Como repensar a nossa relação ao tempo?
As crises sucessivas que conhece a sociedade ocidental, produtivista e consumista, a última sendo a ligada ao COVID-19, convidam, tal como a degradação dos ecossistemas (que acelerou-se nos últimos anos), a reflectir sobre a relevância este modelo de desenvolvimento. Ainda mais porque o sistema capitalista, o qual favoreceu o uso de combustíveis poluentes, desde a Revolução industrial, permitiu o consumo de massa, desde a Segunda Guerra mundial, e estabeleceu a liberalização gradual mas todavia radical da economia, desde a década de 1980, não assegura nem a felicidade, nem o bem-estar das pessoas. No conjunto de elementos a questionar, a nossa relação ao tempo, particularmente malsã, aparece determinante, pois, baseada na ideia de crescimento e de optimização perpétuos, é em muitos aspetos contraditória com a construção de um mundo pós-combustíveis fósseis que seria mais frugal, realmente respeitoso do vivente e onde os laços humanos seriam novamente colocados no centro de tudo. Olhar sobre uma « corrida contra o tempo » incompatível com a construção de um modelo de sociedade verdadeiramente alternativo, sustentável e desejável.
Há uma coisa que a crise com o COVID-19 nos permitiu reconsiderar, foi a nossa relação ao tempo. Claro, toda a gente não foi obrigado a confinar-se ou a tele-trabalhar, e aliás, a assimetria das situações revelou-se muitas vezes terrível. Mas para muitos, os que estiveram em desemprego técnico ou parcial, que foram obrigados a confinar-se, ou que puderem tele-trabalhar, foi realmente a ocasião de dar uma parada. Num mundo onde nos é pedido sempre mais performance, mais eficiência, mais produtividade, num mundo onde nos acostumamos a ter qualquer serviço ou bem de consumo sem prazo, graças à instantaneidade das comunicações e à revolução logística da entrega a domicílio para qualquer coisa (em particular a comida), um tal abrandamento não foi sem importância. Tudo não mudou, claro. E até alguns efeitos perversos foram acentuadas por essa sequência pandêmica. Sobre-consumamos produtos digitais para compensar o tédio, para ocupar os tempos livres, e as entregas em domicílio explodem (em Março de 2020, Amazon anunciou recrutamentos enormes para responder ao aumento dos pedidos). Outro exemplo, pessoas vulneráveis: imigrantes ilegais, estudantes pobres, idosos precários, etc. ficaram ainda mais isolados do que antes... Iniciativas de autarquias, de associações locais ou de simples cidadãos, felizmente permitirem, muitas vezes, organizar ações de solidariedade bem-vindas.
Mas de forma geral, o confinamento ofereceu-nos um bem precioso, tempo. A ocasião de tomar tempo para si, tempo para sua família, tempo para descansar. Além disso, o consumo de ferramentas digitais pode ter aspeto positivo, quando traduz-se por mais saber, mais cultura... Por exemplo, plataformas ou instituições musicais ou cinematográficos (óperas, centros culturais, etc.) coloram os seus conteúdos acessíveis gratuitamente durante o confinamento.
O confinamento foi então a ocasião, para muitos, de tomar tempo com a sua família – e não só num tempo consagrado como durante as férias escolares. Ocasião também de dedicar-se a o que não costumamos ter tempo de fazer – ler, talvez? A nossa sociedade fez do trabalho um vetor (o único vetor?) de emancipação, para na verdade mais submeter o humano aos interesses de um capitalismo super-produtivista. Desde décadas, é nessa mentalidade que as nossas elites políticas, econômicas e nas mídias condenam o princípio de redução do tempo de trabalho, seja o tempo de trabalho semanal, seja o tempo de trabalho até a idade da reforma. A melhoria do nível de vida foi ligado, ao longo do século XX, à redução do tempo de trabalho, diário, semanal e na vida, em particular com a diminuição da idade mínima para aposentar-se. No entanto, esses progressos sociais relativos ao tempo de trabalho foram, em muitos países, criticados e atacados, notavelmente no âmbito da desregulação do mercado do trabalho e da liberalização da economia na União europeia. Na França por exemplo, é preciso « trabalhar mais para ganhar mais », e é com essa ideia que horas extras são isentas de impostos, e portanto incitadas. Só com o retorno do Partido socialista no poder em 2015, apoiado então pela extrema-esquerda, é que o Portugal voltou aos 35 horas por semana na função pública. Na Alemanha, só se aposenta aos 67 anos de idade, no mínimo, e aos 65 anos na Itália (para os homens), na Grécia (para os homens), na Bélgica, no Dinamarca, na Suêcia e na Espanha. No Portugal, é com mais de 66 anos.
