Os desafios da democracia moçambicana (3/3): a descentralização, um tabu finalmente questionado
A democracia moçambicana está em obras desde a adopção de reformais constitucionais em 1990 e da assinatura do Acordo de Roma em 1992 que acabou com a guerra civil. Faz quase 30 anos que esta democracia não acaba de construir-se, pois o partido no poder abriu o regime mas nunca deixou a possibilidade duma alternância. Esta ausência de alternância traduz-se, como já o vimos mês passado (Os desafios da democracia moçambicana (2/3): o passo indispensável da alternância política), por muitos problemas de autoritarismo de Estado, corrupção, lentor administrativo, problema de representatividade dos cidadãos e de governação. Esta situação deixa difícil a construção laboriosa dum Estado de direito, pois, como o tínhamos visto há dois meses (Os desafios da democracia moçambicana (1/3): a laboriosa constituição de um Estado de direito), a dominação do partido-Estado impõe a intolerância política e as práticas clientelistas em vez da liberdade de expressão, da pluralidade eletiva, da neutralidade administrativa e da promoção do interesse geral. A esta falta de representatividade dos cidadãos ao nível nacional e a esclerose política, deve-se responder pela uma primeira fase de abertura pelo menos ao nível local e regional, onde expressões de irredentismo podem, ao longo termo, desestabilizar a unidade nacional no caso do governo não ouvir as aspirações do(s) povo(s) de Moçambique. A descentralização é então um dos grandes desafios do democracia moçambicana.
A descentralização, visto pela Renamo como um modo de partilhar o poder
Talvez é porque eles entenderem que é por enquanto a única janela aberta pela qual eles podem pretender obter uma partilha do poder ou assumir um papel de contra-poder, os dirigentes da Renamo reclamam desde as eleições gerais de 2014 o direito a governar pelo menos nas regiões onde tiveram uma maioria de votos... o que deve passar no mínimo por uma decisão presidencial de nomear governadores provinciais renamistas, e no melhor dos casos, por um novo Ato de descentralização, seja por lei ou por reforma da Constituição – para permitir a transformação das províncias de Moçambique, atualmente Órgãos Locais de Estado de acordo com a Lei 8/2003 de 19 de Maio, em autarquias (com o executivo escolhido sem intervenção do poder nacional, mas também com finanças autónomas).
Por isso também a Renamo voltou à violência em 2015-2016, sem sucesso como já tivemos a ocasião de o analisar em Agosto de 2016 (Moçambique: a Renamo e a subida da violência, uma estratégia perdedora), mas com barulho e vítimas. Os cidadãos moçambicanas ficam presos entre um partido de oposição que não atuou ainda o desmembramento do seu ramo armado, e um governo autoritário que não dialoga sinceramente e pretende governar sempre, sem perspetiva de alternância. O estabelecimento de um cessar-fogo no final do ano passado, na perspetiva política das eleições autárquicas deste ano, criou de novo esperanças, tal como o fez em 7 de Fevereiro passado o anuncio do chefe do Estado relativo ao novo pacote de descentralização, sobre o qual havemos de voltar. Para ir mais longe sobre a atualidade política relativa à descentralização, este artigo de Março de 2017: Crise pós-eleitoral, descentralização e confrontos militares: 2017 será o ano da paz em Moçambique? A situação militar bloqueada e as pretensões renamistas para as autárquicas convencerem o velho lider do primeiro partido de oposição de deixar por um tempo as armas, e até as suas reivindicações.
