Que lições tirar da crise do COVID-19? (2/2) Reforma pós-crise do modelo econômico: quais riscos, quais oportunidades?
Desde o início do ano, o mundo enfrenta a pandemia do COVID-19. Pelo planeta, já contamos uns 310 000 mortos e mais de 4,5 milhões de casos confirmados. Os países e áreas os mais afectados são a China (onde o número está contido), a Coreia do Sul (que já não está muito afectado pela epidemia), o Irão, os Estados-Unidos, e certas partes do continente europeu, Espanha e Itália notavelmente. Por enquanto, a China conheceu mais de 4 630 falecimentos, para quase 83 400 casos oficialmente declarados. Os 500 000 casos confirmados foram alcançados na Europa há mais de um mês, e acabamos de alcançar esse número na América do Sul. A Itália, o Reino-Unido, a Espanha e a França, onde as subidas continuam sem conhecer a dimensão exponencial dos dois últimos meses, contam mais de 34 000, no Reino-Unido, mais de 31 000 mortos na Itália, e um pouco mais de 25 000 mortos, para os dois outros, sobre um número de casos entre 225 a 230 000 casos confirmados na Itália e na Espanha, mais de 141 000 em França, e 240 000 no Reino-Unido. Nos Estados-Unidos, mais de 1,45 milhão de casos foram confirmados, entre os quais uns 88 000 mortos. Em Portugal, onde temos mais de 28 500 casos confirmados, para 1 190 falecimentos, a subida é muito mais contida do que no vizinho espanhol. No Brasil, onde o presidente Jair Bolsonaro rejeitou o princípio do confinamento total da população, conta-semais de 220 000 casos confirmados, para quase 15 000 mortos, mas a saturação dos serviços de hospitais em várias áreas, por exemplo no Estado de Amazonas, parece mostrar que os números oficiais são muito sob-estimados.
Aproveitamos do confinamento para tentar tirar o melhor. Ou pelos menos, tirar lições, e questionar o nosso modelo de desenvolvimento, que permitiu essa situação extraordinária. Em Março passado, já constatamos a queda das taxas habituais de poluição e o « retorno » da natureza nos lugares, em China ou na Europa, nos Estados-Unidos ou além, onde foram anunciados medidas de confinamento, mas também uma inversão das hierarquias sociais e profissionais, com a valorização, no âmbito da crise, dos empregos manuais ou do laço social, ao custo dos trabalhos quadros: Que lições tirar da crise do COVID-19? (1/2) Meio ambiente, hierarquia social, trabalho: uma revolução das prioridades? Como o constatamos então, a crise agrava as fraturas sociais pesadas, escolares, profissionais, financeiras... Sabemos por exemplo que em França, há uma sobre-representação do número de mortos vivendo nos bairros populares (Département de Seine-Saint-Denis), no total dos falecimentos observados na região metropolitana de Paris (Région Île-de-France). Em França, foi recentemente conhecido o dado seguinte: 66% dos quadros-superiores têm a possibilidade de tele-trabalhar, contra somente 5% dos operários (porque o trabalho deles não permite o tele-trabalho), um fratura considerável. Da mesma forma, viu-se nos Estados-Unidos, segundo dados revelados no início do mês de Abril por várias associações, que há uma desproporção de mortos na comunidade afro-americana. É o caso em vários Estados norte-americanos, por exemplo no Illinois, onde os Negros representam 14% da população mas 42% dos mortos da epidemia, ou em North Carolina, 22% da população mas 31% dos mortos. Mas o balanço é ainda pior em Chicago, onde 72% dos mortos são negros, e na Louisiane, onde os afro-descendentes representam 33% dos habitantes, mas 70% dos falecimentos. Muitas vezes, as pessoas com menos renda e poupança são os que são mais forçados a continuar a trabalhar, ao preço de uma exposição maior ao vírus. Ainda mais, num país como os Estados-Unidos onde o custo da saúde é muito elevado, muitos abandonam a ideia de ir no hospital, ou resignam-se a ir lá tarde demais. Igualmente no Brasil, os bairros e as aldeias os mais pobres são, claro, os mais afectados pelas medidas do confinamento como pela expansão do vírus.
