indivíduos manipularam armas do tipo AK47; só que as mesmas puseram-se em fuga.

E claro, último caso que fez mais barulho, o assassinato do presidente MDM do município de Nampula, Mahamudo Amurane, em 4 de Outubro de 2017, depois da qual a sede do MDM em Gaza foi atacado (em 6 de Outubro) e, no início de Novembro, a pressão policial esforçou o edil interino, Manuel Tovoca, a sair da liderança do município. Em todos esses casos, a falta de identificação de culpados pela polícia e a justiça nos obriga a fazer um constato dramático da situação do Estado de direito em Moçambique. Deixam dúvidas sérias sobre a grau de proteção dos cidadãos, o nível real de liberdade de expressão, mas também sobre a sinceridade das autoridades públicas nas investigações.

Jornal Savana - 02-12-2017.

O Estado de direito fragilizado pela corrupção e o clientelismo...

Enfim, a democracia moçambicana não conhece mudança, nem melhoria. Tudo não é da culpa própria do presidente da República, mas as medidas adotadas (tipo aquela sobre as escutas telefónicas), ou a ausência de certas medidas (sobre a luta contra o clientelismo político, ou em favor da transparência financeira, ou contra a corrupção e os abusos policiais, etc.), isso é da responsabilidade do seu governo e da sua (falta de) ação.

A luta contra a corrupção ainda continua problemática. Em 2013 e 2014, as três empresas Ematum, MAM (Mozambique Asset Management) e ProIndicus contrataram emprestes discretos sobre os mercados internacionais, para financiar um ambicioso programa de proteção costeira e de vigilância marítima: navios, radares, drones e estaleiros navais. Em Abril de 2016, esta revelação tinha provocado uma viva reação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e dos doadores, cujas ajudas orçamentais foram imediatamente suspensos. Em Julho de 2016, a Procuradoria-Geral da República (PGR) ouviu os gestores das mesmas 3 empresas; ela concluiu a esta altura, segundo o seu porta-voz: « Até aqui, o que se apurou é o seguinte. Verificou-se que há violação da legislação orçamental, no que diz respeito à não observância dos limites e à não observância dos procedimentos legais. E isto implica em ilícito criminal na forma de abuso de cargo ou função. » Mas as investigações continuam, e ainda vão demorar muito tempo: « A PGR continua a realizar as diligências instrutórias, no sentido de apurar a aplicação dos montantes obtidos por via dos empréstimos [...]. E também, vai continuar a realizar as diligências no sentido de identificar e confirmar as aquisições e serviços contratados nessas empresas, e com esses valores resultantes desses empréstimos. »

Não se deve esperar grande coisa desta instituição, cujos laços com o governo e o partido do poder são grandes demais para garantir um verdadeira independência de ação e de reflexão – por lembrança, a dívida das três empresas, objeto de investigação da PGR, é de 850 milhões de dólares para Ematum, 622 milhões para ProIndicus, e 535 milhões para MAM. Em Dezembro de 2015, a bancada parlamentar da Frelimo já tinha rejeitado a possível constituição de uma comissão parlamentar de inquérito para investigar a Ematum (pedida pela oposição). « O que impera o combate à corrupção em Moçambique é a falta de autorização para que ela seja combatida, dizia em Julho de 2016 o jornalista Salomão Moyana, no programa Pontos de Vista (no canal STV). Enquanto o governo não libertar (politicamente) a PGR, não haverá avanço nenhum no caso das dívidas escondidas. » O mesmo já afirmava, em 2013, que « governo não sabe fazer democracia ».

Uma das últimas seqüências deste escândalo chegou em Junho passado, quando o gabinete americano Kroll, encarregado do relatório de auditoria (impostos pelo FMI) das empresas Ematum, ProIndicus e MAM, revelou, depois de meses de espera e de adiamentos, que as mesmas não justificaram a integralidade das faturas analisadas. Pois, destinadas à Procuradoria Geral, as conclusões do relatório de auditoria (« internacional e independente ») sobre os 2 bilhões de dólares da dívida escondida, não trouxeram respostas às interrogações, mas mais dúvidas. « Lacunas persistam para entender exatamente como os 2 bilhões de dólares foram gastos, apesar dos esforços consideráveis para compensar », explica o relatório, que sublinha a falta óbvia de cooperação entre as 3 empresas. São 500 milhões de dólares que continuam sem explicação. O gabinete Kroll comparou, por exemplo, o preço de certos equipamentos faturados a empresas com preços estimados por um experto independente, e a diferença é choquante: 713 milhões de dólares. As primeiros vítimas afetadas pelas sanções internacionais são os mais vulneráveis, não os políticos responsáveis: por exemplo, em Julho de 2017, segundo o jornal Dossiers & Factos, a Itália, devido ao desvio de 4,4 milhões de euros, suspendeu mais de 200 programas contra a pobreza no país.