Em 4 de Maio de 2017, questionado sobre a pretensão da Renamo de impor a nomeação dos governadores provinciais em 6 províncias do Centro e do Norte do país (uma promessa da Renamo formulada há tantos meses que poucos ainda acreditam), Afonso Dhlakama diz, depois de ter confirmado uma trégua sem prazo: « A nomeação de governadores não está descartada, mas já não é prioridade. » Reconhecendo que a descentralização é um processo com complexidade tal que poderá levar anos, ele acrescentou, referindo-se ao grupo de diálogo governo-Renamo dedicado à descentralização: « Porém, tudo pode falhar, mas gostarámos que, em 2019, os governadores provinciais fossem eleitos. » A estratégia da Frelimo sendo, parece bem, de ganhar tempo multiplicando as promessas de negociações, as comissões de diálogo, os anúncios, este desejo, no entanto, pode ter sido satisfeito com o anuncio do Nyusi em 7 de Fevereiro. Portanto, a Renamo reduziu suas reclamações sobre este assunto porque deve ter identificado outros interesses políticos de curto-prazo, por exemplo nas autarquias deste ano, nas quais já anunciou querer participar. Sendo vitorioso sobre o dossier da descentralização ou não, a Renamo ia para as autárquicas a partir do momento onde é nos seus interesses políticos. Ilustra a falta de visão deste partido para o país, como já o tinha ilustrado a inconstância das suas reivindicações e seguir das eleições de Outubro de 2014. Para lembrar-se desta seqüência, este artigo de Março de 2015: Lei de descentralização em Moçambique: a Renamo entre inconstância e incompetência
No discurso, a Frelimo, já há mais de dez anos, aparece favorável à descentralização. « Apesar da retórica de descentralização nos últimos 10 anos, a realidade mostra que houve tendências recentralizadoras que limitaram a relativa autonomia e espaço deliberativo dos municípios e governos distritais. » Isto é o que explica um painel de atores da sociedade civil moçambicana (IESE, MASC, CIP e OMR), num documento publicado em Agosto de 2016, intitulado Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique? O documento continua assim: « Novos diplomas legais aprovados em 2012 e 2015 [Lei de Base de Organização e Funcionamento da Administração Pública – Lei Nº 7/2012, de 8 de Fevereiro e Decreto Nº 21/2015, de 9 de Setembro sobre a Estrutura Orgânica do Governo Provincial] aumentaram o grau do controlo pelo governo central. Embora mantendo uma retórica populista de descentralização, as regras do jogo para a descentralização, formais e informais, foram alteradas a favor de um regresso a uma prática de governo mais centralista, também por meio de desconcentração. Sem olhar para os custos fiscais e a questão de sustentabilidade, aumentou-se, de uma forma incoerente, quer o número de autarquias, de 33 para 53, bem como o dos distritos (de 128 para 152). Isso aumentou o potencial de conflitualidade entre os municípios e os distritos, particularmente em locais onde existe uma dupla administração (do Estado e do município) na mesma circunscrição territorial. »
É esta a situação de Moçambique atualmente. Passos para trás em termos de descentralização, num contexto em que reclamações para conceder mais poder ao nivel regional e local nunca foi mais forte. Talvez o novo Ato de descentralização em curso de tradução eleitoral irá trazer mudanças nesse assunto.
Como pensar uma reforma da descentralização em Moçambique?
Mais longe, o mesmo documento das 4 ONG: IESE, MASC, CIP e OMR, propõe pistas de reformas para melhorar a descentralização existente: « Nos 30 casos em que as vilas-sede distritais já foram transformadas em autarquias locais, a circunscrição territorial deveria ser alargada para abranger todo o territorial distrital. Nos casos como Nacala-Porto, Beira, em que o distrito coincide territorialmente com a autarquia, a administração do distrito deve ser dissolvida [para poupar] consideráveis recursos fiscais, nomeadamente despesas de funcionamento, pois [evitaria] duas administrações nas zonas já autarcizadas. » As autarquias de oposição (4 então governadas pelo MDM) reclamam em vão a transferência das responsabilidades (e dos fundos) que ainda são do Estados (ou dos serviços desconcentrados do Estado) relativas ao setor da saúda e ao da instrução básica. Enfim, até nas questões relativas à descentralização ao nivel local iniciada em 1997-1998, ainda há atraso nas adaptações a operar para ter uma administração e uma governação mais eficiente. No entanto, as atenções focalizam-se sobre a questão da descentralização ao nivel provincial, por razões políticas e partidárias.
