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O acendedor de lampiões

Em Moçambique, como manter a memória colonial? A ideia de uma reconversão da Vila Algarve em Museu da Colonização

10 Décembre 2018 , Rédigé par David Brites Publié dans #Moçambique, #História, #Sociedade

Em 7 de Setembro passado, comemorou-se a assinatura dos Acordos de Lusaka, que teve lugar em 1974, entre o Estado português e a Frente de Libertação de Moçambique. O perfil do Estado moçambicano, controlado desde a independência pelo partido Frelimo, deixou uma herança considerável sobre a luta pela descolonização e o papel do movimento armado conduzido por Eduardo Mondlane e Samora Machel, mas fora da propaganda permanente, os mais jovens, que representam a maioria da população moçambicana, mal conheçam este período, e ainda menos o tempo colonial de ocupação português. Faz sentido sensibilizar sobre fases históricas de repressão, de colonização, de discriminações, pois as sociedades atuais também são herdeiras das partes sombras da História, e é preciso pensar as relações inter-raciais, as relações de poder em Moçambique. A História como matéria científica deve servir a não perpetuar erros do passado e trabalhar na memória de cada um.

Desta reflexão surge a proposta seguinte, neste Moçambique que tem tão poucos lugares de comemoração histórico (fora dos lugares turísticos tipo o forte da Ilha de Moçambique), de transformar o sítio da Vila Algarve, em Maputo, em Museu (ou Memorial) da Colonização.

A história de Moçambique, é um tempo de colonização longo de quatro séculos e meio, na costa inicialmente, depois ao longo das rotas fluviais e pelo meio dos prazos, essas vastas terras exploradas desde o século XVII por aventureiros portugueses independentes, no centro e no norte do país. A implementação portuguesa foi muito lente, mas foi uma realidade para muitos povos ao norte do rio Zambézia muito cedo. A história acelera-se no século XIX, quando os Europeus decidem a partilha do continente.

Os reinos locais não sobrevivam a esta « corrida » que opõe os Portugueses e os Britânicos na região: o poderoso reino dos Ngunis (etnia Zulu), no extreme-sul, entra em colapso logo em 1879; os povos do vale do Zambeze e do Lago Niassa são conquistados nos anos 1880 e 1890, ao preço de vivas tensões diplomáticas e militares entre Londres e Lisboa; o Império de Gaza (etnia Tsonga), no sul, cai em 1895; a singular República militar de Maganja da Costa, construída por escravos-soldados dum antigo prazo na Zambézia, é destruída em 1898; e o glorioso reino do Monomotapa (etnia Shona), já mais ou menos submetido ao Portugal desde 1629, desaparece oficialmente em 1902. A etnia Makonde, localizada nos planaltos do nordeste, à fronteira com a Tanzania alemã, é conquistada nos anos seguintes. O Moçambique precolonial morreu. Em 1898, a capital é transferida da Ilha de Moçambique, no norte do país, para Lourenço Marques (a actual Maputo), uma cidade criada do nada no extreme-sul de Moçambique para consolidar a presença portuguesa frente ás ambições britânicas e aproveitar as oportunidades comerciais que oferecia a nova realidade sul-africana.

A história de Moçambique, é também a revolta de Mueda, o nome desta pequena localidade na região de Cabo Delgado, violentamente reprimida pelos Portugueses em 1960. A etnia Makonde tornou-se depois um pilar do braço armado da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), criada em 1962 por Eduardo Mondlane. A história de Moçambique, é, claro, a guerra de independência iniciada em 1964, que vai durar dez anos, até a Revolução dos Cravos em Portugal. Em 1974, os acordos de Lusaka acabam com a guerra e iniciam o processo de independência, que terminará no ano a seguir. Uma independência que deve muito ao apoio da União Soviética e de Cuba, uma aliança que tornou-se possível após o IIndo Congresso da Frelimo na qual os seus membros adotaram a doutrina marxista. Enquanto isso, Eduardo Mondlane foi assassinado em 1969 na Tanzânia, vítima de uma bomba. Samora Machel, que o sucedeu como chefe da Frelimo em 1970, foi o primeiro presidente da República de Moçambique em 1975, e ocupou esta carga até sua morte, em Outubro de 1986, em um acidente de avião cuja origem é atribuída pelos Moçambicanos ao regime sul-africano, Moçambique sendo um grande adversário á política de apartheid implementado por Pretória.

Museu Nacional de Etiópia, em Addis-Abeba.

Qual lugar para a memória no continente africano?

