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O acendedor de lampiões

A crise do COVID-19 será a ocasião de reconsiderar os empregos « invisíveis » à luz de sua verdadeira utilidade?

10 Juin 2020 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Europa, #Economia, #Sociedade

Durante o tempo de confinamento que aconteceu na crise do COVID-19, milhões de cidadãos aplaudirem, à janela, o pessoal de enfermagem, verdadeiros « soldados » (e sobretudo soldadas) enviados na « frente » de uma guerra contra um inimigo invisível. Essa imagem de unidade e de apoio aos médicos, às enfermeiras e aos outros trabalhadores do Hospital público não deixa de questionar, quando sabemos que as políticas de austeridade das últimas décadas deixaram os serviços de saúde fragilizados, e isso em quase toda a Europa – em França, quando surgiu a pandemia, os serviços de emergência até estavam em greve há quase um ano, pedindo melhores condições de trabalho, alertando sobre a falta de material e tempos de trabalho incompatíveis com a procura de qualidade de serviço. A crise do COVID-19 foi a ocasião de colocar na luz, não só esse setor, como também muitos outros empregos, desconsiderados e às vezes particularmente mal remunerados. Empregos onde se acham muitas vezes mulheres, que não têm o luxo de tele-trabalhar ou confinar-se de forma agradável, e portanto foram expostas ao risco de contaminação ao vírus.

A crise nos lembrou que esses empregos « invisíveis » são os que permitem o bom funcionamento da economia real. Sem eles, os empregos quadros não sobrevivem. Nesse contexto, convém reconsiderar o reconhecimento e a utilidade que a sociedade lhes concede, para melhorar a sua remuneração e a sua imagem.

O trabalho dos enfermeiros e das enfermeiras, dos empregados e empregadas de caixa de supermercado, ou de limpeza, dos lixeiros e das lixeiras, etc. deve ser reavaliado à luz dos seus fracos rendimentos, mas também da péssima consideração dada a esses empregos, desde sempre. Pois os empregados e empregadas de caixa não esperaram o coronavírus para receber perdigotos dos clientes no rosto, nem os carteiros e as carteiras o mau humor das pessoas. « Trabalha na escola, caso contrário vais acabar atrás de uma caixa », é um clássico repetido às crianças. Uma realidade que deixa perplexo, ainda mais porque acentua o grau de hipocrisia de muitas famílias que aplaudirem cada noite à janela o pessoal de enfermagem (e outros empregos de laço humano), mas cujos pais considerariam como uma regressão social se as suas próprias crianças acabassem nesses empregos. A endogamia social permanecendo a regra na maioria dos meios, numa sociedade na qual cada novo encontro é a ocasião de apresentar um resumo do seu CV (« Que fazes na vida? » sendo uma abordagem totalmente comum), entende-se bem que os lixeiros, as zeladores ou as faxineiras aparecem como uma nódoa nas refeições de família, lanches ou recepções.

Os funcionários, muitas vezes designados como « privilegiados » por serem pagos ao custo dos contribuintes pelo imposto, e por serem supostamente sub-produtivos, também são sujeito de uma desconsideração social de longa duração – o que o funcionamento kafkiano de certas administrações europeias parece às vezes confirmar ao longo dos anos. Como por magia, após Março de 2020, e durante algumas semanas, todos esses empregos invisíveis tornaram-se « heróis » nacionais. No entanto, a pandemia do COVID-19 permitiu mostrar as desigualdades que caracterizam o mundo do trabalho, revelando o confinamento e o tele-trabalho como privilégios de alguns – cujo tipo de emprego oferece uma fraca exposição aos riscos físicos, mas a oportunidade de um dia-a-dia agradável na sua casa, com salários em cima da média.

Um evento, pouco depois do fim do confinamento em França, merece ser mencionado aqui para ilustrar o nível de hipocrisia da nossa sociedade: em 5 de Junho passado, na cidade de Caen, um lixeiro de 46 anos de idade suicidou-se por baleamento, depois de ter sido despedido por ter bebido duas cervejas durante a a pausa, com um colega. O homem, que contava 26 anos de antiguidade, tinha justamente recebido por um habitante do bairro onde travalhava as duas cervejas para o agredecer pelo trabalho efectuado durante a crise do COVID-19 – pois esses « heróis invisíveis » tinham assegurado as suas missões durante todo o tempo do confinamento. Controlados pela polícia, os dois colegas tinham revelado um nível de alcoolemia acima do limite legal, o que explica o despedimento. O corpo do homem foi encontrado pelo pai e o filho dele, com a carta de despedimento pertinha. Uma seqüência que mostra o grau de consideração levado por muitos empregos (e os seres humanos que os exercem), pois depois de tantos anos de serviço e uma altura de pandemia particularmente complicada, imagina-se facilmente que o empregador poderia ter-se limitado a um simples aviso.