As vontades e as manobras da Renamo, que quer o poder em províncias onde reivindica a vitória nas sucessivas eleições nas últimas eleições, não fazem duvidar das ambições de poder do primeiro partido de oposição. Mas, além desse aspecto, a descentralização aparece como um passo político indispensável, para pelos menos duas razões: 1) responder a frustrações identitárias de populações do Centro e do Norte do país que nunca se reconheceram realmente no governo de Maputo e com os povos do Sul de Moçambique, e então garantir ao longo termo a paz e a unidade de Moçambique; e 2) consolidar a democracia moçambicana em construção, e desbloquear uma vida política nacional esclerosada por 40 anos de partido único e de praticas clientelistas.
Além das reivindicações políticas da Renamo, então, há uma verdadeira reforma de descentralização a realizar em Moçambique, para democratizar e melhorar o funcionamento das estruturas descentralizadas e desconcentradas do Estado. Em particular no plano fiscal, pois as autarquias faltam cruelmente de meios próprios e de recursos tributárias, e é preciso também lembrar que as províncias não têm todas os mesmos meios; por exemplo, Maputo (cidade e província) alcança mais de 82% da receita fiscal nacional onde a grande maioria das despesas em sectores-chave, como a saúde, é gasta. No mesmo documento de Agosto de 2016 (Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique?), o quartet da sociedade civil (IESE, MASC, CIP e OMR) explicava: « É importante sublinhar que a actual fórmula para calcular a alocação de fundos, usando apenas população e território, ignora completamente o potencial económico e tributário de um governo local (e provincial) e o grau de desenpenho por estes na arrecadação das receitas a partir da base tributária própria. » É preciso tomar em conta também, pelo menos, o direito de royalties de mineração, as receitas provenientes do uso da fauna e florestas, as necessidades em investimentos públicos e despesas de capital, os desastres naturais ocasionais, etc.
Além disso, os autores do documento acrescentam: « A interacção entre níveis superiores e os governos locais (distritais e municipais) segue [...] grandemente uma lógica partidária e não funcional, em vez de ser orientada nos princípios de desempenho, eficácia, efectividade e transparência de governação. Essa lógica favorece a exclusão política, mas também o clientelismo e a corrupção descentralizada e a captura de benefícios pelas elites locais, muitas vezes à margem da lei. Pode se constatar o falhanço das instituições do Estado na auditoria, inspecção e combate à corrupção, no que se refere aos governos locais, cujas elites são protegidas politicamente, a custo do bom desempenho da administração local. »
E exemplos não faltam. Por exemplo, em 4 de Maio de 2016, o presidente do Conselho municipal de Lichinga (província de Niassa), Saíde Amido, foi detido por motivos de má gestão e desvios de fundos – desde 2014, esta figura influente do partido Frelimo, tal como outras, foi acusado de usurpar terrenos onde deviam ser construídas casas para populações carentes. No entanto, numa reportagem de Junho de 2016 no canal moçambicano STV, a ministra da Administração Estatal e Função Pública, Carmelita Namashulua, defendeu que a condenação por corrupção do edil de Lichinga não configura um problema de governação(!) porque a pena aplicada não o impede de continuar a exercer o seu trabalho (legalmente não, mas moralmente...); segundo ela, Saíde Amido só vai sofrer medidas administrativas. Na qualidade de responsável pela tutela dos municípios, a postura da ministra é altamente criticável, por causa da tolerância exprimida em relação a práticas de corrupção...
Outro exemplo, em Agosto de 2016: o presidente Nyusi declarou então que ia a « achar um lugar » para Sábado Malendza, indiciado de ter desviado cerca de 10 milhões de meticais no momento que desempenhava as funções de administrador de Vanduzi, na província de Manica. Sabendo que ele pode ter cometido um crime de corrupção e lesado o Estado, esta notícia chocou muitas pessoas, pois isto confirmou o pouco de interesse que tem o próprio chefe do Estado pelas instituições de Justiça do seu país e pela prestação de contas públicas.