A imperativa necessidade de repensar o nosso modelo económico
Se as empresas, grandes como os pequenos comércios e artesãos, desesperam das consequências de uma crise cuja duração permanece desconhecida, a situação deve questionar a organização mesmo de alguns setores. Claro, é o caso da industria farmacêutica, pois a Europa importa os seus remédios principalmente da China e da Índia. A matéria prima é produzida em China, e depois exportada na Índia ou além, onde são transformados. Igual para as máscaras, produzidos na China. Nos países mais afetados, certos remédios podem faltar, como os sedativos, os derivados da morfina, e curares. Esse estado de dependência deixa muitos países muito frágil, como o ilustrou a decisão do governo indiano de parar a exportação de muitos remédios. As ramificações internacionais dos circuitos de produção, de fabricação e de distribuição do remédio são extremamente complexos. Porque importar da Ásia os bens farmacêuticos, enquanto tem-se a capacidade de os produzir localmente? A lógica, o senso comum, deveriam conduzir os Estados europeus a mudar a totalidade das nossas industrias farmacêuticas, mas também assegurar um controle público e democrático nessa produção. A lógica de mercado não pode prevalecer sobre o interesse geral, ainda menos quando é a nossa saúde que está em jogo.
Igual para a indústria agro-alimentar; ironicamente, o COVID-19 é provavelmente animal, quase como uma vingança da fauna contra a espécie humana, que alimenta-se de forma destrutora ao custo da natureza. Por lembrança, o coronavirida atual seria associado aos morcegos, e teria sido transmitido ao ser humano por um « hospedeiro intermediário », o pangolim, que seria o animal o mais vitimo da caça ilegal, vendido pela sua carne e os seus escamas. E não é a primeira vez que um vírus de origem animal transmita-se aos humanos, já foi o caso por exemplo na Malásia, do vírus NIPAH, cuja transmissão entre um morcego e um porco domesticado tornou-se possível pelo desmatamento orquestrado na Ásia do Suleste para permitir o cultivo de óleo de palma. Igualmente, a gripe suína, H1N1, transmitiu-se provavelmente por uma criação intensiva de gado no México. A crise ecológica, amplamente determinada por o nosso consumo alimentar, cria portanto a crise sanitária, pela desregulamentação das interações entre os humanos, a fauna e a flora, e o ambiente patogênico. Manipulamos a vida. Como surpreender-se quando, em consequência, a natureza, conhece uma tal desregulamentação? Os muitos vídeos gravados por ativistas ambientais e da causa animal mostraram bem, nas últimas décadas, os abusos e os excessos no tratamento dos seres vivos, dos animais.
Na continuidade dessa crise ecológica, a engenharia genética manipula cada vez mais o vivante. Várias espécies de cogumelo são de fato manipuladas para produzir insulina. Um gene extraída de um peixe do Ártico foi inserido em batatas para as tornar mais resistentes ao frio. Em Israel, tomates foram retocados para conservar-se várias semanas a mais do que o suportariam tomates normais. E à origem da crise da Vaca Louca, na década de 1990, tinha-se constatado que a industria da criação alimentava o gado com farinhas animais, ou seja, com farinhas produzidas com restos não consumidos de animais (cartilagens, ossos, etc.) ? Dito de uma outra forma, situação totalmente contra-natureza, as vacas que comíamos alimentavam-se com matérias de origem animal. Quando sabemos que, desde o 1eiro de Junho de 2013, a União europeia autorizou as farinhas de porco e de aves na alimentação dos peixes, ganhamos consciência que os nossos dirigentes não aprendem nada das lições das crises passadas. Além disso, atrás de uma tal decisão, reencontramos a ideia que os animais domesticados são mercadorias das quais não se deve perder nada, portanto a exploração deve ser maximizada « até o osso », literalmente.
