Será que os « atores do desenvolvimento » devem rever o seu estilo de vida?
No início do ano 2017, a organização não-governemental (ONG) Oxfam foi objeto de revelações graves relativas a alguns dos seus salariados, acusados de ter contratado prostitutas durante missões em Haiti, depois do terramoto de 2010. Depois, outras ONG foram acusadas também de violências sexuais e intimidações: Médicos Sem Fronteiras, a Cruz-Vermelha, International Rescue Committee…
Muitas ONG ficaram então na tumulto. Esta situação não é por acaso. Isto decorre duma realidade que vale na ajuda humanitária como na ajuda ao desenvolvimento, e que deixou possível este tipo de abusos: a posição social privilegiada e o sentimento de impunidade dos atores do meio ONG, das agências da Organização das Nações Unidas (ONU), e de outros financiadores estrangeiros.
Em 8 de Fevereiro de 2018, o diário britânico The Times revelavam que os altos dirigentes de Oxfam tinham recorrido a prostitutos e tinham abusado sexualmente de menores em 2011 em Haiti, apenas um ano depois do terramoto que tinha destruído a ilha – informações confirmadas num relatório interna de 2011 mantido segredo pela ONG. Em reação, o governo de Haiti decretou em 22 de Fevereiro de 2018 a suspensão durante dois meses das atividades de Oxfam no país. Uma decisão que o Ministério da Planificação e da Cooperação externa justificou explicando que uma « falha séria […] ao custo dos cidadãos de Haiti em situação de vulnerabilidade e de precariedade » tinha sida cometida, as autoridades judiciares e policiais de Haiti não tendo sido informadas quando aconteceram os fatos. A seguir, a ONG britânica foi acusada de outras violações (ou estupros em português do Brasil) durante missões humanitárias no Sudão do Sul, ou abusos sexuais no Libéria; no Chad também, empregados da ONG são envolvidos em casos similares. Oxfam, que constitua uma confederação de umas vinte organizações humanitárias, anunciou pela voz do seu diretor geral que ela estava investigada sobre 26 novos casos de comportamentos sexuais inapropriados – entre eles, 16 são ligados a programas internacionais da ONG.
Em Fevereiro de 2018, é Médicos Sem Fronteiras que decidiu publicar resultados de investigações internas sobre casos de perseguições e violências sexuais. Numa comunicação, a ONG que conta quase 40.000 empregados no mundo, revelou depois que sobre 146 queixas ou altertas recebidas em 2017 pela direção, « 40 casos foram identificados como casos de perseguições [de várias formas] ao termo de uma investigação interna. Sobre estes 40 casos, 24 eram casos de perseguições ou abusos sexuais ». Igual para o Comité Internacional da Cruz-Vermelha que tinha na mesma altura, nos três últimos anos, identificado 21 membros do pessoal licenciados por ter recorrido ao sexo contra dinheiro ou que tinham deixado as suas cargas depois da abertura duma investigação interna.
International Rescue Committee (IRC), igualmente, não escapou ao escândalo, e é só depois das revelações do jornal britânico The Sun, ainda em Fevereiro de 2018, que a ONG confirmou ter tido pelo menos três casos de abusos sexuais na República democrática do Congo.
Essas revelações todas são ainda mais fortes que elas têm lugar em zonas que já são marcadas por uma grande violência, pela ausência de direito, e por uma grande vulnerabilidade dos habitantes. Após cada escândalo, as ONG criam novas medidas, cartas e comissões. Mas obviamente, não é suficiente. Membros do pessoal das agências da ONU e de organizações caritativas internacionais teriam práticas similares na Síria, país em guerre há anos, também revelou a BBC em 27 de Fevereiro de 2018. Escândalos que não são os primeiros, pois em Fevereiro de 2002, o jornal francês Le Monde já marcava em primeira página um caso semelhante, chamado « Sexo por comida », envolvendo 67 empregados de agências humanitárias em Guiné, na Libéria e em Sierra Leone.