O mesmo documento de Agosto de 2016 (Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique?) até acrescenta, confirmando a falta de transparência e a impunidade, acerca das estruturas descentralizadas: « Verificam-se excessivas demoras e irregularidades na entrega de documentos de grande importância para o cidadão (licenças, DUATs, certidões etc.) e na prestação de serviços, incluindo irregularidades de cobrança de "luvas" (suborno), sem os órgãos de tutela e da auditoria terem feito esforços palpáveis para mudar esta situação. Desde a criação das autarquias locais em 1997, nunca foram tornadas públicas as Contas de Gerência autárquicas auditadas. E o Instituto Nacional de Normalização e Qualidade (INNOQ) ainda não descobriu os governos locais como objecto das suas intervenções. O mesmo pode dizer-se relativamente aos serviços administrativos, os quais necessitam urgentemente de padrões aceitáveis e normas transparentes de qualidade e celeridade, bem como a monitoria do desempenho. »
Em que consiste o passo anunciado do próximo Acto de descentralização?
Finalmente chegou aquele momento onde, a conversar horas e horas, dias e dias, semanas e semanas, meses e meses, governo e Renamo chegaram a um compromisso sobre o assunto de descentralização, mostrando que, de uma certa forma, o tabu foi quebrado – apesar da reforma ainda ter que passar pela via legislativa para concretizar-se, o que não é feito ainda.
Em 22 de Janeiro de 2018, o presidente Nyusi anunciou então desde o palácio da Ponta Vermelha o novo Acto de descentralização que entrará em vigor em 2018, ao nível das autarquias locais, em 2019 ao nível provincial, e em 2024 ao nível dos distritos. É criado duas novas escalas de descentralização, o Distrito, cujo o Administrador Distrital é o chefe executivo, e o presidente da Província. Os dois não são eleitos diretamente pelo povo, mas escolhidos pelo partido chegado em primeiro lugar nas eleições provinciais ou distritais. Também acrescenta-se a criação de um Secretário do Estado, que vai exercer as funções de soberania ao nível das província – o equivalente do Prefeito em França, duma certa forma.
O conteúdo do acordo não é perfeito, bem longe disso, e de fato, até é mais o resultado dos interesses específicos à Renamo e à Frelimo do que a tradução duma pesquisa do bem comum. Difícil dizer se a democracia saia amadurecida deste episódio, porque esta seqüência permite sair de maneira definitiva (ou quase) do ciclo de violência que afetava o país estes últimos anos, mas ao mesmo tempo, este acordo não deixe de ser o pequeno compromisso entre dois partidos ambiciosos, não um trabalho de concertação com todos os movimentos políticos e a sociedade civil moçambicana. Os consensos deste novo pacote da descentralização foram feitos tendo em conta a partilha do poder, não como um mecanismo para permitir o desenvolvimento da nação, o empuderamento das comunidades, ou reforçar a democracia.
Um exemplo disto é o desaparecimento da eleição direta dos presidentes dos municípios. Este prerrogativo popular foi tirado sem razão, só por decisão bilateral da Frelimo e da Renamo. Agora, tal como será escolhido o presidente provincial (pelas Assembleias regionais), o presidente municipal será escolhido pelo primeiro partido presente no Conselho municipal. Como o escreveu um bloguista naquela altura, chamado « Periclés Maquiavel », numa página de bloguistas-cidadãos ativos O Olho do Cidadão: « Será que a eleição directa dos presidentes dos municípios punha/colocava em causa a paz em Moçambique e estava relacionada com os conflitos militares entre o governo e a Renamo? O novo pacote de descentralização aumenta/consagra os poderes do chefe do Estado, do conselho dos ministros, dos líderes partidários mas reduz o poder do povo. Há mais dois orgãos autónomos na organização e funcionamento (Província e Distrito) mas menos poder decisório para o povo. » E o bloguista até acrescentava: « O presidente Nyusi e o líder da Renamo não devem se aproveitar do problema da paz para mudarem o que não lhes agrada a bel-prazer. »
São ai as principais mudanças, e os detalhes serão conhecidos com o pacote legislativo que permitirá a adopção deste novo Acto de descentralização. Apesar dos defeitos da reforma (de fato, o poder de escolha dado aos partidos chegados em primeiro lugar nas assembleias dá uma vantagem enorme aos dois partidos principais e históricos que são a Renamo e a Frelimo), a dimensão simbólica deste compromisso é forte, e não faz dúvidas que a imagem do presidente e do seu primeiro oponente saia reforçada. A implementação deste novo pacote não deixará de ser onerosa, na medida em que vai criar muitas funções novas, sem valor produtiva considerável; serão postos de trabalho visando mais a acomodação política do que a produção de bem ou de serviço. Mas o clientelismo sairá vitorioso, mais uma vez.