Agricultura e criação intensivas, gasto alimentar, sobre-consumo, desmatamento, degradação dos solos, uso sistemático dos pesticidas, insecticidas e OGM... Todas essas práticas construírem-se ao custo do ambiente, e muitas vezes do humano; a repartição da produção basta a convencer-se disso, pois dez países concentram 85% da produção agro-alimentar mundial, e 70% dos empregados. Umas quinze empresas de agro-negócio e da grande distribuição dominam amplamente o setor (Nestlé, Pepsico, Kellogg's, Danone, Carrefour, etc.). O coronavírus chega num mundo onde os bilhões de consumidores são convencidos pelo fato que um supermercado vendendo frangos congelados, produzidos por forma intensiva, ou legumes fora das temporadas, é sinônimo de « progresso ». Essa pressão contra a natureza tem como consequência lógica de perturbar os ecossistemas e as espécies; assim, ela favoreceu a multiplicação de vírus mutagênicos. Pensar que basta erradicar o COVID-19 para simplesmente acabar com a crise, é uma ilusão. Já em paralelo dessa pandemia, aprendemos que uma nova epidemia de vírus H5N1 (um sub-grupo da gripe aviária aparecida em 2004) reapareceu em China, obrigando as autoridades a matar milhares de aves. A questão do retorno das nossas agriculturas e das nossas criações, e da sua refundação, é central para nossas sociedades. Já era o caso ontem, mas os riscos de escassez alimentar, os desafios ligados ao fornecimento dos mercados e lojas, valorizados por essa crise, devem claramente ser tomadas em conta.
Um outro setor muito questionado é o automóvel, afectado pelo fechamento temporário dos espaços de venda e das fábricas, e ao adiamento das compras. Mas é também caracterizado por problemas ou fragilidades estruturais, como a deslocalização dos sítios de produção, localizados muitas vezes... na China. A dependência da nossa economia à produção de carros não é nova, data dos tempos pós-Segunda Guerra mundial. As nossas cidades, o urbano como o peri-urbano, e as nossas aldeias, construíram e reconstruíram-se adaptando ao carro, dando-lhe um lugar central nas nossas vidas. A bolsa do cidadão lambda segue o custo da gasolina. O fato de o Ocidente ter entrado em crise econômica a partir dos anos 1970, justamente por causa do aumento do petróleo, o mostra bem. Em França, protestos como o movimento dos Coletes amarelos, em 2018-2019, foram uma ilustração mais recente dessa realidade, pois nasceram após o estabelecimento de um imposto sobre o combustível (finalmente cancelado pelo governo para acalmar a contestação). Fora de algumas cidades vanguardistas, não há uma reflexão global sobre o pós-carro, embora um movimento como os Coletes amarelos mostrou que o modo de vida em certos territórios como o peri-urbano não permite ainda assumir plenamente uma verdadeira transição ecológica.
A reflexão a tirar dessa pandemia, em termos de queda da poluição em particular, deve ser conectada à questão do modelo de desenvolvimento que devemos construir, nesse século XXI que não acaba de abrir-se numa sucessão de crises económicas, ecológicas, sanitárias, sociais. Pensar um modelo realmente resiliente, é também pensar as nossas cidades e aldeias, repensar a nossa mobilidade, os nossos deslocamentos pendulares. E repensar um retorno das nossas atividades produtivas. Porque todas essas crises cruzam-se e alimentam-se, modelos de sociedade alternativos deveriam permitir responder a esses vários desafios.