Os maiores e mais famosos museus no mundo sendo na Europa e em América do Norte (o Louvre em Paris, o Museu do Ermitage em São-Petersburg, o Metropolitan Museum of Art em Nova-York, os Museus do Vaticão...), fora duns em Ásia (o Museu nacional de China, em Pekin, e o Museu nacional de Tokyo, no Japão, por exemplo), a África parece ter deixado de lado esta forma de comemoração da História e dos artes. Talvez porque durante muito tempo as formas de transmissão foram mais orais, as sociedades africanas nem desenvolveram os museus tanto como na Europa, onde a sociedade pós-industrial tenta museuificar as coisas do passado (as vezes até bairros inteiros).

No entanto, encontram-se vários museus, menos conhecidos mas não menos interessantes (às vezes com menos meios...), no continente africano. Uma das cidades africanas com mais museus é a capital da Etiópia, Addis-Abeba, na qual pode-se achar o Museu Nacional (cuja a secção arqueológica inclua uma reconstituição do esqueleto da Lucy, o primeiro ser humano identificado), o Museu de Etnologia (pedagógica sobre as etnias e as práticas culturais na Etiópia), e o Museu dos Mártires do Terror Vermelho, que trata da memória à volta da ditadura comunista (1977-1991).

Museu dos Martírios do Terror Vermelho, em Addis-Abeba.

Museu dos Martírios do Terror Vermelho, em Addis-Abeba.

Outros países propõem museus no continente. A África do Sul é um deles, em particular com o Museu do Apartheid em Johannesburg. Também é possível visitar a antiga cadeia política chamada Constitution Hill, onde ficaram o Gandhi, como também o própria Mandela (antes de passar anos em Robben Island, perto da cidade do Cabo, que também visita-se).

Constitution Hill, em Johannesburg. Esta antiga cadeia do regime de Apartheid foi transformada em museu.

Constitution Hill, em Johannesburg. Esta antiga cadeia do regime de Apartheid foi transformada em museu.

Na ilha de Gorée, no Senegal.

Em outros lugares ainda, pode-se achar outras formas de comemoração, de memória e de preservação do passado. A seguir pode-se ver sucessivamente uma Casa dos Escravos na ilha de Goré, e a casa de infância do presidente Leopold Sedar-Senghor na aldeia de Joal, os dois sendo no Senegal. E também sinalização no famoso Caminho do Escravo (e a Porta de Não-Volta), em Ouidah, no Benim, onde um projeto de turismo memorial levado pelo próprio governo do Benim está em curso. Em outros lugares, notavelmente na costa de loeste do continente, pode-se achar sítios de comemoração sobre o trafico negreiro. Aqui em baixo, um exemplo na cidade de Cacheu, ne Guiné-Bissau.

Uma antiga Casa dos escravos, na ilha de Gorée, no Senegal, reconvertida em museu sobre o comércio dos escravos.

Uma antiga Casa dos escravos, na ilha de Gorée, no Senegal, reconvertida em museu sobre o comércio dos escravos.

No Caminho do Escravo, em Ouidah, no Benim. Aqui também, a memória sobre as páginas sombras da História é preservada.

No Caminho do Escravo, em Ouidah, no Benim. Aqui também, a memória sobre as páginas sombras da História é preservada.

Museu da Escravatura em Cacheu, na Guiné-Bissau.

Museu da Escravatura em Cacheu, na Guiné-Bissau.

Sem falar dos países da África do Norte, onde os museus são vários: só para mencionar uns deles, o Museu Egípcio do Cairo (com obras da Antiguidade), e o Museu Nacional do Bardo, em Tunis.

O exemplo do Museu arqueológico de Sousse, na Tunísia.

O exemplo do Museu arqueológico de Sousse, na Tunísia.

A Vila Algarve: salvaguardar o património arquitectural para preservar a memória

Situada no cruzamento entre a avenida Mártires da Machava e a avenida Ahmed Sekou Touré, a Vila Algarve é uma casa de tipo residencial, que foi construida em 1934 no centro da cidade de Maputo, então chamada Lourenço Marques. Foi lá que instalaram-se os serviços da polícia segreda e política portuguesa, a famosa PIDE (Polícia International e de Defesa do Estado), criada em 1945 e oficialmente substituída em 1969 pela Direção-Geral da Segurança (DGS), mas que realmente desapareceu em 1974 com a Revolução dos Cravos. Com a revolta de Mueda (1961) em Cabo Delgado e o início da guerra de descolonização (1964), a PIDE alargou a partir dos anos 60 as suas actividades. Confiscou então o edifício e usou-o como sua sede. Muitos combatentes da resistência foram ali torturados. Por esta razão, não há vontade nenhuma de salvaguardar o prédio. O poeta moçambicano José Craveirinha descreve experiências suas nesta casa em três das suas obras, e outras figuras famosas também foram torturadas lá, como por exemplo Rui Knopfli, poeta e jornalista português nascido em Moçambique, e Malangatana Ngwenya, artista e poeta moçambicano.