Como era previsível, o ritmo de visa pós-COVID voltou ao mesmo do que antes da crise, sem verdadeira ruptura, em termos de relação ao tempo, ao consumo, aos lazeres, ao trabalho... A grande maioria das pessoas querem voltar no fastfood, pedir comida a distância, pegar avião para reduzir os tempos de transporte, comprar smartphones e outros comprimidos de toque sem preocupar-se dos impactos socio-culturais e ambientais, enfim, estar em situação de poder consumir o mais rapidamente e o mais facilmente possível.
Estação ferroviária de Lyon, em Paris (França). A sinalização do tempo, dos horários, é onipresente.
A nossa relação ao tempo é profundamente humana. É o próprio resultado do nosso desenvolvimento cognitivo. Por lembrança, de forma esquemática, o nosso cérebro compõe-se principalmente por três partes, incluindo várias estruturas ligadas entre elas, por uma rede complexa de circuitos neurais: o cérebro arcaico (também chamado « reptiliano »), a parte a mais antiga, que inclui o tronco cerebral e o cerebelo, e gerencia funções primárias (respiração, frequência cardíaca, pressão sanguínea, sono, equilíbrio, reações instintivas diante do perigo...) ; o cérebro emocional (ou « sistema límbico »), incluindo um conjunto de estruturas complexas ligadas entre elas (a amígdala, o hipocampo, o hipotálamo, o córtex cingulado, o córtex pré-frontal…), que permitem sentir emoções, temperadas pelo neo-córtex; e o cérebro superior, ou « neo-córtex », precisamente. Dividida em lóbulos (frontal, parietal, temporal e occipital), essa terceira parte representa 85% do volume cerebral total, e lidera a consciência, a linguagem, as capacidades de aprendizagem, as percepções sensoriais, as comandas-motores voluntárias, a presença no espaço... e a noção do tempo. O neo-córtex permite a reflexão, o raciocínio, a criatividade, a imaginação, a manipulação de conceitos, mas também a consciência de si, a empatia, e, o que nos interesse mais aqui, a planificação, a resolução de problemas, qui incluem a necessidade de ter noção do tempo.
Assim, o cérebro arcaico gerencia os ritmos primários, indispensáveis à vida, que, originalmente, estrutura a nossa gestão do tempo: o ritmo adoptado pelo bebê para mamar, mas também os ciclos circadianos (dia, noite, sono), supradianos (ciclos mensais, hibernação, migração) e infradianos (apetite, secreções hormonais). Mas as partes « superiores » do cérebro são aquelas que permitem a memória, a qual permite tanto a aquisição da linguagem como também uma modificação profunda das nossas percepções visual, temporal e espacial. O lobo frontal permite a gestão do tempo presente, e dai, a planificação.
É notavelmente por isso que as crianças não têm a mesma noção do tempo do que os adultos. Pois a estrutura do cérebro que permite gerir as emoções, tal como a (neo-córtex) que gerencia a memória e permite tomar consciência do tempo (passado, presente e futuro, ao curto e ao longo prazo), não existem ainda quando a criança nasce. Elas são criadas quando cresce a criança, durante os seus três ou quatro primeiros anos de vida.