Uma estruturação do mercado do trabalho profundamente desequilibrada

Quando se fala de empregos expostos e sem possibilidade de tele-trabalhar, pensa-se obviamente ao pessoal de enfermagem. Convém acrescentar os trabalhadores sociais (inclusive os que intervém no setor da assistência aos idosos), os empregados de supermercado, certos funcionários (policiais, bombeiros, empregados de transporte público, etc.), os entregadores (e haveria muito para dizer sobre o uso abusivo das pessoas às comandas a domicílio, inclusive durante o tempo do confinamento, sem considerações dos riscos), etc. Nos pessoas de enfermagem, os empregos de enfermeiras, de cuidadores, de ajuda a domicílio, de assistentes de vida, de limpeza – enfim, os empregos do care –, são particularmente feminizados, tal como o trabalho nas caixas de supermercados.

Esses empregos já são particularmente precários, menos bem remunerados, por causo do tempo parcial, muito desenvolvido nessas áreas (em particular a venda), e por causa de padrões de rendimento mais fraco, nas nossas sociedades de serviço que favorecem cada vez mais os estatutos precários. A título ilustrativo, em França, contava-se em 1 de Janeiro de 2019 (ou seja, antes do COVID-19), segundo o último estudo da Direção da Animação da pesquisa, dos Estudos e dos Estatísticos (ligada ao Ministério do Trabalho), mais de 2,32 milhões de pessoas remuneradas ao salário mínimo no setor privado (ou seja, 13,4% dos salariados). Mais de metade (58,5% em 2019) dos que recebem o salário mínimo são mulheres, e são muitas nos setores profissionais « Pesquisas e prestações de serviços às empresas » e « Química e farmácia », que sobre-recrutam nos jovens em contratos com duração limitada (a prazo). Contudo, são sob-representadas nos quadros e nas profissões intermediárias. Segundo estatísticas oficiais de 2012, em França, as mulheres eram sobre-representadas nas profissões assimiladas a virtudes identificadas como femininas (administração, saúde, social, serviços de cuidado): 97% dos auxiliares domésticos e das secretárias são mulheres, 90% dos cuidadores, 73% dos empregados administrativos da função pública, ou ainda 66% dos professores – atividades muitas vezes pouco remunerados. Esses empregos acabam, obviamente, em baixo da hierarquia das categorias socio-professionais: as mulheres representam, ainda em França, 77 dos empregados, 51 das profissões intermediárias (nos setores da saúde, do trabalho social ou da educação), mas somente 16% dos chefes de empresa e 40% dos quadros superiores.

Uma parte desses empregos a forte componente feminina são considerados como pouco ou não qualificados, pois as competências exigidas são vistas como um prolongamento das qualidades « naturais » ligadas às mulheres: cuidar, ter empatia, competências relacionais, paciência – o que pode explicar a desconsideração social e o fraco rendimento que elas têm que sofrer. de uma certa maneira, é considerado que, porque elas ocuparam-se desde sempre, e « gratuitamente », dos outros, dos seus próximos, da sua família, as mulheres aceitarão de assumir essas profissões para rendimentos ridículos.

Não seria totalmente verdade dizer que, no âmbito da pandemia de coronavírus, a hierarquia social dos empregos teve a ver precisamente com o grau de exposição: entre as pessoas as mais expostas aos riscos, algumas eram pouco qualificadas, mas acha-se também empregos no topo do quadro, como os médicos, ou certas profissões informáticas, técnicas ou quadras – incluindo as profissões que permitem manter as infra-estruturas e as redes essenciais: a manutenção e a vigilância da rede telefônica ou da rede informática, o setor da energia, a qualidade da água, etc. Pelo contrário, algumas profissões pouco consideradas ficaram pouco expostas ao risco de contaminação, como na construção – quando os poderes políticos deixaram os trabalhadores desse setor realmente respeitar o confinamento, sem pressão para voltar ao trabalho.

