Em Moçambique, como manter a memória colonial? A ideia de uma reconversão da Vila Algarve em Museu da Colonização
Em 7 de Setembro passado, comemorou-se a assinatura dos Acordos de Lusaka, que teve lugar em 1974, entre o Estado português e a Frente de Libertação de Moçambique. O perfil do Estado moçambicano, controlado desde a independência pelo partido Frelimo, deixou uma herança considerável sobre a luta pela descolonização e o papel do movimento armado conduzido por Eduardo Mondlane e Samora Machel, mas fora da propaganda permanente, os mais jovens, que representam a maioria da população moçambicana, mal conheçam este período, e ainda menos o tempo colonial de ocupação português. Faz sentido sensibilizar sobre fases históricas de repressão, de colonização, de discriminações, pois as sociedades atuais também são herdeiras das partes sombras da História, e é preciso pensar as relações inter-raciais, as relações de poder em Moçambique. A História como matéria científica deve servir a não perpetuar erros do passado e trabalhar na memória de cada um.
Desta reflexão surge a proposta seguinte, neste Moçambique que tem tão poucos lugares de comemoração histórico (fora dos lugares turísticos tipo o forte da Ilha de Moçambique), de transformar o sítio da Vila Algarve, em Maputo, em Museu (ou Memorial) da Colonização.
A história de Moçambique, é um tempo de colonização longo de quatro séculos e meio, na costa inicialmente, depois ao longo das rotas fluviais e pelo meio dos prazos, essas vastas terras exploradas desde o século XVII por aventureiros portugueses independentes, no centro e no norte do país. A implementação portuguesa foi muito lente, mas foi uma realidade para muitos povos ao norte do rio Zambézia muito cedo. A história acelera-se no século XIX, quando os Europeus decidem a partilha do continente.
Os reinos locais não sobrevivam a esta « corrida » que opõe os Portugueses e os Britânicos na região: o poderoso reino dos Ngunis (etnia Zulu), no extreme-sul, entra em colapso logo em 1879; os povos do vale do Zambeze e do Lago Niassa são conquistados nos anos 1880 e 1890, ao preço de vivas tensões diplomáticas e militares entre Londres e Lisboa; o Império de Gaza (etnia Tsonga), no sul, cai em 1895; a singular República militar de Maganja da Costa, construída por escravos-soldados dum antigo prazo na Zambézia, é destruída em 1898; e o glorioso reino do Monomotapa (etnia Shona), já mais ou menos submetido ao Portugal desde 1629, desaparece oficialmente em 1902. A etnia Makonde, localizada nos planaltos do nordeste, à fronteira com a Tanzania alemã, é conquistada nos anos seguintes. O Moçambique precolonial morreu. Em 1898, a capital é transferida da Ilha de Moçambique, no norte do país, para Lourenço Marques (a actual Maputo), uma cidade criada do nada no extreme-sul de Moçambique para consolidar a presença portuguesa frente ás ambições britânicas e aproveitar as oportunidades comerciais que oferecia a nova realidade sul-africana.
A história de Moçambique, é também a revolta de Mueda, o nome desta pequena localidade na região de Cabo Delgado, violentamente reprimida pelos Portugueses em 1960. A etnia Makonde tornou-se depois um pilar do braço armado da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), criada em 1962 por Eduardo Mondlane. A história de Moçambique, é, claro, a guerra de independência iniciada em 1964, que vai durar dez anos, até a Revolução dos Cravos em Portugal. Em 1974, os acordos de Lusaka acabam com a guerra e iniciam o processo de independência, que terminará no ano a seguir. Uma independência que deve muito ao apoio da União Soviética e de Cuba, uma aliança que tornou-se possível após o IIndo Congresso da Frelimo na qual os seus membros adotaram a doutrina marxista. Enquanto isso, Eduardo Mondlane foi assassinado em 1969 na Tanzânia, vítima de uma bomba. Samora Machel, que o sucedeu como chefe da Frelimo em 1970, foi o primeiro presidente da República de Moçambique em 1975, e ocupou esta carga até sua morte, em Outubro de 1986, em um acidente de avião cuja origem é atribuída pelos Moçambicanos ao regime sul-africano, Moçambique sendo um grande adversário á política de apartheid implementado por Pretória.