Claro, os outros seres vivos não estão sem nenhuma noção do tempo, nem sem planificação nenhuma. Mas a visão que eles têm é fundamentalmente diferente da dos seres humanos. De alguma forma, a concepção humana do tempo é também revolucionada pela consciência que temos de nós mesmos, pela possibilidade da nossa não-existência – dito de uma outra maneira, temos consciência da nossa própria morte. A consequência sendo que, além dos instintos primitivos ligados à sobrevivência, característicos a todos os seres vivos, o humano procura sempre, quase conceitualmente, a adiar o prazo da morte. No seu livro Sapiens – Uma breve história da humanidade, publicado em 2015, o historiador israelense Yuval Noah Harari explica muito bem os esforços feitos desde séculos pelos humanos para conseguir à vida eterna – pela melhoria da saúde, pelo desenvolvimento da engenharia biológica e da inteligência artificial, etc. Essa relação à morte, e portanto à vida, ao sentido que lhe damos, às realizações que fazemos na vida, é particular. Será que já viu-se um cão, uma girafa ou um macaco estabelecer uma Bucket List, com « objetivos », com « coisas para fazer » antes do fim da sua vida ?
Num mundo estruturado pelo sistema capitalista, onde as relações entre humanos são muito marcadas pelo peso dos câmbios comerciais, e onde os ritmos de vida são caracterizados por ciclos de produção, de distribuição e de consumo pós-industriais, o tempo toma obviamente um lugar particular, pois é medido monetariamente. Torna-se... dinheiro. Quase literalmente. O tempo de trabalho, as horas de trabalho que cumulamos e que acrescentamos ao nosso estoque de dinheiro já poupado, transforma-se em salário a mais. A nossa poupança, graças aos interesses concedidos pelos bancos, ou ainda o nosso capital imobiliário, como antigamente as terras, graças a renda de aluguel por exemplo, cria dinheiro. Da mesma forma, um empresto no banco traduz-se, ao longo do tempo, por um reembolso da dívida, e pelos interesses a pagar.
No mundo ocidental agora dominado pelo setor terciário e caracterizado pela digitalização e pela robotização das relações sociais e dos padrões de produção e de consumo, a noção de tempo é ainda revolucionado. Foi transformado logo no século XIX com a Revolução industrial, o exemplo o mais conhecido sendo o desenvolvimento do comboio, que reduz os tempos de transporte e obriga os Estados, por motivos logísticos óbvios, a harmonizar e a enquadrar os fusos horários. No seu livro, Yuval Noah Harari explicou, no capítulo « A Revolução permanente »: « Ao contrário dos camponeses e sapateiros da Idade Média, a Indústria moderna preocupa-se pouco de sol e das temporadas. É a precisão e a uniformidade que ela sanctifia. Numa oficina medieval, por exemplo, cada sapateiro fazia a totalidade do sapato, desde a solda até a fivela. Se um ficava atrasado no trabalho dele, não paralisava os outros. Na linha de montagem de uma fábrica moderna, pelo contrário, cada operário faz funcionar uma máquina que só produz uma pequena parte do sapato e depois a deixa continuar até a máquina seguinte. [...] Toda a gente é [portanto] sujeito a horários particulares. » E toda a sociedade adaptou-se a esses novos ritmos. Foi assim para todos os serviços, públicos e privados: a escola, a administração, o hospital, mas também o café, o restaurante, o banco, os programas TV, etc. Nasceu da aceleração dos transportes e dos câmbios tudo um sistema de fuso horário mundial, sincronizado até a menor fracção de segundo.
Esse fenômeno foi globalmente acentuado pela chegada do carro, do avião, do comboio de alta velocidade (TGV), e especificamente na cidade, dos bondes elétricos, ou ainda do metrô. Mas ainda pela invenção do telégrafo, do telefone, e depois de Internet. Agora, essa corrida para « poupar » tempo atingiu um grau nunca conhecido na História. Os « ganhos » de tempo traduzem-se também por ganhos de dinheiro para as empresas que lançaram-se na robotização, na mecanização e na digitalização. A robotização das caixas de supermercados, por exemplo, ou ainda o check-in online para pegar um avião, dão a ilusão aos consumidores de ganhar tempo, mas esse tipo de transformação, além de provocar o desaparecimento da relação humana na transacção, significa também o desaparecimento do tempo trabalhado (e portanto do salário) do empregado que foi substituído por uma máquina.