Como já o explicamos várias vezes, por exemplo em Agosto de 2015 (Agricultura intensiva: em Moçambique, quem são as vítimas colaterais do « progresso »?), ou em Abril de 2016 (A exploração do meio ambiente: ou como Moçambique está perdendo suas riquezas naturais), o contexto de exploração dos recursos naturais e de descobertas de hidrocarbonetos aumentou consideravelmente o nível de corrupção e de clientelismo, fragilizando ainda mais o Estado de direito. Isto conduz a situações profundamente injustas que revelam bem que, além do crescimento económico nacional, o desenvolvimento não é sustentável, e as comunidades não aproveitam desta criação de riqueza monetário, mas sim, sofrem da exploração dos recursos (Mega-projectos e industrias extrativas: em Moçambique, o crescimento económico não assegura o desenvolvimento, Julho de 2015). Estado de direito, quer dizer transparência nas decisões políticas, nas decisões e aplicações da Justiça, na preservação das liberdades fundamentais, mas também a proteção das populações, em particular daquelas mais vulneráveis, contra interesses económicos e financeiros mais potentes. Estamos longe, bem longe do Estado de direito perfeito em Moçambique, ao contrário, como já o dissemos várias vezes, como neste artigo de Setembro de 2015: Moçambique: a hegemonia da Frelimo, um freio à redistribuição das riquezas, o governo e as autoridades administrativas (locais e nacionais) participam ativamente ao ciclo de corrupção que fragilisa as comunidades para assegurar enriquecimentos individuais. Até nos processos de reassentamentos, o Estado de direito não se aplica.

Último exemplo: a ponte ligando KaTembe a Maputo, que deve ser acabado em Dezembro do corrente ano, criou situações de desalojamentos difíceis. Já se sabe que, para dar lugar a grandes projetos sociais e económicos, incluindo uma cidadela onde se vai mudar a sede da Assembleia da República, com residências de luxo, já praticamente não há terra disponível na baia de KaTembe: a corrida imobiliária esgotou-a, e sem dúvida isto não se fez em toda transparência. A implementação deste projeto inclui igualmente a construção de estradas entre Maputo e a localidade fronteiriça de Ponta de Ouro, incluindo o troço ligando as vilas de Boane e Bela Vista. Estas obras todas implicam ocupação de extensas áreas de habitação e agrícolas, dos dois lados da baia, onde habitavam e trabalhavam famílias e indivíduos isolados. Um total de 1.024 famílias foram retiradas para dar lugar ao projeto. Em zonas como Tenga ou Mahubo, o processo colocou as pessoas em situações piores do que aquelas que conheciam antes: isolamento em termos de transportes, ausência de condições para praticar as suas atividades de machamba, habitações precárias, etc. Maioria das vezes, o dinheiro de indemnização não foi suficiente para acabar a casa. Sentam-se abandonadas, e enganadas, tal como já se sentiram tantas comunidades afetadas, em todo o país, por mega-projetos de infra-estruturas ou de exploração mineiro ou agrícola... Está mais do que evidente que, uma vez mais, a causa primária dos reassentamentos é os interesses económicos duma minoria de Moçambicanos (e de investidores estrangeiros); não é um sinal de desenvolvimento, mais um fator de exclusão das comunidades.

Eram direitos das comunidades « de ter o restabelecimento do seu nível de renda, igual ou superior ao anterior », e « de viver num espaço físico infra-estruturado, com equipamentos sociais ». Isto é o que diz a lei – o Regulamento sobre o processo de Reassentamento Resultante de Actividades Económicas. E aparece então esta pergunta bem simples, que a Agência de Informação da Sociedade Civil formulava, em 29 de Junho passado: no caso dos reassentados da ponte Maputo-KaTemba: por que não se cumpre a lei?

Canal de Moçambique - 28-07-2017.