O que se pode esperar, é que a responsabilidade dos presidentes executivos ao nível municipal, distrital e regional talvez trarão em Moçambique uma cultura parlamentar que ainda falta. Pois ao nível nacional, o sistema está fechada pela dominação duma Frelimo que não quer deixar o poder e que perpetua um sistema presidencial puro. Dum outro lado, as candidaturas independentes ficam difícil, e aparece óbvio que, deste pacote de descentralização, são os partidos políticos que saiam a ganhar. Como o dizia ainda o bloguista « Pericles Maquiavel » num outro post no Olho do Cidadão, naquela altura: « Aquelas aventuras políticas como Daviz Simango [em 2008], do Araújo [em 2011] de concorrem como independentes ficam para história. Nyusi e Dhlakama querem acabar com as estrelas políticas e grandes protagonismos no interior dos partidos. »
A descentralização, paso necessário mas não suficiente, finalmente questionado!
Claro, mesmo com a solução negociada os dois principais partidos moçambicanos, um acto de descentralização não resolverá todos os problemas em Moçambique. O risco de guerra seria muito reduzido, e a oposição seria em situação de responsabilidade que teria a vantagem de a moderar, mas também de a credibilizar aos olhos dos cidadãos. O líder da oposição multiplicou desde 2012 as declarações guerreiras, e falou várias vezes desde 2014 que não reconhecia os resultados das eleições e que não desistiria de ter o poder, ou pelo menos de poder nomear os governadores renamistas nas províncias onde teve uma maioria de votos; ele poderia então parar com sua retórica belicista, e provavelmente o fim dos confrontos armadas poderia ajudar o processo de integração das forças renamistas no exército moçambicano.
No entanto, a autonomização das províncias e a melhoria da descentralização não resolveriam nem asseguraria a famosa despartidarização do Estado, que ainda está em suspenso, como não significaria o fim da luta pela transparência das contas públicas, contra a corrupção, e sobretudo contra práticas clientelistas, que hoje são bem conhecidas com a Frelimo, mas que seriam tão praticadas com a Renamo no caso do principal partido de oposição governar províncias, ai não há dúvidas: a Renamo está a espera do poder há muito tempo, e irá « oferecer » cargas importantes, honoríficas, subvenções, privilégios, aos amigos, aos apoios, aos pilares do partido... A governação interna da Renamo e suas práticas políticas dão claramente a pensar que os seus abusos seriam similares aos dos políticos frelimistas. Tal dúvidas podêm também ser feitas, numa certa medida, sobre o MDM e suas práticas de governação interna.