Além disso, além dos setores precários ocupados pelas mulheres, convém notar a condição difícil, às vezes esquecida, de várias profissões no entanto indispensáveis à nossa economia, e à paz social e à nossa sobrevivência. Podemos pelo menos mencionar dois: todos os empregos ligados à logística e aos transportes, tornados indispensáveis pelo caráter internacional dos nossos abastecimentos, num sistema de câmbios internacional; e a agricultura, que conhece uma crise a vários níveis desde décadas. Por lembrança, o desespero dos atores do setor agrícola e da criação conduz muitos trabalhadores independentes dessa área ao suicídio, após anos de condições de trabalho difícil e com fraco rendimento. Isso, enquanto a alimentação corresponde a uma necessidade vital óbvia, e enquanto a auto-suficiência alimentar – fragilizada pelas dificuldades do setor – constitui uma questão de soberania nacional e de resiliência em tempo de crise.

A nossa sociedade é dominada pela economia de serviços – pois o setor terciário fazia trabalhar, em quase todos os países de Europa ocidental, entre dois terços e três quartos da população ativa, às vezes até mais, contra mais ou menos uns 20 ou 25% para o setor secundário (principalmente a indústria), e menos de 5 ou 3% para o primário (agricultura, pesca, etc.). Mas essa economia de serviços permitiu o surgimento de muitos empregos cuja tangibilidade e a utilidade concreta não parecem óbvios, fora de criar conceitos e produtos para incentivar os cidadãos ao consumo de produtos manufaturados (além das suas necessidades). Embora esse conceito pede ser abordado com prudência, esses empregos correspondem, tipicamente, a o que David Graeber qualifica de bullshits jobs. Trata-se em particular dos consultores em New Public Management que contribuíram a desestruturar, desmantelar e fragilizar os serviços públicos (e o primeiro deles, os hospitais); mas também empregos da publicidade e das relações públicas (publicitários, encarregados de comunicação, etc.), empregos do mundo financeiro (os traders e os banqueiros não regulados), advogados de negócios, etc. Enfim, profissões que contribuem provavelmente ao funcionamento das sociedades capitalistas, mas que não são essenciais à sobrevivência. No seu ensaio Bullshit Jobs : A Theory (2018), o antropólogo e anarquista norte-americano até propõe um método para saber se um emprego constitui um bullshit job – e portanto se é útil ou não: imaginar o seu desaparecimento e olhar os efeitos na sociedade. Esse exército permite constatar a injustiça feita, em termos social como financeiro, em relação a certas das profissões as mais desfavorecidas, no entanto vitais ou essenciais, em comparação a outras, hoje em dia extremamente bem remuneradas, que aparecem radicalmente inúteis.

Conectar as remunerações e a consideração social à utilidade real

Diante do absurdo óbvio desta organização do mercado do trabalho e desta repartição super-desequilibrada da riqueza, convém rever a classificação dos empregos, de forma a tomar em conta as competências mobilizadas, e a aumentar os salários das profissões precárias. Em 2009, um estudo britânico da New Economics Foundation tinha medido a remuneração dos empregos e tinha constatado que era inversamente proporcional à sua utilidade social. Uma situação que convida a rever a escala da consideração, do reconhecimento social e dos salários.

Nessa perspetiva, ferramentas teóricas nos quais dirigentes ou atores preocupados de uma sociedade mais justa podem apoiar a reflexão. Podemos mencionar pelo menos um, que permite construir uma classificação dos empregos que seja mais perto da sua utilidade instantânea e real. É a pirâmide das necessidades, também chamada pirâmide de Maslow, do nome do psicólogo americano que a elaborou – e a apresentou num artigo chamado A Theory of Human Motivation, publicado na revista Psychological Review em 1943. Trata-se de uma classificação hierárquica das necessidades humanas, declinada sob a forma de uma representação em pirâmide, permitindo explicar a teoria segundo a qual as motivações seguiriam uma hierarquia particular.

Esquema da pirâmide de Maslow.

A pirâmide concebida por Abraham Maslow (1908-1970) destaque cinco grandes categorias, indo do nível 1 (a base: as necessidades vitais) até o nível 5 (o topo da pirâmide: a necessidade de realização pessoal), dado que a passagem de um nível para o outro só pode fazer-se se a necessidade do nível inferior é satisfeito. Seria possível identificar, para cada um desses níveis, as diferentes profissões correspondendo para tentar elaborar uma nova classificação dos empregos, à luz da sua utilidade relativa ou do caráter prioritário e vital para o ser humano.