Como já o tratamos num artigo de Abril de 2019, a revolução tecnológica e as revoluções económicas e sociais ligados a esse fenômeno de robotização de massa são fontes de uma grande reflexão sobre a relação das nossas sociedades com o trabalho, o tempo e as questões sociais (Renda básica universal: uma ideia inovadora que permanece desconhecida). Segundo o Institute for Information Technology da Universidade Rice, no Estado do Texas, mais de metade da população mundial pode ao longo prazo ver o seu emprego ameaçado pela robotização e os progressos da inteligência artificial. A informatização ameaça sobretudo os empregos rotineiros, cujas tarefas previsíveis são facilmente automatizadas, para os empregos de escritório como para o trabalho manual. Por lembrança, só no ano 2016 por exemplo, na Europa, são 10 000 filiais bancárias que fecharam, e 50 000 empregos suprimidos, por causa do desenvolvimento dos bancos online. E isso vale para muitos setores. As comandas, a gestão de atividades online, têm um impacto sobre o trabalho de milhões de pessoas. Dai, o direito do trabalho é profundamente afectado, como o ilustram os fenômenos de uberização e o sucesso das comandas online. A regulação entre a oferta e a procura é cada vez menos ligado ao trabalho de empregados com contratos de trabalho, e cada vez mais ao trabalho de « independentes » precarizados (que terminam um processo de entrega ou um serviço de comanda online); e, mais preocupante ainda, é cada mais o fato de « condições gerais de uso », aquelas famosas células que marcamos (sem nunca ler o que elas induzem) ao final de muitas das comandas que realizamos nas plataformas online.
Vemos bem o laço óbvio entre essa relação cada vez mais « contabilístico » do tempo e o desenvolvimento da sociedade produtivista e consumista. Esses fenômenos são acentuados pelo desenvolvimento da digitalização e da robotização. É também verdade no setor agro-alimentar, suposto ser totalmente ligado aos ritmos temporais da natureza. « Desde a revolução científica e industrial, a tecnologia e a economia fortalecerem mutualmente a hipótese que os limites da natureza devem ser ultrapassados para criar abundância e liberdade, explicava a ativista ecologista indiana Vandana Shiva no livro Ecofeminismo (1993). A agricultura e a produção alimentar ilustrem como a superação desses limites conduziu ao desmantelamento dos sistemas ecológicos e sociais. Durante séculos, sociedades agrícolas operaram em conformidade com os limites da natureza para assegurar a capacidade de renovação da vida vegetal e da fertilidade dos solos. Mas os processos naturais para essa renovação foram vistos como obstáculos que deviam ser vencidos. As sementes e os fertilizantes produzidos industrialmente foram considerados como substitutos superiores às sementes e aos fertilizantes naturais. » Porque ela escapa ao fenômeno de comercialização, e portanto à criação de lucros para as grandes empresas de distribuição, e, sobretudo, porque o seu ritmo é ligado demais, condicionado demais à natureza, a agricultura tradicional e de subsistência é desconsiderada pelos industriais e os investidores liberais. « As vias naturais para renovar as plantas são deixadas de lado por serem lentas demais e "primitivas" demais », acrescenta Vandana Shiva.
A necessidade de reconsiderar a nossa relação ao tempo
Num contexto caracterizado pela reflexão sobre o desenvolvimento sustentável, ao qual acrescenta-se o choque ligado à crise do coronavírus, poderíamos resumir assim o dilema: o futuro da humanidade será condicionado ao desenvolvimento da 5G (Quinta geração de Internet móvel), que deve ainda acelerar a difusão dos dados digitais e melhorar as conexões Internet, ou ao questionamento do modelo observado desde décadas, ao benefício dos laços humanos? A nossa relação ao tempo toma um lugar central nesse debate. Para mudar de modelo, convém aceitar em primeiro lugar o princípio de « tomar tempo », de « perder tempo ». Enquanto as pessoas não aceitam essa ideia, nenhuma revolução será verdadeiramente possível, nenhuma mudança de modelo significativo pode ser seriamente considerada.