Qual lugar para a memória no continente africano?
Os maiores e mais famosos museus no mundo sendo na Europa e em América do Norte (o Louvre em Paris, o Museu do Ermitage em São-Petersburg, o Metropolitan Museum of Art em Nova-York, os Museus do Vaticão...), fora duns em Ásia (o Museu nacional de China, em Pekin, e o Museu nacional de Tokyo, no Japão, por exemplo), a África parece ter deixado de lado esta forma de comemoração da História e dos artes. Talvez porque durante muito tempo as formas de transmissão foram mais orais, as sociedades africanas nem desenvolveram os museus tanto como na Europa, onde a sociedade pós-industrial tenta museuificar as coisas do passado (as vezes até bairros inteiros).
No entanto, encontram-se vários museus, menos conhecidos mas não menos interessantes (às vezes com menos meios...), no continente africano. Uma das cidades africanas com mais museus é a capital da Etiópia, Addis-Abeba, na qual pode-se achar o Museu Nacional (cuja a secção arqueológica inclua uma reconstituição do esqueleto da Lucy, o primeiro ser humano identificado), o Museu de Etnologia (pedagógica sobre as etnias e as práticas culturais na Etiópia), e o Museu dos Mártires do Terror Vermelho, que trata da memória à volta da ditadura comunista (1977-1991).
Outros países propõem museus no continente. A África do Sul é um deles, em particular com o Museu do Apartheid em Johannesburg. Também é possível visitar a antiga cadeia política chamada Constitution Hill, onde ficaram o Gandhi, como também o própria Mandela (antes de passar anos em Robben Island, perto da cidade do Cabo, que também visita-se).
Constitution Hill, em Johannesburg. Esta antiga cadeia do regime de Apartheid foi transformada em museu.
Em outros lugares ainda, pode-se achar outras formas de comemoração, de memória e de preservação do passado. A seguir pode-se ver sucessivamente uma Casa dos Escravos na ilha de Goré, e a casa de infância do presidente Leopold Sedar-Senghor na aldeia de Joal, os dois sendo no Senegal. E também sinalização no famoso Caminho do Escravo (e a Porta de Não-Volta), em Ouidah, no Benim, onde um projeto de turismo memorial levado pelo próprio governo do Benim está em curso. Em outros lugares, notavelmente na costa de loeste do continente, pode-se achar sítios de comemoração sobre o trafico negreiro. Aqui em baixo, um exemplo na cidade de Cacheu, ne Guiné-Bissau.
Uma antiga Casa dos escravos, na ilha de Gorée, no Senegal, reconvertida em museu sobre o comércio dos escravos.
No Caminho do Escravo, em Ouidah, no Benim. Aqui também, a memória sobre as páginas sombras da História é preservada.
Sem falar dos países da África do Norte, onde os museus são vários: só para mencionar uns deles, o Museu Egípcio do Cairo (com obras da Antiguidade), e o Museu Nacional do Bardo, em Tunis.
A Vila Algarve: salvaguardar o património arquitectural para preservar a memória
Situada no cruzamento entre a avenida Mártires da Machava e a avenida Ahmed Sekou Touré, a Vila Algarve é uma casa de tipo residencial, que foi construida em 1934 no centro da cidade de Maputo, então chamada Lourenço Marques. Foi lá que instalaram-se os serviços da polícia segreda e política portuguesa, a famosa PIDE (Polícia International e de Defesa do Estado), criada em 1945 e oficialmente substituída em 1969 pela Direção-Geral da Segurança (DGS), mas que realmente desapareceu em 1974 com a Revolução dos Cravos. Com a revolta de Mueda (1961) em Cabo Delgado e o início da guerra de descolonização (1964), a PIDE alargou a partir dos anos 60 as suas actividades. Confiscou então o edifício e usou-o como sua sede. Muitos combatentes da resistência foram ali torturados. Por esta razão, não há vontade nenhuma de salvaguardar o prédio. O poeta moçambicano José Craveirinha descreve experiências suas nesta casa em três das suas obras, e outras figuras famosas também foram torturadas lá, como por exemplo Rui Knopfli, poeta e jornalista português nascido em Moçambique, e Malangatana Ngwenya, artista e poeta moçambicano.