Isto releva da responsabilidade das autoridades moçambicanas, que aceleram estas situações, e deixam empreendedores nacionais e cooperações ou explorados estrangeiros afetar este país. Em Junho deste ano, já tínhamos feito um foco sobre as relações China-Moçambique (A China, país amigo ou novo explorador de Moçambique?), e obviamente, este caso ilustra a fraqueza do Estado de direito moçambicano. Como já o explicávamos em Maio de 2016 (Pobreza em Moçambique: será que permanece uma luta de classes?), os grupos os mais vulneráveis não tem nenhum meio de pressão sobre os poderes públicos. As associações mobilizadas em favor de mais transparência e de igualdade existem: a vários níveis, as organizações da sociedade civil conduzem ações de advocacia e e informação para defender os direitos das famílias frente aos investidores-exploradores. Entre elas, pode-se citar certas de dimensão nacional, como o Centro de Identidade Pública (CIP), Justiça ambiental (JA), Fórum Mulher, ou Centro Terra Viva (CTV); mas também associações que trabalham ao nível de certos distritos ou de certas províncias, e que têm um papel determinante de laço com as comunidades e os cidadãos, como a Associação do Meio Ambiente (AMA) em Cabo Delgado, Kuwuka Jda na província de Maputo, o Centro de Coordenação para Higiene, Água e Saneamento (CECOHAS) na Zambézia, ou ainda a União Províncial dos Camponeses de Tete, e a Associação de Apoio e de Assistência Jurídica às Comunidades (AAAJC), na província de Tete. Em 27 de Junho deste ano, teve lugar na cidade de Pemba uma sessão de debate público aberto, subordinada ao tema: Exploração de recursos naturais versus instabilidade social; promovido pelo Centro de Pesquisa de Comunicação Sekelekani, o debate pretendeu proporcionar espaço de reflexão púbica sobre os prováveis impactos sociais e económicos das populações residentes em regiões onde ocorre a exploração de recursos naturais.

Sem contar as pessoas de boa vontade que, nas aldeias, nas comunidades afetadas, organizem-se para defender seus direitos, seja para defender-se frente a investidores agressivos, seja para levar reivindicações ou ações de advocacia em direção das autoridades públicas. É preciso também homenagear esses homens e essas mulheres que lutam pela justiça e pela democracia, em condições muito complicadas, e sem apoio do Estado.

Anedota que ilustra o grau de tensão que apareceu esses últimos anos em relação a essas situações, em 24 de Março de 2017, umas 5 comunidades (Pilivili, Mpuitine, Muholone, Mpwiri e Namaize) do distrito de Moma, na província de Nampula, inviabilizaram uma reunião de consulta pública organizada em Pilivili sobre o impacto ambiental de um projeto de expansão da área de exploração de areais pesadas, pretendida pela empresa irlandesa Kenmare numa extensão prevista de 17 km ao longo da costa marítima, da localidade de Tophuito à sede distrital de Moma; de acordo com os representantes de Kenmare, o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) tinha como foco inicial o levantamento dos diferentes tipos de vegetação e de vida animal e outros recursos naturais (nos quais os recursos marinhos). A consulta comunitária foi então interrompida, perante protestos de representantes das comunidades, que exigiram melhores condições de comunicação (os consultores falavam em língua inglesa, a seguir traduzida em português, e depois em língua EMakwa, e vice-versa para as perguntas da comunidade) e maior transparência nos propósitos da consulta. Sobre este segundo ponto, o questionamento baseava sobretudo sobre a finalidade e a origem do inquérito, uma vez que o mesmo era conduzido por duas consultoras estrangeiras acompanhadas de um representante de Kenmare, mas sem a presença de qualquer representante do governo distrital. A resposta das consultoras (elas pretendiam apenas obter informação sobre o número de habitantes, as pessoas decisionárias nos bairros e nas famílias, as ocupações diárias das pessoas, etc.) não satisfez as comunidades, que entraram em clima de agitação, só contida através de apelos ao calma dos líderes tradicionais.

A seguir este encontro, as comunidades de Mpwiri e Muholone, no posto administrativo de Pilivili, bloquearam a prospecção de areias da empresa irlandesa; o conflito surgiu quando máquinas penetraram na área das duas comunidades, invadindo machambas... Foi depois de Kenmare ter proposto a penas 7,50 meticais por cada planta de mandioca destruída, como indemnização pela destruição das culturas, que as pessoas reagiram, bloqueando os acessos com tronos e ramos de árvores. O ambiente geral e os comentários nas comunidades mostravam então um cansaço das promessas de Kenmare, a qual tinha, desde a sua entrada no distrito de Moma há quase 10 anos, aliciado os camponeses locais com promessas de criar empregos, construir escolas e abrir furos de água, o que nunca foi feito. Ainda no âmbito desta revolta, a comunidade de Mpwiri decidiu destituir o Secretário de bairro, acusando-o de conivência com os interesses da empresa, em detrimento dos direitos da sua comunidade. Entretanto, Kenmare já colocou tubos e selou com betão os possíveis lugares de onde irão extrair os minérios.

Segundo o relatório anual do instituto de pesquisa sul-africano New World Wealth, em 2017, Moçambique está entre os países do continente africano onde se concentra mais riqueza por habitante sem ter em conta as disparidades de repartição dessas riquezas – por lembrança, Mozambique ainda estava nos relatórios de 2016 el 184° lugar em termos de IDH. É tempo de consolidar o Estado de direito de tal maneira que a transparência e a boa gestão dos fundos públicos mudam esta situação injusta e revoltante. Má situação do Estado de direito, isto não se traduz só por conseqüências políticas, mas também económicas, sociais, humanas.

Na periferia de Maputo.

Na periferia de Maputo.

... E pela partidarização do Estado !