Os expatriados: classe burguese migrante
Se estes escândalos foram conhecidos, quantos ficam desconhecidos? Que icebergue de abusos de diversas formas se esconda no mar perturbado dos dramas humanitários, ou no calma plano e repetitivo dos projetos de desenvolvimento? No terreno, a situação assimétrica entre os trabalhadores humanitários, os « agentes do desenvolvimento » e os cooperantes, dum lado, e os « beneficiários » dum outro lado, constitui um ambiente favorável aos abusos. A economia do desenvolvimento produziu uma classe social burguese internacional, composta essencialmente por Ocidentais, e de uns agentes locais bem no molde. Tipicamente, estão nesta classe aqueles que chamamos os « expatriados ». Juridicamente são imigrantes, mas a palavra « migrante » não é usado para os designar. Pois são os pobres que migram. As pessoas com dinheiro, elas, se expatriam.
Esta realidade é alimentada, primeiramente, pelo nível de vida muitas vezes privilegiado destes agentes humanitários ou do desenvolvimento: carros 4x4 com motorista (até no meio urbano), indemnizações e rendas muito em cima da média do país – e muitas vezes superiores aos salários dos agentes locais, numa mesma estrutura, mesmo com diplomas, longevidade na estrutura e responsabilidade iguais. É também alimentada por estratégias de evitamento dos « expatriados » com as populações locais no dia a dia: nos transportes públicos que eles evitam a qualquer preço de pegar; nas escolas públicas onde evita-se (também ai, qualquer seja o preço) de inscrever as suas crianças para as enviar no privado, ou no Liceu francês, américano ou britânico; ou ainda nos lazeres, cuja localização geográfica ou o custo de acesso terá um efeito proibitivo na maioria. É este mesmo nível de vida privilegiado e os salários elevados que permitam estas estratégias de contornamento e de evitamento, que têm um preço elevado. Pois o carro 4x4 é caro, os restaurantes e a comida nas normas europeias são caros, as escolas privadas são caras, e os alugueis nos bairros centrais são caros. Assim, essas pessoas, sozinhas ou em famílias, podem percorrer dezenas de quilômetros de carro somente para ir à praia, à beira do mar, num rio ou numa cachoeira. Pessoas, sozinhas ou em famílias, que ficam finais de semana inteiros entre muros duma embaixada ou dum hotel, para aproveitar uma piscina num entre-si que parece ignorar o resto do mundo. Pessoas, sozinhas ou em famílias, que ficam nos mesmos bairros, e que podem passar anos a viver sem saber situar-se corretamente na cidade – é também o caso das burguesias locais, no entanto –, sem aprender nenhuma língua do país e sem nunca ter pegado o transporte em comum, usado por milhares de cidadãos todos os dias. Em qualquer país ocidental, falaria-se numa situação dessas duma integração falida. Com os « expatriados », esta situação nunca é denunciada.
Pode-se responder (com razão) que um certo número destes « agentes do desenvolvimento » não podem ser qualificados de « burgueses » por seu nível de renda. No sistema francês, é tipicamente estagiários não ou pouco remunerados, ou voluntários, recrutados em serviço cívico, como Voluntários das Nações Unidas (VNU) ou como Voluntários de Solidariedade Internacional (VSI) pela via de France Volontaires. Em geral, as suas indemnizações estão entre 0 e 1.000 euros, o que parece bem insuficiente para os qualificar de « burgueses », até em relação ao nível de vida do país. O mundo do desenvolvimento conseguiu criar estes estatutos para simular um resíduo de envolvimento sincero que não necessitaria motivação financeira, enquanto na realidade muitos destes estagiários e voluntários são simplesmente jovens diplomados que enfrentam dificuldades no seu país. De fato, esta categoria de agentes « precários », por sua juventude como por suas rendas fracas (segundo os critérios europeus), misturam-se mais, convivem mais com os habitantes do país e partilham às vezes seus lazeres e seus problemas. No entanto, precisa-se constatar que até eles ficam numa certa endogamia social e adoptam práticas de evitamento. Isso, não tanto por suas rendas, do que por suas redes, pois muitas vezes eles trabalham com os « expatriados », e terão facilmente a possibilidade de os frequentar à noite, em festas ou em lugares de lazer e socio-culturais. Eles terão acesso às suas excursões nos finais de semana, aos seus quotas de bens importados de Europa, às suas grandes festas entre-muros ou afastadas... a tudo o que faz que esta vida em África ou em outro lugar ficara parecida a um ano Erasmus feito de excursões em final de semana, sol e festas alcoolizadas.