Assim, o nível 1 da pirâmide de Maslow corresponde às necessidades fisiológicas ligadas à sobrevivência dos indivíduos ou da espécie. São tipicamente necessidades concretas (respirar, beber, ir ao sanitário, comer, dormir, aquecer), que podem aparecer mais importantes do que a consciência se não são satisfeitas. A presença a esse nível do fato de procriar é sujeita a discussão, pois, útil à espécie, não parece necessariamente presente em todos os indivíduos. Nessa primeira categoria, podemos identificar os empregos do setor agro-alimentar, em primeiro lugar os criadores e os agricultores, e aqueles da venda de produtos alimentares e da restauração (padeiros, restauradores, etc.); o setor da água; o da energia doméstica; certos empregos técnicos nos permitindo assegurar as nossas necessidades (encanadores, eletricistas, etc.).

O segundo nível inclui a necessidade de segurança, que consiste a proteger-se contra os diferentes perigos que nos ameaçam. Recobrem a necessidade de um tecto acima de nós (apartamento, casa), geralmente possível graças aos pedreiros, arquitetos, engenheiros e obreiros do setor da construção; a segurança dos rendimentos e dos recursos, o que podemos identificar como os empregos de contabilidade, ou ainda os bancos de depósito; a segurança física contra a violência, a delinquência, ou ainda as agressões, graças aos serviços de polícia ou de bombeiros; a segurança moral e psicológica, a estabilidade familial ou, pelo menos, uma certa segurança afetiva e a segurança social (saúde) – nas quais podemos pelo menos mencionar os serviços e os trabalhadores sociais, os empregos de psicólogos ou de assistentes sociais, os conselheiros familiares, ou vários serviços de saúde.

Os dois níveis seguintes são complexos porque são associáveis a empregos de forma bastante confundida. Assim, o nível 3 é o da necessidade de pertença, de relacionamento, que revela a dimensão social do indivíduo que tem necessidade de sentir-se aceitado pelos grupos nos quais vive (família, trabalho, associação, etc.). Essa necessidade passa pela identidade própria (nome, sobrenome), e a necessidade de amar e ser amado. O nível 4, o da necessidade de estima, prolonga a necessidade de relacionamento: o indivíduo deseja ser conhecido como entidade própria no meio dos grupos aos quais pertence. Vemos bem que os empregos do ensino escolar por exemplo, acham o seu lugar nessas duas categorias ao mesmo tempo, contribuindo ao mesmo tempo a construir a instrução e a identidade da criança, e a situar-la numa sociedade na qual tem ela terá que aprender a sociabilizar (com regras, colegas, etc.

Enfim, o nível 5, a necessidade de realização pessoal corresponde ao topo das aspirações humanas. Tem como objetivo sair de uma condição somente material para realizar-se. É também a necessidade de participar, nem que seja um pouco, à melhoria do mundo. Podemos achar nesse nível os empregos artísticos e culturais, o setor do turismo, mas também as práticas espirituais (medicinas alternativas, meditação, ioga, etc.).

Obviamente, a pirâmide de Maslow é só um exemplo de ferramentas podendo servir de base a uma reflexão coletiva sobre a reconsideração das atividades vitais; não é perfeito, e pediria ser detalhado e usado tomando em conta vários parâmetros empíricos. Por exemplo, atores do alimentar como as sociedades de fastfood MacDonald e Burger King, ou como Starbucks, que alimentam as pessoas mas afetando a sua saúde física, e contribuindo à uma explosão de obesidade, podem ou não ser colocados na primeira categoria? Um emprego como o de publicitário, qualificado de bullshit job pelo antropólogo David Graeber, não pode ser identificado como favorecendo o sentimento de relacionamento de milhões de pessoas estimulando as suas compras numa sociedade de consumo? Ou servindo um consumo mais « razoável » em produtos de primeira necessidade, numa economia concorrencial onde a informação dos consumidores é suposta passar pela publicidade? Igualmente, a pirâmide não permite claramente de determinar-se sobre o lugar de muitas profissões, como os operários da indústria mineira, têxtil ou automóvel, ou como as zeladores e as faxineiras por exemplo. Igualmente, para as atividades desportivas, nas quais pode-se pensar ao mesmo tempo que elas contribuem à saúde física (nível 1), ao sentimento de relacionamento (nível 3) graças aos desportos coletivos, à necessidade de estima (nível 4) pela performance e a competição, e à necessidade de realizar-se (nível 5). E porque não, à necessidade de segurança (nível 2) no caso dos artes marciais, desportes de combate e aulas de auto-defesa.