Que significa concretamente reconsiderar a nossa relação ao tempo, « tomar o tempo »? Significa, por exemplo, não consagrar em modelo de consumo o fato de poder comandar de maneira regular comida preparada entregada ao preço de condições deploráveis para os entregadores. É preciso tempo para escolher os seus produtos, produtos de qualidade, e para cozinhar. Re-apropriar-se a alimentação. A nossa relação às temporadas, já o abordamos um pouco com a reflexão de Vandana Shiva em Ecofeminismo, foi revolucionada pela urbanização, a qual rompeu o nosso laço com a natureza há mais de um século. E o nosso conhecimento das temporadas e dos ciclos vai provavelmente ainda enfraquecer-se com as perturbações ligadas à mudança climática. Nos acostumamos a comer frutos e legumes fora de temporada, ao ponto de jà não saber o qual é suposto ser comido em tal ou tal temporada. Alimentos como tomates são manipulados geneticamente para resistir melhor às variações climáticas e ao tempo que passa. Igual para as criações de gado e de peixe, que são organizadas para poupar espaço e tempo, ao custo das condições de vida dos animais. A alimentação e os hormones que lhes injectamos têm como objetivo acelerar o crescimento dos animais criados, de maneira totalmente artificial. Os escândalos naquele setor são muitos e deveriam ter provocado há muito tempo um choque salutar. Não é o caso. Vivemos num mundo onde bilhões de consumidores são convencidos que um supermercado vendando frangos congelados produzidos em série ou legumes fora de temporada é sinônimo de « progresso ».
Sim, fornecer com produtores locais, ou por cadeias de abastecimento curtas, pode tomar um pouco mais tempo do que ir no supermercado. Talvez até pode ser um pouco mais caro. Mas esse sobre-custo, que traduz-se por um ganho de qualidade, deve nos convidar a um pouco mais de sobriedade. Acreditar que os preços relativamente baixos dos produtos comprados em supermercados não escondem, de fato, uma fatura que teremos que pagar um dia ou outro, essa é a ilusão. Além disso, há como contestar a relevância de um modelo no qual o consumo de produtos doces ou salgados de baixa qualidade (algumas pastas para barrar industriais, certas batatas fritas, tipos de rebuçados, etc.) seria considerado como normal.
Esses assuntos têm a ver com a nossa relação ao tempo, e por isso, tomar o tempo para fazer as coisas sozinho, para entender as coisas, entender os mecanismos de produção e de consumerismo da nossa sociedade, para desconstruir certezas do dia a dia, é uma abordagem que opõe-se ao capitalismo absoluto, ao tudo mercantil. Até do século XIX, os indivíduos, e em particular as mulheres, fabricavam muitos bens em casa: as roupas, os lençois, a sabonete, a comida (inclusive produtos transformados como a mantega, o doce, etc.), eram costurados, preparados, cosinhadas no lar. Com a Revolução industrial, e mais tarde com a sociedade de consumo de massa, após 1945, aprendemos que o « progresso » induz ter tudo já pronto logo que é comprado, de preferência em supermercado. As coisas feitas em casa perdem valor, e até podemos dizer que as tarefas domésticas tornam-se desvalorizante socialmente. Essas evoluções significaram uma desvalorização da produção feminina (pois durante muito tempo, as mulheres eram muito menos nas fábricas, e menos pagas), e as mulheres foram gradualmente limitadas à área doméstica, com o único objetivo de ocupar-se do lar (o entreter, o embelecer) e criar as crianças – como o escreveu muito também Silvia Federici, universitária e ativista feminista italiana, no seu ensaio Calibã e a bruxa (2014), saida da produção, as mulheres foram dedicadas por força à reprodução. É preciso inverter a hierarquia dos valores herdados da Revolução industrial e da era do consumo de massa, para revalorizar o tempo dedicado à área doméstica, à melhoria do estílo de vida, ao custo da área mercantil. Então, tomar o tempo de preparar-se comida, não ir no fastfood ou comprar tudo já preparado, reaprender os ritmos das temporadas dos frutos e legumos, e até (quando é possível) ter a sua horta, consumir os seus próprios produtos, tomar esse tempo, não só contribui a melhorar incontestavelmente o seu próprio consumo, como também constitui também um ato cidadão muito forte. Igual em outras áreas: tomar o tempo mde ir em livraria em vez de o encomandar online, costurar ou remendar para « consertar » em vez de jogar no lixo e coprar de novo, são tantas coisas que pedem tempo mais que são socialmente e ecologicamente positivas.