O monumento tem certo interesse arquitectural, pois os seus azulejos são notáveis, e constituem um raro exemplo de mosaicos decorados com motivos naturalistas do início do século XX, bem como de arquitetura historicista. O preservar teria como objetivo a valorização do património arquitectural, mas poderia também ter um outro alvo. Pois, em vez de deixar este edifício por ter sido um lugar de torturas, as autoridades poderiam o usar para valorizar a memória à volta da opressão portuguesa durante a colonização. Usar do próprio prédio onde ficava a PIDE e onde foram torturados supostos resistentes, seria um ato simbólico muito forte.

Por lembrança, em 1999, a Ordem dos Advogados de Moçambique adquiriu o imóvel e chegou a planear instalar a sua sede nele. O custo de reabilitação ficou estimado em 400.000 euros, por isso, mais tarde deixou os seus planos e cedeu o edifício ao Ministério da Cultura. Em nome do Ministério da Resistência, está previsto ser instalado lá um Museu da Libertação de Moçambique. E desde 2011, o mesmo está em fase de pré-selecção para uma lista de memoriais da cidade de Maputo. Um tal projeto de Museu da Libertação já seria uma boa forma de salvaguardar o monumento como também de preservar a memória. No entanto, tendo em conta a grande propensão do Estado moçambicano a « recuperar » a memória à volta da luta pela descolonização em favor da propaganda frelimista, esta advocacia convida os cidadãos de Maputo a mobilizar-se, não para um lugar à glória dos combatentes da liberdade, mas um sítio de comemoração à volta das vítimas do regime de opressão e de ocupação portuguesa; entram também em conta as vítimas da PIDE e da repressão durante a guerra, mas não só. Ou propor um Museu da Colonização e da Descolonização, mas não só da luta frelimista, senão é ter o risco que um tal lugar torna-se mas um ferramenta de propaganda do que de trabalho de memória para as gerações futuras.

O edifício da Villa Algarve, em Maputo.

O edifício da Villa Algarve, em Maputo.

Edição de Abril de 2017 do jornal Sol do Índico.

O Portugal ocupou durante séculos o país, e a cidade de Maputo ficou várias décadas sobre ocupação, depois da sua criação sobre o nome de Lourenço Marques, em 1898. O regime português sobre o que era então a África oriental portuguesa, constituiu uma ocupação racista e violenta. Um dos exemplos mais ilustrativas dessa realidade é o estatuto do Indígena que existia então nas colónias portuguesas. A sua primeira versão foi o Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, de 1926. Foi completada pelo Acto Colonial de 1930, pela Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma Administrativa Ultramarina, de 1933, e finalmente pelo Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por decreto-lei em Maio de 1954 e que era uma lei visando a « assimilação » dos indígenas na cultura colonial ocidental. Criou-se então três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos. Negros e mulatos considerados como « assimilados » tinham que responder a certos critérios (saber ler e escrever, vestirem-se e professar a mesma religião que os Portugueses, manter padrões de vida europeus...). Se o estatuto foi abolido em 1961 com reformas introduzidas por Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, com objetivo permitir aos indígenas um melhor acesso à cidadania portuguesa, discriminações sempre perpetuaram-se, até 1974. Esta relação de dominação malsã, racista e de opressão, é descrita por parte no livro Um paraíso enganosa, publicado em 2013 pelo autor sueco Henning Mankell.

Esta visão onde o modo de vida dos Europeus é considerada como superior, tal como os comportamentos racistas de brancos e mulatos com negros, ainda são realidades no Moçambique de hoje. Por isso é importante trabalhar, com os jovens e os menos jovens, sobre a História e lembrar que, em nome de valores racistas, foram cometidas violências e discriminações desumanas. « Ainda estamos a procura da nossa identidade, declarava o famoso autor moçambicano Mia Couto, entrevistado em Junho de 2015 pelo organismo de imprensa francês AFP. Sou o resultado de contradições profundas: sou um científico que escreve, um escritor numa sociedade oral, um Branco num país de Africanos. […] A pesquisa da minha própria identidade obriga-me a viajar dentro do meu próprio país. » É esta compreensão da história e das interacções dos povos moçambicanos, dos Moçambicanos e dos Portugueses, as raízes da nação moçambicana (e também dos seus problemas), que é preciso aprofundir. É este, finalmente, o nosso assunto.

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