Vemos bem que aquela ferramenta não basta, ou pode não ser relevante – podemos também notar que não foi feito especificamente para esse exército, inicialmente. Além disso, é preciso antecipar as críticas lembrando que o objetivo de conceber ou de recorrer a tal ou tal ferramenta não é sugerir que um advogado de negócios deveria ser pagado com um salário de faxineira, mas que a empregada de limpeza deveria ter um rendimento e um estatuto reconsiderados à luz da sua utilidade real – sem contar a dimensão ingrata das suas tarefas e dos esforços que ela fornece. Ainda mais, seria bem-vindo que acrescenta-se uma reconsideração do trabalho não comercial: o cálculo do PIB, cujo crescimento parece constituir o pilar dos governos e o parâmetro central das sociedades capitalistas, não integra nenhuma consideração sobre o impacto social ou ambiental de uma atividade, mas apenas o seu valor econômico comercial. É o que permite considerar um campo de monocultura intensiva de soja ou de trigo, destinado à exportação e recorrendo aos pesticidas e a adubos patenteados, como mais úteis do que a agricultura biológica – mesmo quando ela não estraga a terra, contribui a alimentar as pessoas e não participa ao desaparecimento dos insetos e dos aves. No âmbito de uma reflexão global com alvo reconsiderar as atividades humanas à luz da sua utilidade e do seu impacto, obviamente não podemos nos satisfazer de um tal modelo.

A crise do COVID-19 será a ocasião de reconsiderar os empregos « invisíveis » à luz de sua verdadeira utilidade?

Concentrar-se nos empregos essenciais para preparar um mundo futuro sustentável e desejável

Em 27 de Maio passado, o deputado francês François Ruffin (partido La France Insoumise, esquerda) propôs à Assembleia nacional francesa três novos artigos a acrescentar ao Código do trabalho para revalorizar o estatuto das faxineiras, em particular com um acesso aos mesmos direitos sociais que os salariados a tempo inteiro, e um sobrecusto de 50%, para as empresas que as empregam, das horas trabalhadas cedo de manhã (antes das 9h) e tarde à noite (após 18h). Uma iniciativa que podia trazer um pouco de justiça nesses tempos nos quais as desigualdades são notavelmente acentuadas, mas que, logo em comissão parlamentar, já tinha sido revisitada de tal forma pelos deputados da maioria liberal à Assembleia que aqueles elementos legislativos mais interessantes foram todos retirados.

Se voltamos sobre a crise do COVID-19 e a situação particular que foi o confinamento, a questão de saber o que consideramos como « atividade essencial » pode parecer complexa. Por exemplo, o emprego de entregador é ou não é indispensável, ao ponto de dever expor os empregados de Amazon, de UPS ou de eBay? Devem ou não devem tomar riscos e expor-se ao vírus nas fábricas e na entrega para assumir a comanda de bens e serviços que não são sempre essenciais? Aliás, certas dessas empresas aproveitaram dessa confusão para continuar as suas atividades de entrega durante o confinamento, inclusive o fornecimento de produtos que não eram indispensáveis. O desenvolvimento do setor da logística de transporte, intrínseco à globalização dos câmbios, deve ser visto num contexto de uma subida das desigualdades de rendimento – os mais ricos podendo pagar para o luxo de ficar seguro, longe do vírus, expondo trabalhadores precários ao risco de contaminação ao vírus. Tal como na altura do serviço militar obrigatório, quando havia famílias com capacidade de pagar para evitar o recrutamento aos seus rapazes.

Compostos muitas vezes de pessoas originários das classes mais ricas, ou no mínimo do topo da classe média, os governos europeus não querem designar empregos essenciais e outros não essenciais, com pretexto o fato que muitas atividades são aninhadas, interligadas. Mas houve discursos contraditórios, uns membros de governo incentivando os trabalhadores a ir trabalhar, outros chamando a um confinamento completo. O mais simples, num espírito de mobilização geral, teria sido provavelmente de designar alguns empregos particularmente necessários – por exemplo, aqueles que permitiam a produção dos elementos de proteção (máscaras, luvas, aparelhos respiratórios e de saúde, etc.). Tal como teria sido relevante requisitar as indústrias podendo ser orientadas nos produtos de saúde que eram indispensáveis.