A questão do tempo de trabalho na semana condiciona o tempo que podemos dar à coletividade, a ações cidadãs, a voluntariado, à reflexão pessoal, à troca coletiva, à participação a orgãos ou processos consultativos locais como conselhos de bairro, etc. Enfim, O tempo de trabalho condiciona o fato de ser cidadã ou cidadão ativo ou passivo. E impacta também o tempo consagrado às crianças. Será que cuidamos da ou das nossas crianças no tempo livre que nos é autorizado, à noite ou nos finais de semana, ou será que damos às crianças um estatuto de pessoa, em si, de cidadã ou de cidadão em construção, que perece que dedicamos tempo para sua educação? A escolha da idade de ida à reforma; do horário semanal de trabalho; a indemnização do tempo doméstico (para um homem ou uma mulher que deixou o emprego por tal ou tal movito pessoal) por exemplo com a renda básica universal; ou ainda o potencial prolongamento da licença parental; isso tudo são problemáticas que determinam a nossa abordagem das questões tratadas aqui em cima.
Revolucionar a nossa relação ao tempo deve obviamente traduzir-se também no setor dos transportes. Como pensar um mundo sustentável onde ainda seria possível pegar um avião de forma totalmente livre, sem nenhum limite? Na medida em que uma verdadeira democratização desse modo de transporte não seria, claro, sustentável em termos ecológicos, é preciso, por motivo de equidade e de justiça, questionar as liberdades relativas ao setor aérea en général. Caso contrário, as desigualdades permanecerão grandes. As ideias nessa temática são potencialmente muitas. A escolha de diminuir o ritmo das viagens deve claramente traduzir-se por decisões em termos de infra-estruturas. Porqué construir um quarto terminal no aeroporto de Roissy-Charles de Gaulle, na região de Paris, em França, que vai acrescentar 40 milhões de voos a mais por ano (o equivalente de Paris-Orly)? Porqué agarrar-se ao projeto de Linha a Grande Velocidade (LGV) Lyon-Turim apesar da oposição dos habitantes das áreas atravessadas, mobilizados há quase um quarte de século? Igual para o crescimento do atual aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, que já conhece recordes de passageiros (31 milhões só em 2019), e ao qual vai ser acrescentado um segundo aeroporto em Montijo, na periferia próxima do centro da capital: sem mesmo falar dos impactos negativos para os habitantes da área em questão, será que esse tipo de iniciativa corresponde a uma visão sustentável do desenvolvimento? A escolha de construir novas auto-estradas, novas infra-estruturas aeroportuárias, novas linhas de transmissão e novos cabos Internet, deve ser feita de forma transparente, democrática, e razoável. Além disso, outras iniciativas ainda são possíveis. Pode-se por exemplo proibir qualquer linha aérea doméstica, ou pelo menos qualquer uma que não permite poupar tempo significativo em comparação com o comboio – por exemplo, onde o avião representa um ganho de tempo inferior a 2h30 de tempo em relação ao comboio, a linha poderia ser fechada. O objetivo ai é claramente reduzir as emissões de carbono.
Outra opção: dar a cada pessoa um número máximo de miles que pode percorrer de avião – com a possibilidade ou não de cumular os miles, por exemplo. Ainda uma outra pista de reflexão, mais radical ainda, mas também mais ambiciosa: proibir todos os voos comerciais desde ou para cidades que não ultrapassam um certo número de habitantes, por exemplo um milhão, ou um meio-milhão. A ideia por trás sendo que os fluxos aéreos, muito poluentes, devem concentrar-se nos polos de população os mais importantes, e que outros modos de transporte – o comboio em particular – devem completar as viagens se necessário. Podemos pegar um exemplo concreto. Se desejamos partir de férias para Sarajevo (400 000 habitantes), na Bósnia-Herzegovina, ou ainda para Ljubljana (280 000 habitantes), na Eslovénia, teríamos necessariamente que aterrar numa « grande » cidade relativamente próxima, por exemplo Belgrado (1,375 milhão), Viena (1,9 milhão de habitantes), ou eventualmente Zagrebe (810 000 habitantes) – e completar o resto do trajeto por autocarro ou comboio. Também pode-se pensar excepções no caso em que as cidades foram capitais de Estado. Enfim, num tal formato, as próprias companhias aéreas poderiam adaptar-se e propor viagens multi-modais. Claro, pode deixar os tempos de transporte mais cumpridos. Mas se questionar a nossa relação ao tempo não induz « tomar tempo », e portanto « perder tempo », então significa que não estamos pronto para mudar de modelo. E apropriar-se esse assunto, é pelo contrário abordar de forma mais serena eventuais « percas de tempo » – esta formulação mesma sendo também questionável, pois o tempo de transporte por comboio ou de autocarro pode ser um tempo de leitura, de sono, de conversa com o seu vizinho de assento, de tele-trabalho, etc.