Repensar o peso das potências financeiras também parece indispensável. Pois, como na altura da crise de 2007-2008, constata-se volatilidade dos valores em bolsa e das consequências sobre toda a economia real. Na nossa economia financeirizada, a economia real depende das flutuações da finança; cada evento tem um impacto enorme nos mercados, a economia é portanto muito ameaçada pela pandemia atual, inclusive em eco ao colapso das valores atuais em bolsa. Quando haverá uma verdadeira revolução do sistema financeiro? As propostas multiplicaram-se, contra a maré intelectual constatada desde os anos 1980 e as revoluções liberais-conservadores iniciadas pelos dirigentes Margaret Thatcher et Ronald Reagan. Por exemplo, economistas franceses de esquerda proporem suspender a bolsa durante a crise. Outras pistas foram formuladas, por enquanto sendo mais medidas de emergência, como o restabelecimento de impostos de solidariedade sobre as grandes fortunas, para os mais ricos poderem participar aos esforços nacionais, ou ainda a suspensão dos dividendos dados aos acionários em 2020, pelo menos em todas empresas que receberão apoio público no âmbito da crise. O Estado, capaz de adoptar restrições à remuneração dos acionários? Mais um tabu questionado. Mas o que haverá a final, ao sair desta sequência histórica? Por enquanto, lembramos que as empresas europeias já começaram, num ano que será um recordo a esse nível, a distribuir aos seus acionários os 359 bilhões de dividendos correspondendo aos ganhos de 2019 (12 bilhões a mais do que 2018).
Na Ciudad universitaria de Madrid, em 16 Março passado. Aqui em baixo, uma fila para entrar num supermercado, ainda em Madrid, na plaza de Tirso de Molina (Crédito foto © Paula Dubray)
Da necessidade de quebrar os tabus e de permanecer vigilente
Melhor do que qualquer greve ou movimento social, o COVID-19 conseguiu parar as economias de várias das nações as mais ricas do mundo. Certas pessoas falam de colapso, e a noção de colapsologia volta na moda. Igualmente, as referências à literatura ou ao cinema e seriados distópicos conhecem um grande sucesso nas últimas semanas. Todos os setores não são parados, como o agro-alimentar, que aproveita por grande parte as compras de reservas de comida nos supermercados. Mas alguma coisa mudou.
A crise atual tornou mais óbvia os disfuncionamentos do nosso sistema econômico. Exemplos grotescos como os aviões continuando a voar vazios para não perder o seu lugar nos aeroportos (para responder a uma legislação europeia de 1993, que regula os horários dos aviões), ilustram a dimensão absurda do nosso mundo. A escassez e os aumentos de preços dos máscaras e géis hidro-alcoólicos, que até ameaçam o trabalho nos hospitais, motivaram em alguns países o controle sobre os preços, para lutar contra os desvios e os abusos sobre esses bens medicais. Governos liberais tomaram então decisões coercitivas, parece uma micro-revolução intelectual. Aparece finalmente, aos olhos de alguns que ainda não o tinham entendido, que certos bens e serviços devem ficar fora das leis do mercado. Uma perspetiva que permite reconsiderar o discurso que nos acostumamos, de um lado e do outro do Atlântico, a ouvir nos 40 últimos anos, sobre o uso do dinheiro público e o respeito das legislações em termos de concorrência livre e sem distorção. Aparece claro que a proteção social no seu conjunto não é aqui por acaso, não é um luxo: incluindo os mínimos sociais (de pensão de reformado, de desempregado, etc.), serve de rede de segurança para milhões de pessoas. Até tem efeitos contra-cíclicos, limitando os efeitos sociais das crises em caso de colapso econômico. Exemplo muito recente: o sistema neerlandese de pensões de reformados, amplamente baseado em fundos de pensão, é destabilizado pela crise atual, com uma queda das taxas de juro ligada à pandemia; o mais importante deles, ABP, que gere 459 bilhões de euros de ativos para funcionários e reformados da função pública, terá provavelmente que reduzir as pensões em 2021 para respeitar as regras de solvabilidade em vigor. Vemos bem que sistemas de proteção social garantidos pelos Estados são determinantes para assegurar que em caso de crise, o nível do poder aquisitivo da população, em particular dos mais modestos, não seja demais afectado.