Lutar realmente contra as praticas de corrupção e de clientelismo necessitará não somente alternância política, como também a despartidarização do Estado, um passo indispensável para assegurar a neutralidade das autoridades públicas. Esse assunto é pesado porque ele ocorre desde o fim da guerra civil, pois a Frelimo não o aplica – e não tem interesse a o aplicar.

Assim, a Renamo submeteu em Setembro de 2016 à Comissão Mista para o Diálogo Político, uma proposta para a implementação dos protocolos do Acordo Geral de Paz, rubricado há 22 anos em Roma, referentes a integração dos seus homens armados nas Forças de Defesa e Segurança (FDS). Esta medida resultava de um acordo estabelecido uns dias antes, em mais uma sessão da Comissão Mista, e que tinha a ver com as FDS, nomeadamente, as Forças armadas de Defesa de Moçambique (FADM), a Polícia da República de Moçambique (PRM) e os Serviços de Informação e Segurança do Estado (SISE).

A Renamo sustentou então que houve alguma integração « simbólica » nas FADM, mas no que diz respeito a PRM e o SISE, o incumprimento foi total, exigindo deste modo, que as violações sejam corrigidas, com base no acordo assinado em Roma. « Neste sentido, ficou a delegação da Renamo, de apresentar uma proposta de modelo de rectificação de eventuais irregularidades e erros de aplicação do acordo para a integração ou reintegração ou confirmação da integração de elementos da Renamo, em particular nas Forças de Defesa e Segurança », disse Jacinto Veloso, chefe da delegação do governo, explicando a decisão saída da sessão.

Respeito ao princípio apartidário: no quadro da decisão tomada, a Comissão Mista definiu os parâmetros dentro dos quais a proposta da Renamo deve seguir. « As Forças armadas de Defesa e Segurança são a-partidárias e todos devemos agir respeitando este princípio e a necessidade de absterem-se, na sua acção, de qualquer atitude que possa provocar danos à unidade, tendência de favorecer este ou aquele lado, o que seria uma divisão », explicou Jacinto Veloso. Refira-se que o modelo que a Renamo vinha exigindo era de paridade e que ao nível das chefias, devia também haver partilha de lideranças.

Vê-se bem aqui que há uma confusão entre despartidarização do poder e partilha do poder entre Frelimo e Renamo. O primeiro partido de oposição não quer uma administração ou um exército neutro, quer a sua parte do bolo. Um Estado de direito supõe ter funcionários empregados na base de competências, não da adesão a tal ou tal partido. E o Moçambique não terá um Estado de direito real enquanto as duas maiores forças políticas abordam a questão desta maneira. Pois uma tal leitura deixa a pensar que a Renamo, se fosse no poder, agiria tal como o faz a Frelimo.

Outro grande problema em Moçambique não deixe de ser a separação dos poderes, num regime onde o executivo, em particular o presidente da República, cumulam tantos poderes. Ai como nos outros assuntos, a chegada de Nyusi à presidência não trouxe mudança nenhuma. Assim, em Julho de 2016, foi reconduzido na sua carga o presidente do Conselho constitucional, Juiz Conselheiro Hermenegildo Gamito. Isto não podia ser duma outra forma, pois é o mesmo presidente do Conselho constitucional que, em nome da sua instituição, tinha validado as eleições para que o atual chefe do Estado esteja no poder, mesmo sabendo de todas as deficiências do processo. Enquanto for o chefe do Estado a decidir pela nomeação de quem deve comandar o Conselho constitucional, dificilmente Moçambicanos terão independência naquele órgão. Ele não actua em plena independência das amarras políticas.

Sobre a separação dos poderes, não se pode falar de Estado de direito em Moçambique, pois essa noção é incompatível com a concentração dos poderes atualmente observada, ainda mais quando ela é opaco, pois deixe as mãos livres para vários abusos que nunca serão sancionados (ou conhecidos).

A não-renovação da classe política não ajuda a sair desta situação. A necessidade duma certa equidade política, base incontornável para lutar contre o clientelismo e a corrupção, e para trazer reformas políticas verdadeiras, não haverá, excepto uma surpresa que já ninguém espera, progressos reais enquanto não haverá alternância política em Moçambique. Enquanto isto não chegar, o país conhece uma situação de esclerose, com uma incapacidade das autoridades a renovar os seus rostos, a trazer novas concepções do poder, a reformar o poder e a mudar os paradigmas que estruturam a organização e a gestão do Estado moçambicano desde 42 anos.

Para ler a segunda parte desta seqüência dedicada aos desafios da democracia moçambicana, e ir mais longe sobre a questão específica da alternância política: Os desafios da democracia moçambicana (2/3): o passo indispensável da alternância política

Partager cet article
Repost0
Pour être informé des derniers articles, inscrivez vous :
Commenter cet article