Pensar obstáculos à mobilidade é essencial: se nos baseamos só na boa vontade das pessoas, os esforços permanecerão insuficientes para mudar os comportamentos globais. As pessoas que, sinceramente, limitem o consumo de carne, não vão necessariamente reduzir os seus transportes de avião, e vice-versa. Entende-se bem que num mundo onde somos incentivados a sempre consumir mais, é difícil ser exemplares, e ainda mais em todos os assuntos. Por isso as autoridades públicas estão ai para estabelecer limites, para incentivar comportamentos virtuosos, para impor regulamentos às vezes drásticos. Se necessário, estão ai para dirigir a economia ou até planejar a produção em certos setores. Aliás, elas deveriam também começar, na perspetiva do passagem do « pico do petróleo » a curto prazo, a planificar a « descida energética », retomando uma expressão teorizada por Rob Hopkins, ensinante britânico em permacultura, em Manual de Transição (2008), a fim de pensar nas melhores condições e com antecipação um mundo pós-combustíveis fósseis, mais resiliente, realmente sustentável e desejável. Os investimentos públicos devem ser orientados nesse sentido. Por exemplo, a escolha do desenvolvimento do TGV há décadas na Europa de Oeste, ao custo das linhas « secundárias », ao risco de isolar pequenas cidades ou aldeias, respondeu certamente aos desafios de inovação da indústria do carril, mas também ao imperativo explícito de reduzir as distâncias entre as grandes metrópoles – e portanto de « ganhar » tempo. Mas os custos de investimentos e de manutenção, tal como certas péssimas opção na gestão do setor do carril nas últimas décadas, podem ter provocado às vezes aumentos contínuos – e cada vez mais insuportáveis e injustificado para muitos cidadãos – do preço do bilhete de comboio; foi verdade no Reino-Unido desde a década de 1980, e agora na França desde vinte anos. Contudo, sem renunciar a todas as linhas de grande velocidade, haveria como manter um comboio de qualidade (e todavia rápido) sem no entanto limitar-se ao único TGV.
Mudar a nossa relação ao tempo, isso significa também reconsiderar o nosso tempo de trabalho. Não considerar o fato de produzir ou a competição como um objetivo em si. Esse mundo, o modelo econômico e social constrói há dois séculos, mostrou todos os seus limites, várias vezes, as últimas vezes com a crise de 2007-2008, e de novo com a crise que está em curso em 2020 após o confinamento ligado ao COVID-19. Uma melhor partilha do tempo de trabalho entre os indivíduos, e uma melhor repartição dos tempos do salariado, de lazeres e de voluntariado, parecem incontornáveis num futuro cada vez mais dominado pelo desemprego de massa, pela parcelamento do mundo salariado, e pela importância da robotização e da digitalização. Quem pode pensar que os ritmos de trabalho observados em certos empregos representem um futuro desejável e sustentável?