As iniciativas voluntaristas, em países como a Alemanha e a França, contudo dirigidos por governos conservadores-liberais, contra-dizem os discursos alarmistas sobre a situação orçamentária. Em outros países como a Itália e a Espanha, pelo contrário, governos dominados por coligações claramente à esquerda já assumiam discursos em favor de mais investimentos do Estado na economia, mas os mesmos têm agora, em plena crise do COVID-19, que gerir a herança de mais de uma década de austeridade orçamentária e de fragilização dos serviços públicos de saúde. Até ao nível da União Europeia, após ter falado da dívida pública como de um espantalho, as autoridades revelam-se capazes de mobilizar valores consequentes. A História repete-se. Sem ir até Roosevelt e o seu New Deal, há como identificar em alturas mais percas de nós medidas voluntaristas com alvo o salvação de economia (e dos seus pilares financeiros). Após 2008, a UE soube salvar o sistema bancário, para evitar uma repercussão na economia real. Entre 2008 e 2017, a União aprovou ajudas ao setor financeiro para um total de 1 459 bilhões de euros em capital. Igual nos Estados-Unidos, onde Barack Obama tinha feito adoptar um plano de relança da economia de 787 bilhões de dólares para salvar a industria norte-americana. Em Berlim como em Paris, as medidas multiplicam-se agora para permitir o uso, nas empresas, do desemprego parcial, e para apoiar os diferentes atores econômicos na onda violente que represente a parada quase total das atividades. En França, em 17 de Março, o Primeiro ministro disse não excluir eventuais nacionalizações se a situação o exigir, para salvar empresas vitais em grande dificuldade. Até em Portugal, entrevistado em 1 de Abril passado, António Ramalho Eanes, antigo militar e chefe do Estado entre 1976 e 1986, declarou: « É natural que venham a acontecer nacionalizações parciais ou totais. »
Muitas vozes exprimem-se no entanto para antecipar uma onda contrário, pois algumas figuras políticas e econômicas poderiam aproveitar da crise económica consecutiva à pandemia para impor medidas de liberalização do mercado do trabalho e da economia ainda mais fortes do que antigamente. Ou seja, novas expressões da famosa « estratégia do choque » (Shock Doctrine), teorizada pelo economista Milton Friedman (Escola de Chicago) há um meio-século e analisada pela jornalista canadiana Naomi Klein num ensaio publicado em 2007; no concreto et na História, essa estratégia traduziu-se pelas políticas profundamente liberais de Thatcher e Reagan no Reino-Unido e nos Estados-Unidos a partir da década de 1980, pelas medidas sistemáticas e globais de privatização de vários setores da economia (e até em outros setores altamente sensíveis, como a segurança) no Chili, após o golpe de 1973, na antiga União soviética, após o choque de 1991, ou ainda no Iraque, após a invasão norte-americana de 2003. Último exemplo: a Grécia, submetida aos planos de austeridade impostos pelo FMI e os parceiros europeus após a crise de 2008.
Além das estratégias futuras que podem ameaçar os direitos adquiridos pelos trabalhadores pelo mundo, já observa-se posturas claramente contestáveis que privilegiam a permanência das atividades econômicas às ameaças que representa a propagação do COVID-19. Até nos países europeus como a França ou o Reino-Unido, ouviu-se declarações contraditórias chamando seja ao confinamento total, seja a continuar o trabalho – em 22 de Março, Giuseppe Conte, Primeiro ministro da Itália, até então o país o mais afetado pelo mundo, anunciou finalmente a decisão « de fechar qualquer atividade de produção em todo o território que não seja estritamente necessária, crucial, indispensável, para [...] garantir os bens e os serviços essenciais ». Mas é sobretudo óbvio nos Estados-Unidos, onde Donald Trump proclamou rapidamente que o seu país não sacrificaria a sua economia... Em 24 de Março, depois de vários Estados (como Nova-York e a Califórnia) terem anunciando o confinamento, ele declarou: « É preciso voltar ao trabalho, mais cedo do que as pessoas pensam. » A final, em 27 de Março, ele assinou um plano votado pelo Congresso, que prevê uma ajuda de 2 000 bilhões de dólares destinados a apoiar as empresas norte-americanas, como também o sistema de saúde e os particulares. Mais caricatural foi também o presidente brasileiro, que não só recusou-se a proclamar o confinamento do país, ai também para não afectar a economia, mas também que ilustrou-se pela sua irresponsabilidade, aparecendo várias vezes à televisão no meio de multidões dos seus torcedores.