O monumento tem certo interesse arquitectural, pois os seus azulejos são notáveis, e constituem um raro exemplo de mosaicos decorados com motivos naturalistas do início do século XX, bem como de arquitetura historicista. O preservar teria como objetivo a valorização do património arquitectural, mas poderia também ter um outro alvo. Pois, em vez de deixar este edifício por ter sido um lugar de torturas, as autoridades poderiam o usar para valorizar a memória à volta da opressão portuguesa durante a colonização. Usar do próprio prédio onde ficava a PIDE e onde foram torturados supostos resistentes, seria um ato simbólico muito forte.
Por lembrança, em 1999, a Ordem dos Advogados de Moçambique adquiriu o imóvel e chegou a planear instalar a sua sede nele. O custo de reabilitação ficou estimado em 400.000 euros, por isso, mais tarde deixou os seus planos e cedeu o edifício ao Ministério da Cultura. Em nome do Ministério da Resistência, está previsto ser instalado lá um Museu da Libertação de Moçambique. E desde 2011, o mesmo está em fase de pré-selecção para uma lista de memoriais da cidade de Maputo. Um tal projeto de Museu da Libertação já seria uma boa forma de salvaguardar o monumento como também de preservar a memória. No entanto, tendo em conta a grande propensão do Estado moçambicano a « recuperar » a memória à volta da luta pela descolonização em favor da propaganda frelimista, esta advocacia convida os cidadãos de Maputo a mobilizar-se, não para um lugar à glória dos combatentes da liberdade, mas um sítio de comemoração à volta das vítimas do regime de opressão e de ocupação portuguesa; entram também em conta as vítimas da PIDE e da repressão durante a guerra, mas não só. Ou propor um Museu da Colonização e da Descolonização, mas não só da luta frelimista, senão é ter o risco que um tal lugar torna-se mas um ferramenta de propaganda do que de trabalho de memória para as gerações futuras.
O Portugal ocupou durante séculos o país, e a cidade de Maputo ficou várias décadas sobre ocupação, depois da sua criação sobre o nome de Lourenço Marques, em 1898. O regime português sobre o que era então a África oriental portuguesa, constituiu uma ocupação racista e violenta. Um dos exemplos mais ilustrativas dessa realidade é o estatuto do Indígena que existia então nas colónias portuguesas. A sua primeira versão foi o Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique, de 1926. Foi completada pelo Acto Colonial de 1930, pela Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma Administrativa Ultramarina, de 1933, e finalmente pelo Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por decreto-lei em Maio de 1954 e que era uma lei visando a « assimilação » dos indígenas na cultura colonial ocidental. Criou-se então três grupos populacionais: os indígenas, os assimilados e os brancos. Negros e mulatos considerados como « assimilados » tinham que responder a certos critérios (saber ler e escrever, vestirem-se e professar a mesma religião que os Portugueses, manter padrões de vida europeus...). Se o estatuto foi abolido em 1961 com reformas introduzidas por Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, com objetivo permitir aos indígenas um melhor acesso à cidadania portuguesa, discriminações sempre perpetuaram-se, até 1974. Esta relação de dominação malsã, racista e de opressão, é descrita por parte no livro Um paraíso enganosa, publicado em 2013 pelo autor sueco Henning Mankell.
Esta visão onde o modo de vida dos Europeus é considerada como superior, tal como os comportamentos racistas de brancos e mulatos com negros, ainda são realidades no Moçambique de hoje. Por isso é importante trabalhar, com os jovens e os menos jovens, sobre a História e lembrar que, em nome de valores racistas, foram cometidas violências e discriminações desumanas. « Ainda estamos a procura da nossa identidade, declarava o famoso autor moçambicano Mia Couto, entrevistado em Junho de 2015 pelo organismo de imprensa francês AFP. Sou o resultado de contradições profundas: sou um científico que escreve, um escritor numa sociedade oral, um Branco num país de Africanos. […] A pesquisa da minha própria identidade obriga-me a viajar dentro do meu próprio país. » É esta compreensão da história e das interacções dos povos moçambicanos, dos Moçambicanos e dos Portugueses, as raízes da nação moçambicana (e também dos seus problemas), que é preciso aprofundir. É este, finalmente, o nosso assunto.