Por isso, se a descentralização parece hoje um passo necessário para assegurar a paz e apoiar a democratização como o desenvolvimento do país, será ainda indispensável continuar a luta e a monitoria das políticas públicas, para promover a democracia e a justiça, a todos os níveis de governação. Ainda mais porque o passo atual de descentralização corresponda mais, já o dissemos, a uma partilha do poder do que a um acto relevante e construtivo; o espírito e o processo de elaboração foram ruins desde o início, porque envolveram somente dois partidos cujas práticas não deixam a confiar nas suas decisões. Aliás, o acordo foi pensado de tal maneira pela Frelimo que o governador provincial, enquanto já não é designado somente pelo presidente da República (ele tem que escolher o candidato do primeiro partido na assembleia regional), acaba, é o paradoxe, fragilizada pela esta reforma, pois vê a criação dum outro orgão, o Distrito, com mais poderes, ou seja, foi esvaziada a instituição antes de permitir ao inimigo de a conquistar. E na sua ambição, a Renamo aceitou este compromisso porque enfim chegou para Dhlakama e seus próximos uma novo ocasião de conquistar uma pouco mais de poder. Os poderes do governador ainda são mais redutos pela criação do Secretário do Estado. Como o escreveu na sua edição do 8 de Fevereiro passado o jornal mediaFAX: « Governadores provinciais eleitos vão permanentemente ser policiados por um Secretário de Estado Provincial nomeado centralmente. »
Pelo menos a questão da descentralização colocou-se no espaço público e está, lentamente, a ser questionado. Iniciativas a-partidárias como a Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique? do quarteto da sociedade civil são bons sinais que convidam todos os atores do debate a reflectir sobre esta questão de forma neutra, e que mostram que, apesar das tensões entre os dois grandes partidos históricos, ainda é possível fazer propostas credíveis e relevantes neste assunto. O triste exemplo de Gilles Cistac, baleado na rua em Maputo em Março de 2015 depois de ter argumentado em favor duma reforma de descentralização que podia passar sem mudança da Constituição, dava o sinal contrário, deixando o país e o debate público numa situação bloqueada, como o tínhamos analisado em Janeiro de 2016: Debate sobre a descentralização (1/2): Moçambique no impasse político. Em Julho de 2017, com perspectiva as autárquicas de 2018, o governo anunciou finalmente que, tomando conta das dificuldades económicas e a insustentabilidade dos municípios, haveria uma interrupção no processo de municipalização no próximo ciclo eleitoral – pela primeira vez desde 1998.
Mencionando a coexistência de 21 línguas, e de várias culturas e religiões no país, Mia Couto, vencedor do Prémio Camões de 2013, explicava numa entrevista de Junho de 2015 dada ao organismo de imprensa francês AFP, que « Moçambique é um país que procura ser uma nação mas que se confronta a uma muito grande diversidade. [...] Havemos construído o nosso Estado, seguindo o modelo europeu de Estado único, centralizado. Era uma violência silenciosa: esquecemos as enormes diferenças entre o mundo rural e urbano, as pessoas em capacidade de gerir a modernidade e os outros. » Nesta lógica, um novo passo de descentralização é, diz o quarteto da sociedade civil no documento de Agosto de 2016, « um dos factores sine qua non para para uma paz mais sólida e sustentável, nomeadamente em sociedades com alto grau de diversidade étnica, cultural, de recursos, etc. » Sem servir motivos partidários, o que poderia resultar sobre uma fragmentação do próprio Estado, deve favorecer a democratização do país e a expressão da sua diversidade cultural e identitária. Não é só um assunto de segurança, para acalmar a Renamo, mas sim de democracia. E uma reforma relevante reforçaria esta expressão, porque facilitaria uma renovação da classe política, pelo menos ao nível local, daria um ar fresco às políticas públicas assumidas pelas províncias, e permitiria a novos rostos de aparecer na arena política, tal como o permitiu a fase de descentralização que, desde 1998, traduziu-se pela eleição direta dos presidentes dos Conselhos municipais. Definitivamente, a descentralização (uma descentralização bem feita, pelo menos) desbloquearia uma vida política nacional esclerosada por 20 anos de partido único e 20 anos de bipartidarismo esterílo.