A globalização é questionada, com, em primeiro lugar, o lugar central da China na economia mundial. A inter-conexão das trocas, e sobretudo das linhas de produção e logísticas, é tal que uma perturbação da produção chinês tem hoje consequências bem além do Extreme-Oriente. Já mencionamos a produção de carros, mas vale também para outros produtos, como as roupas, vindas da China, do Bangladesh, do Camboja, ou ainda do Vietnã; os brinquedos, os utensílios de cozinha, os produtos eletrodomésticos, vindos da China; os produtos alimentares, importados da África, ou ainda da América latina; etc. A parada da economia norte-americana, em particular após o confinamento de Estados muito ricos como, em 19 e 20 de Março, a Califórnia e Nova-York, terá também um impacto pesado sobre o resto do mundo, ilustrando ai também o estado de interdependências das nossas economias.
A questão do retorno, da reapropriação da nossa alimentação, da nossa proteção, da nossa capacidade a curar, do nosso quadro de vida, isso tudo induz duas noções: A primeira é a resiliência; a nossa capacidade de resistência e de adaptação às crises deve pensar à escala local (é importante falar de resiliência territorial), e a reflexão sobre esse conceito tem ainda mais sentido nesses tempos em que se trata de colapsologia. A segunda é a durabilidade (ou sustentabilidade): o mundo que construímos, nos dois últimos séculos, desde a revolução industrial e tecnológica, não é sustentável, por isso é preciso o repensar ao nível local, e com alvo a sobriedade (em todos os sentidos da palavra). Repensar circuitos a uma escala local, é não só garantir ciclos mais respeitosos dos ecossistemas, mas também tornar os territórios mais autónomos, e portanto menos frágeis em caso de crise global. É também a melhor maneira de criar de novo emprego de qualidade e recriar laço social.
Em conclusão? A necessidade de mais democracia!
Controle sobre os preços de tal ou tal produtos, meios consequentes mobilizados à disposição dos serviços públicos, nacionalizações consideradas como possíveis se for necessário, limitações ao livre-comércio... Essa sequência difícil e inesperada pode ser a ocasião de questionar muitos dos paradigmes que estruturam a nossa economia. Em Bruxelas, a Comissão europeia foi lenta demais para reagir à crise e incapaz de coordenar os membros da UE nas respostas. No meio de Março, a União Europeia finalmente decidiu fechar as suas fronteiras externas, após uns dez países do espaço Schengen já terem imposto, então, o fechamento das suas próprias fronteiras; provisoriamente, a Comissão anunciou relaxar a regra de controle dos déficits Bruxelles, que estabelece teoricamente o teto de 3% do PIB para cada Estado. Uma decisão que é tomada enquanto as autoridades gregas enfrentavam a chegada de muitos refugiados à sua fronteira – um assunto que foi completamente esquecido, enquanto ainda milhares de vida estão em jogo. Até na Alemanha, a sagrada regra do zero déficit é questionada, e em 23 de Março, até Berlim anunciou querer emprestar o valor de 156 bilhões de euros para salvar a sua economia na crise atual. E em 9 de Abril, o governo francês anunciou o aumento do seu plano de emergência, para 100 bilhões de euros (contra 45 bilhões inicialmente), para apoiar as empresas em dificuldade; e um aumento das despesas excepcionais para a saúde, de 2 a 7 bilhões de euros para este ano – enquanto trabalhadores do setor da saúde faziam greve há quase um ano para reclamar uma melhoria das suas condições de trabalho, sem resposta significativa do executivo francês... Enquanto isso, em 16 de Março, os vinte-sete ministros das Finanças da UE prometerem « fazer todo o necessário » para responder às dificuldades econômicas criadas pela epidemia, sem usar no entanto,até então, o fundo de resgate da Zona euro, conhecido pelo nome de Mecanismo europeu de estabilidade (MEE). Ainda em 2 de Abril, a União europeia propôs garantir os planos nacionais de apoio ao emprego nos Estados membros, até 100 bilhões de euros.