Certamente, as políticas liberais que implementaram-se na Europa desregraram o código do trabalho relativo ao tempo quotidiano e semanal, no Reino-Unido desde a década de 1980, a Alemanha e relativamente a França também desde os anos 2000, e os países que sofrerem dos planos de austeridade da Troïka (UE, BCE, FMI) desde 2008-2009: excepções no trabalho noturno ou no trabalho nos domingos, defiscalização das horas extraordinárias, etc. Mas constatamos o impasse no qual esse modelo nos conduz. Entre o entregador Deliveroo ou Uber Eats, obrigado a multiplicar as comandas além do razoável para poder ganhar um mínimo de renda para viver, e a enfermeira ou a paramédica que cumula horas de trabalho sem pausa e as tarefas de cuidado e administrativas, por causa da redução dos efetivos no seu serviço, há algo que não funciona certa. Em certos lares de idosos, pede-se ao pessoal (às vezes subcontratado, portanto com um estatuto contratual precário) de cronometrar as suas tarefas para medir a sua « produtividade » (um quarto de hora para limpar um idoso, por exemplo), como se o tempo passado com cada paciente não necessitasse mais do que a acumulação de gestos mecánicos visando a atingir o objetivo estabelecido... Num outro setor, a distribuição, por lembrança, em França, no département do Norte, em Novembro de 2016, uma empregada de 23 anos tinha sofrido um aborto espontâneo em caixa (diante dos clientes), num Auchan City onde ela trabalhava, porque a sua superior hierárquica proibiu-lhe deixar a caixa, nem seja para pegar uma pausa. Vemos bem que, desde o coronavírus, é tempo de reconsiderar a hierarquia das prioridades e das profissões (A crise do COVID-19 será a ocasião de reconsiderar os empregos « invisíveis » à luz de sua verdadeira utilidade?), para valorizar os empregos realmente úteis, ao custo dos bullshit jobs e dos empregos quadros não indispensáveis, mas também de repensar a relação ao trabalho em geral.
Reaprender a « tomar o tempo » deve acompanhar-se de uma reflexão sobre a sobriedade em geral. Pois não usar o seu tempo só para produzir, consumir, produzir, consumir, deve fazer-se também, se focamos numa perspetiva de modelo de sociedade realmente sustentável, com o objetivo de redução do crescimento produtivista e poluente, ou até de diminuição. Valorizar a noção de sobriedade, isso pode fazer-se em vários setores. O agro-alimentar, isso já foi dito, mas também a acumulação de bens não indispensáveis. O que supõe notavelmente de questionar a dimensão social que reconhecemos às coisas materiais. Não considerar mais que ter um carro, um televisão ou o mais atual bem high-tech é uma prova em si de o que valemos socialmente. A sobriedade digital é uma noção essencial a apropriar-se se queremos pensar de maneira credível um mundo realmente sustentável, dado tanto à poluição ligada às novas tecnologias (em particular a extração de metais raros presentes nos smartphones, nas tabletes tácteis, nos carros ou ainda nas televisões), como também à procura de energia considerável necessária ao bom funcionamento das ferramentas digitais (fluxos de informação Internet, memória no cloud, etc.). Além disso, o assunto não é desconectado da temática do tempo que passa: o uso cada vez mais sistemático e importante das tecnologias móveis afecta consideravelmente a nossa noção do tempo, tal como a nossa capacidade de interação humana, a socialização, a empatia em geral.
Enfim, não podemos concluir esse artigo sem mencionar também as lições políticas a tirar desta reflexão. Pois nos sistemas democráticos, a questão do tempo é central. De fato, a democracia pede tempo. Ela pede de tomar tempo para consultar, debater, concertar-se... Pegar o tempo necessário para debater dos assuntos importantes não é óbvio para todos, e contudo, é uma das condições para uma democracia sã. O tempo da discussão e do diálogo não é uma perca, mas sim um ganho em informações e em câmbios, que enriquece os nossos regimes políticos e fortalece a sua legitimidade.
O nosso mundo considera cada perca de tempo como um fracasso, como um passo para trás, enquanto « tomar o tempo », « levar tempo » – em particular para não fazer nada, ou não fazer nenhuma atividade comercial – tornou-se um luxo. Aliás, a dimensão pejorativa de palavras ou expressões como « matar o tempo », « olhar para a janela », « ficar na moleza » ou « procrastrinar » o ilustra bastante bem. Contudo, o controle do tempo permanece uma ilusão, como o simbolizava, na mitologia grega e romana, a obra das Parcas, as três divindades do destino, da fatalidade (Nona que tece o fio da vida, Décima que cuida da sua extensão, e Morta que corta o foi), as quais eram supostas determinar a duração da vida, de maneira imperturbável e intransigente. A não ser humilde em relação à vida e ao(s) ritmo(s) que ela nos impõe naturalmente, pensamos ser Chronos, aquele deus da Antiguidade personificando o Tempo e o Destino. Mas isso jamais é outro coisa do que um mito.
Relógio de sol em San Cosme y San Damián, antiga missão jesuíta, no Paraguay.