Em conclusão?... O caminho ainda é grande
O assassinato em 4 de Outubro do edil de Nampula, Mahamudo Amurane, membro do MDM, ilustra ao que ponto ainda fica complicado em Moçambique os princípios de descentralização e de alternância política. A tensão política sucedeu aos confrontos que marcaram as relações entre a Renamo e o governo, em 2015 e 2016. As negociações entre os dois principais partidos moçambicanos continuaram a pesar da crise que conhece o MDM desde o caso Amurane e a saída esforçada do edil por ínterim, Manuel Tovoca, um mês a seguir. A situação ameaça a qualidade da campanha eleitoral das autárquicas que estão chegando, e já dá para ver que a situação de predominância da Frelimo e da Renamo vai permanecer a sair desta seqüência política. Os dois últimos anos, com a acalmia entre Nyusi e Dhlakama, ilustra os interesses comuns destes dois a ver o contexto de tensão e de bipartidarismo perpetuar-se, e os dois aproveitam para isto as fraquezas e os erros da liderança do MDM. Ao ver o tempo que demoraram a Frelimo e a Renamo a discutir, e ao ver o compromisso que saiu deste longo diálogo bilateral, obviamente não há nesses dois partidos uma vontade real do poder de descentralizar o regime ou de achar uma saída política sustentável, somente de partilhar o poder, para a Renamo, e manter-se no poder, para a Frelimo. Tanto como também não há vontade real sobre os assuntos de luta contra o clientelismo, pela pluralidade política e para a promoção do Estado de direito. Entre um poder autoritário e incapaz, e uma oposição que não consegue propor uma alternativa credível (e unida), constata-se infelizmente que o povo moçambicano, desde 1977, é refém dos dois partidos que são a Frelimo e a Renamo, incapazes de entender-se para assegurar a paz e oferecer um futuro melhor, neste país que já sofreu tanto da guerra. Este bipartidarismo esterílo nem deveria observar-se ainda. A lógica deveria ter sido a dissolução desses dois partidos: a Frelimo foi criado com objetivo a independência de Moçambique frente aos Portugueses, e quando Moçambique ficou independente (1974-1975), a Frelimo deveria ter sido dissolvido, para deixar lugar a uma certa diversidade de partidos; e a Renamo foi criado com objetivo de acabar com socialismo e, diz ele, impor a democracia, então quando o regime deixou a doctrine marxista (1989), quando chegou o multipartismo (1990) e quando foi assinado a paz (1992), o partido deveria ter sido dissolvido para deixar lugar a novos partidos, sem ramo armado.
Conseqüência: Moçambicanos têm por alternativa séria os dois partidos que foram atores diretos e principais da guerra civil, e que pretendam governar, sem vergonha nenhuma, e sem ter, desde 1992, iniciado qualquer trabalho de memória sobre as suas responsabilidades nesta página trágica da historia moçambicana ou na situação econômica e social do país desde a independência. « Um dos problemas da convivência política está na legitimação do poder, afirmava em Fevereiro de 2016 o docente universitário e analista político Alberto Ferreira. A legitimação da Frelimo e da Renamo está na historia. Nos pleitos eleitorais, enquanto o primeiro afirma que trouxe a independência, o segundo afirma que trouxe a democracia. Legitimam o que devia ser o povo a legitimar. » Aliás, numa entrevista à Lusa, a agência de informação portuguesa, em 10 de Junho de 2015, o autor Mia Couto acrescentava com muito clareza: « Nós ficamos muito tempo cativos de uma guerra e essa guerra não terminou totalmente. Quem fez a guerra não terminou totalmente. Quem fez a guerra continua armado e aceitou uma situação estranha e inaceitável, que é a ideia de uma força política com um braço armado. [O país] merecia uma governação melhor e também uma oposição melhor. »
A atualidade política deve ser seguida com atenção pelos Moçambicanos, pois além do risco de guerra civil e de confrontos, incluindo com a perspetiva das eleições autárquicas que irão trazer novas fraudes da Frelimo, exista também uma ameaça de instabilidade sobre as autoridades do Estado. É preciso lembrar que o continente africano já conheceu golpes de Estado frente à incapacidade dum governo a apagar tentativas de secessão – o exemplo mais recente sendo o Mali, em Março de 2012. Moçambique ainda não está ai, no entanto as tensões aparecidas em 2015-2016 entre a presidência Nyusi (e o seu estado-maior militar) e a « velha guarda » de oficiais e generais da Frelimo devem servir de aviso. Porque o drama seria de « acrescentar uma crise à crise » e de perder as tímidas realizações democráticas do país. Frente a esta esclerose política, a sociedade civil tenta exprimir-se em favor da paz, do diálogo e da democracia – ainda tentou o fazer na última eleição antecipada que ocorreu em Nampula, em Janeiro passado. Em particular em 2015 e 2016, nos tempos mais fortes de confronto entre forças armadas nacionais e milicianos renamistas, várias iniciativas para defender a paz em Moçambique aparecerem, e ilustram o grau de conscientização e de responsabilidade da sociedade civil moçambicana. Entre elas, esta campanha fotográfica promovida pela uma plataforma de bloguistas defendendo o direito das crianças moçambicanas a crescer num país em paz: Campanha da paz do Txeka.