Globalmente, é mais a falta de solidariedade que observa-se na Europa, o caso mais ilustrativo sendo quando, no final de Março, o ministro das Finanças neerlandese, Wopke Hoekstra, criticou, em plena visio-conferência com os seus colegas europeus, a Espanha e a Itália por não terem bem gerido os seus orçamentos nos últimos anos, o que, segundo ele, explicaria a situação que esses dois países conhecem atualmente; ele até tinha sugerido que a Comissão europeia fizesse uma investigação sobre a gestão orçamentária dos dois Estados mediterrâneos – atitude qualificada pelo Primeiro ministro português, Antonio Costa, de « repugnante ». Além disso, nove países, nos quais a Itália, a Espanha e a França (mas também a Grécia, o Luxemburgo, a Irlanda, Malta...), proporem lançar nos mercados financeiros emprestes importantíssimos garantidos por todos os Estados da Zona euro, ou seja, os famosos eurobonds, ou euro-obrigações. Uma proposta cuja adopção necessitava a unanimidade, e que foi rejeitada pela Alemanha e os Países Baixos, em 26 de Março. Ainda na noite entre o 7 e o 8 de Abril, negociações entre parceiros europeus acabaram num impasse sobre a dimensão e as medidas da relança econômica europeia, em particular por causa das posições inconciliáveis entre os Países Baixos e a Itália. Como uma repetição das clivagens que já se observaram entre países da Zona euro, na crise financeira e das dívidas, entre 2008 e 2015. Foi finalmente preciso esperar até o 9 de Abril para ver os ministros europeus conseguir definir um apoio significativo à relança europeia, baseado em três eixos principais: até 240 bilhões de euros de emprestes do fundo de socorro da Zona euro, um fundo de garantia de 200 bilhões para as empresas e até 100 bilhões para apoiar o desemprego parcial. No entanto, não houve acordo sobre a questão dos eurobonds (agora chamados de « coronabonds »).
Não podemos concluir esse artigo sem mencionar as lições políticas a tirar. Enquanto certas pessoas acham até agora que esta crise demostra a eficiência do regime chinês, que conseguiu mais ou menos o seu confinamento, e as fraquezas das democracias ocidentais, é preciso lembrar que, tão eficiente como parece, é esse mesmo regime chinês cuja opacidade permitiu a expansão da doença da província de Wuhan, enquanto as autoridades tentavam esconder o tamanho do problema. Isso tudo revela sobretudo que em lugares onde, como a França, o poder político é muito centralizado, a tomada de decisão é tributária do grau de reatividade do chefe do executivo; enquanto em países mais descentralizados, por exemplo nos Estados-Unidos, Estados puderem reagir e confinar a sua população apesar da lentidão que levou o presidente da Repúblico para reagir com responsabilidade. Além disso, como já o dissemos sobre as potenciais ofensivas tipo « estratégia de choque » ultra-liberal que poderão ser observadas após esta sequência, será também necessário uma grande vigilância contra as tentativas de abusos antidemocráticos que serão constatadas, nos próximos meses, com pretexto a resposta à crise. Temos que guardar em memória que a democracia não é algo estático, uma evidência. É um processo dinâmico, que temos que defender e animar, inclusive contra riscos de desliza lento e silencioso alimentos pelo fortalecimento de ferramentas repressivas.