De forma surpreendente, o setor da ajuda pública ao desenvolvimento dedicou-se tanto a limitar os sacrifícios quotidianos dos seus agentes (estrangeiros), que fez deles uma categoria muito privilegiada, em termos financeiro, de condições materiais e de reconhecimento social. O principal constrangimento é a distância com o país de origem e com a família. Fora disse, a maioria dos sacrifícios podem ser qualificados de « constrangimentos de luxo », quando resumem-se a não achar alguns alimentos, queijo, vinho ou certas carnes que acha-se facilmente em Europa.
A visita de terreno dos cooperantes e dos atores do desenvolvimento oferece às vezes cenas de acolhimento mobilisando meios que ilustram esta relação ambígua entre « público beneficiário » e financiadores. Nesta primeira fotografia, a inauguração em 2014 de latrinas financiadas pelo Serviço de Cooperação e de Ação Cultural (SCAC) da Embaixada de França em Moçambique, numa aldeia da região de Maputo – um evento recuperado pela propagândia local do partido no poder, a Frelimo, então em campanha eleitoral.
As contradições que revela o comportamento de muitos expatriados
Sabe-se que a endogamia social é uma prática comum à humanidade: em todas as sociedades, em geral, observa-se pouca mistura entre grupos sociais. Na Europa, proletários, profissões manuais, frequentem pouco os quadros ou burgueses no dia a dia, nos transportes, nos lazeres, nas escolas, etc. E até a reprodução das desigualdades sociais entre gerações fica globalmente a norma. Pode-se, em conseqüência, ser mais compreensível com os agentes do desenvolvimento. Em República Centro-africana, em Haiti ou no Bangladesh, até os Libaneses e os Chineses praticam muitas vezes uma grande endogamia e integram-se pouco socialmente no país, além do mínimo necessário aos seus negócios. Mas o caso da ajuda ao desenvolvimento é particular: em primeiro lugar porque, como o nome o indica, o setor tem como ambição de « ajudar » os países de intervenção ou as populações em questão. Quando se sabe que uma forte proporção do financiamento dos projetos de desenvolvimento servem na realidade para os custos de funcionamento das ONG (e para o nível de vida dos seus agentes expatriados, então), seriamos tentado de dizer que os verdadeiros beneficiários não são aqueles que pensamos. Mesmo considerando que os cooperantes são sobretudo ai para « ajudar », difícil acreditar que, com tais diferenças de nível de vida, conhecendo tão pouco as pessoas para quem se cria ou se realiza projetos, sem partilhar com elas os problemas do dia a dia, nenhum momento de lazer, se pode realmente as ajudar. Uma única pergunta, simples, basta a resumir o problema: pode-se ajudar uma pessoa que não se conhece? Nenhum cooperante tem obrigação a aprender uma língua local, nem a abrir uma página ou a ler uma linha sobre o país onde ele instala-se, sua história, suas questões sociais, etc. Não é obrigado a entender onde está, a pesar da sua « missão ». E no entanto, muitos deles falam do país como se o conheciam perfeitamente e tinham-se apropriado todas as suas sutilezas.
A ajuda ao desenvolvimento tem esta contradição entre o espírito que deveria a levar (a do envolvimento associativo) e a posição social dos seus atores. Acrescenta-se o sentimento claro que esses mesmos atores são depositários da boa palavra e da boa via a seguir – sentimento reforçado pelo prisme pós-colonial e os inumerosos estereótipos à volta da figura do homem branco (e das pessoas que falam e vestem-se como ele). O acolhimento desproporcionado dos representantes de financiadores ou de ONG quando visitam os projetos financiados, até em aldeias pobres e recuadas, é a expressão a mais patética desta realidade. Se eles são levados por sentimentos bons, o setor humanitário como aquele do desenvolvimento deveriam iniciar uma reflexão sobre a sua imagem com as populações « beneficiarias ». Quando um défilé de carros 4x4 Hilux chegue numa aldeia, levando o pô no seu caminho à cara das pessoas na estrada, sem propor a ninguém o transporte em centenas de quilômetros, passando rapidamente as barragens de polícia por ter tal ou tal ordem de missão, inevitavelmente, dá-se a imagem de privilegiados, que não podem ajudar pessoas por motivos e formalidades fora-das-realidades. Inevitavelmente, desenvolve-se uma imagem de poder, de dinheiro e de intocabilidade.