Em vez disso, fora de raras excepções, muitos dos poderes dos países ocidentais adoptaram medidas de emergência com bilhões de euros de apoio a empresas, sem condições ou contrapartidas particulares, ou seja, a empresas que às vezes tinham práticas de evasão fiscal, ou particularmente poluentes. Medidas também de flexibilização do mercado do trabalho. Compras também de drones para vigiar as populações e assegurar o estado de confinamento. Ou ainda a implementação de aplicações digitais móveis para vigiar, seguir e alertar sobre casos de pessoas doentes e a gente que as frequentaram recentemente). Só alguns governos de esquerda, por exemplo em Portugal ou na Espanha, adoptaram medidas sociais importantes, temporais ou sustentáveis, como a regularização de todos os imigrantes ilegais (para poder os curar ao mesmo título que o resto da população), ou ainda a adopção de um imposto sobre os mais ricos. Muitas pessoas constataram os limites do modelo de desenvolvimento e de câmbios ocidental, promovido pelo mundo há décadas, mas muitas vezes os políticos revelam-se incapazes de tirar as lições da crise (Que lições tirar da crise do COVID-19? (1/2) Meio ambiente, hierarquia social, trabalho: uma revolução das prioridades?).

A maioria das medidas não mostraram uma reflexão séria sobre o fortalecimento da responsabilidade do pessoal político, mas mais um fortalecimento dos meios de vigilância e de repressão dados ao governo contra as populações. As subidas das dívidas podiam servir de pretexto a medidas importantes de austeridade orçamental, novas privatizações, e finalmente uma retirada franca do Estado em certos setores da economia. A famosa « estratégia do choque » (Shock Doctrine) dos meios liberais da Escola de Chicago na década de 1970, teorizada em 2007 pela jornalista norte-americana Naomi Klein (Que lições tirar da crise do COVID-19? (2/2) Reforma pós-crise do modelo econômico: quais riscos, quais oportunidades?). Outro sintoma revoltante: em 28 de Abril, em pleno confinamento, a Comissão europeia anunciou ter concluído com o México um acordo de livre-comércio que levaria a quase totalidade dos direitos de alfândega nos produtos trocados com a União Europeia. Longe, bem longe de promover uma relocalização das nossas produções, os dirigentes europeus perpetuam a loucura de um capitalismo livre-cambista globalizado. Difícil imaginar, nesse contexto e com uma tal classe dirigente, que os trabalhadores « invisíveis » dos hospitais, das caixas de lojas e supermercados, etc., poderão retirar algum proveito dessa crise.

*  *  *

No texto a seguir, extrato do livro Bruxas. A potência invicta das mulheres publicado em 2018, a ensaísta francesa Mona Chollet volta sobre o lugar sistematicamente subalterno dado às mulheres, quando elas conseguem integrar setores profissionais – contribuindo à sua desconsideração social e aos suas fracas rendas:

No trabalho também, corremos o risco de ser « fundidos ». Acontece a mesma sujeição, a mesma redução a um papel estereotipado. A repressão das prestadores de cuidado – curandeiras dos campos ou parteiras oficialmente reconhecidas – e a instauração de um monopólio masculino sobre a medicina, surgidas na Europa da Renascença e nos Estados-Unidos no final do século XIX, o ilustram de forma exemplar: quando as mulheres serão autorizadas e voltar na profissão medical, será como enfermeiras, ou seja, na posição subalterna de assistentes do Grande Homem de Ciência, que lhe confiaremos em nome das suas « qualidades naturais ».

Mona Chollet, Bruxas. A potência invicta das mulheres (2018), extrato do Capítulo 1 « Uma vida para si. O flagelo da independência feminina ».

Para ilustrar essas posições subalternas, a autora nos lembra uns dados ilustrativos particularmente eloquentes:

Hoje em dia, em França, não só muitas trabalhadoras são a tempo parcial (um terço das mulheres, contra 8% dos homens) e portanto não têm independância financeira – ou seja, independência, ponto final –, mas elas são circunscritas em profissões ligadas à educação, ao cuidado das crianças e dos idosos, ou em funções de assitência: « Quase metade das mulheres (47%) concentra-se sempre em uns dez empregos como enfermeira (87,7% de mulheres), apoio domiciliário ou assistente maternal (97,7%), empregada de limpeza, secretária ou professora. »

Mona Chollet, Bruxas. A potência invicta das mulheres (2018), extrato do Capítulo 1 « Uma vida para si. O flagelo da independência feminina ».

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