Seria bom abrir uma nova página política e económica da história nacional, propondo um modelo de democracia e de governação sã e próprio ao Moçambique. Para o bem dos Moçambicanos, e o futuro das crianças de Moçambique, que merecem (o) melhor. Mas para isso, é preciso vontade política. Isto é que falta à classe política moçambicana.
O texto a seguir é extrato do documento intitulado Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique? publicado em Agosto de 2016, onde 4 organizações da sociedade civil signatárias (IESE, MASC, CIP e OMR) pretendem contribuir à reflexão sobre os caminhos para um processo de paz sustentável em Moçambique, uma paz que não seja apenas o calar das armas mas também uma boa governação geral da nação.
A crise atual, com vertentes militar, fiscal, económica, social e de confiança nacional e internacional sem precedentes, ilustra que Moçambique e os Moçambicanos não desfrutam plenamente dos benefícios económicos e sociais da Independência nacional. Perto da metade dos 41 anos de Independência foram anos marcados por conflitos armados, instabilidade e altos níveis de pobreza socio-económica e humana, apesar da riqueza do país em termos de recursos e apoio internacional.
Tomando em conta este contexto, partimos da premissa, segundo a qual a maneira como a economia e o Estado estão atualmente estruturados e são geridos faz parte das causas dos conflitos e das crises recorrentes. Consequentemente, é necessário repensar e reformar profundamente a organização e gestão da economia e do Estado. Ou seja, o sistema económico e a organização político-administrativa devem ser alterados para que, institucionalmente e em termos de políticas públicas, sejam capazes de responder cada vez mais aos anseios dos cidadãos e de todos os grupos sociais da sociedade moçambicana, com vista à construção de uma sociedade e uma economia mais inclusiva, justa e geradora do bem-estar. Isso implicaria o reconhecimento e a valorização do trabalho e esforço de todos Moçambicanos no processo da transformação dos recursos humanos, naturais, culturais, intelectuais, etc. em riqueza que beneficia a todos os Moçambicanos. Neste momento, a maneira como o Estado está estruturado e o poder político, económico e militar é exercido, dificulta o alcance destes objetivos. Por conseguinte, pode-se concluir que a presente estrutura do Estado e as modalidades de governação em prol dos interesses hegemónicos do partido no poder constituem causas de conflitos em vez de soluções.
Achando que a crise atual constitui uma grande oportunidade para “reinventar” Moçambique em prol de uma Paz sustentável, que é a condição sine qua non para a produção do bem-estar e do desenvolvimento de todos os Moçambicanos, propomos que se reconheça a relevância de quatro processos estratégicos interligados para uma Paz duradoura. No nosso entender, estes processos são imprescindíveis e deveriam ser tomados em conta não apenas pelos partidos políticos, mas também por toda a sociedade moçambicana como um tudo:
1. Negociação do cessar-fogo e reestruturação das forças de defesa e segurança, sob premissas não partidárias;
2. Repensar as fundações e as regras do jogo do sistema político-administrativo, os serviços públicos, o sistema tributário, a economia, o setor da justiça, o sistema eleitoral, etc. bem como as inter-relações entre estes
3. Efetuar emendas à Constituição de 2004, refletindo os resultados a emanar dos processos 1 e 2;
4. Investir numa cultura de cidadania baseada em direitos humanos universais da tolerância, do respeito pelo outro, e do reconhecimento que egoísmos individuais e coletivos e a exclusão ou marginalização cultural, social, económica e política são causas principais de conflitos e de guerra.
Contribuições para uma Paz Sustentável em Moçambique – Que Reformas de Descentralização para Moçambique? (2016)