Nesta segunda fotografia, a recepção duma delegação da Região Centre-Val de Loire (França) numa aldeia da região do Gorgol, em Mauritânia, onde foi financiado a construção dum poço no âmbito da cooperação descentralizada (Crédito foto © Baba Boubacar Sy, Fevereiro de 2018).
É essa última imagem que é problemática, porque é ela que permita abusos, tal como aqueles que foram recentemente conhecidos sobre casos de prostituição. Acrescenta-se um racismo não assumido: observa-se facilmente comportamentos e práticas, dos cooperantes com qualquer idade, que não teriam ou que não tolerariam se fossa na Europa. Esses comportamentos vão das relações sexuais com pessoas muito mais jovens (ou até com menores) até os maus tratamentos dos empregados de casa (com quem se esquece muitas vezes a noção de direito do trabalho), passando por um recurso mais ou menos sutil da prostituição, ou ainda por um uso abusivo da imagem das pessoas do país (cujas fotos são publicadas no Facebook ou no Instagram, por exemplo, sem nenhum questionamento ético). Nesta lista incompleta, constata-se que ao racismo acrescenta-se a questão do género, pois é preciso constatar que os abusos são muitas vezes a expressão duma relação de dominação do homem sobre as mulheres « locais » (para não dizer sobre as « mulheres negras »).
Os modos de vida dos cooperantes e a maneira deles de falar do país não são banais, pois questionam as motivações reais destes migrantes que cheguem em terreno conquisto, teoricamente a mão no coração, achando-se peritos, e que não mostram nenhum envolvimento sincero, nem nenhuma convicção pessoal sobre a capacidade dos habitantes a produzir grandes coisas.
As tentativas desesperadas do sistema para sair das suas próprias contradições
Em 2011, quando tinha sido produzido o relatório interna de Oxfam, o diretor da ONG em Haiti demitiu-se. Mas pouco tempo depois, ele tomou posso na liderança duma missão no Bangladesh para a ONG Ação Contra a Foma (ACF). Um outro quadro da organização, também licenciado depois do relatório, era recrutado uns meses depois como consultante para uma missão... de Oxfam na Etiópia, de Outubro a Dezembro de 2011. Para tentar prevenir estes escândalos, as organizações caritativas tentam bem impor códigos de comportamento, mas sem efeito óbvio. Poderia-se melhorar os sistemas internas de alerta e de investigação, facilitando ainda mais a difusão da informação, das reclamações, e dando mais tempo aos que devem as verificar. O paradoxe sendo que a parte do dinheiro que vai ao humanitário ou ao desenvolvimento e que não beneficia diretamente às populações, mas aos agentes, aumentaria ainda.
A questão dos abusos supõe fazer algo contra o estatuto privilegiado ligado a esses atores da cooperação. Já tínhamos sublinhado no artigo do mês passado a necessidade de questionar as relações assimétricas entre países ocidentais e países « do Sul » (Frente ao fiasco da ajuda pública ao desenvolvimento, para quando a sua desprogramação?) e a ilusão da emancipação destes últimos graças a ajuda pública ao desenvolvimento. Além dos atos horríveis (e condenáveis pela lei na maioria dos países), o estatuto de « expatriado », de « cooperante », questiona o papel e as motivações dos agentes nos setores do humanitário e do desenvolvimento, do seu lugar e do seu nível de integração no dia a dia na sociedade de instalação. Enfim, coloca-se a questão do seu nível de tolerância em relação das violações « soft » dos direitos humanos, logo que são praticadas sobre populações locais.