O ditado « a Europa é a paz » ainda é relevante? A necessidade de agir para convencer, e não convencer que se age
Cada vez mais impopular, a União Europeia, essa organização que leva a ambição da construção europeia e apropriou-se os símbolos europeus, evoca mais o liberalismo econômico, a austeridade orçamental e a relação de poder, do que a solidariedade ou a amizade entre os povos. Pior ainda, a imagem tecnocrática predomina sobre os valores de paz e de democracia que, há muito tempo, constituirem os seus princípios. Os seus fundadores e construtores podiam se orgulhar de um balanço positivo em termos de regimes democráticos e de preservação da paz, mas, entretanto, o quadro de uma Europa próspera e pacífica mudou muito.
Surpreendentemente, foi em 2012, e não há um meio-século, que a União Europeia recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Naquela altura, estávamos contudo num contexto (sempre atual) de políticas de rigor e de aumento das desigualdades e da pobreza. São fontes potenciais de tensões, de conflitos e de xenofobia. Acrescenta-se a isso a política exterior dos países europeus que parecem às vezes desestabilizadora do que pacificadora. Então a Europa, como construção regional e como entidade geopolítica, será ainda um fator de paz?
É choquante observar nesses últimos anos o nível de decepção de muitos povos do continente europeu em relação da construção europeia. Promover a paz pela construção de um grande espaço sem fronteiras interiores, no qual todos cidadãos iguais em direitos e em dignidade andariam livremente e iriam assim ao encontro do « outro »; uma paz favorecida pela cooperação política e o desenvolvimento do comércio entre as nações; isso tudo deixa-nos a sonhar! Ainda mais quando imaginamos um tal projeto numa terra caracterizada pelo nacionalismo, as guerras, a barbaridade e o ódio durante décadas e séculos. Ainda mais se pensamos a coerência cultural de um tal projeto, dados as trocas comerciais, artisticas e intelectuais que atravessaram o continente sem consideração de fronteiras desde a Antiquidade. Ainda mais, sobretudo, quando lembramos a forte interdependência, a todos os níveis, das diferentes sociedades europeias desde séculos, e a consequência: a Europa constitui uma comunidade de destino levada por um certo número de valores e de interesses comuns. Dito de uma outra maneira, deveríamos ter tudo a ganhar a construir a Europa juntos, como espaço « de paz perpétua » como já o evocava no século XVIII o filósofo alemão Emmanuel Kant, o qual dizia desejar um « federalismo cosmopólito ».
Como explicar a rejeição de um tal projeto, finalmente concretizado pelos « Pais fundadores » após a Segunda Guerra mundial? E sobretudo, como explicar o progresso rápido dessa rejeição desde duas ou três décadas? O Eurobarómetro, um conjunto de estudos de opinião realizados todos os anos desde 1974 com milhares de pessoas em toda a Comunidade Europeia, constitui provavelmente a ferramenta mais relevante de medida dessa evolução. Em Março-Abril de 1986, ano do Ato Único que planejou a finalização do Mercado Único, uma maioria de pessoas na Europa dos 15 ainda consideravam o fato de pertencer à Comunidade Europeia como uma « boa coisa », com excepção o Reino-Unido onde só havia uma maioria relativa, de 37% (contra 29% de opinião contrária e 28% de indecisos).
De fato, até as décadas de 1980 e 1990, a Comunidade ainda tinha sucessos importantes e lindas perspetivas: nenhuma guerra entre Estados membros desde 1945; uma Política agrícola comum (PAC) que permitiu a auto-suficiência alimentar; fundos estruturais que permitiam o desenvolvimento, lento mas real, das regiões periféricas e pobres como no Portugal, na Grécia, na Espanha e sobretudo na Irlândia e na Finlândia; a livre-circulação das pessoas e dos bens e o desaparecimento das fronteiras interiores no âmbito do espaço Schengen; o programa Erasmus que favorece através toda a União a troca de dezenas de milhares de estudantes cada ano; etc. Os progressos da Europa da Defesa com a cimeira franco-britânico de Saint-Malo em 1998, seguidos da introdução do euro como moeda única entre 1999 e 2002 (e o alargamento da Zona euro a partir de 2007), do alargamento a doze países, nos quais dez ex-comunistas, entre 2004 e 2007, e a perspectiva em 2004-2005 da refundação da União através de um tratado constitucional, isso tudo pareciam constituir passos gigantes. A Segunda Guerra mundial tinha-se acabada a um meio-século, a « cortina de ferre » dez ou quinze anos mais cedo, e a ameaça soviética já não estava ali para justificar esses progressos. Além disso, a democracia à escala comunitária também progrediu passo a passo, confirmando a capacidade notável dos Estados-nações a conceder poder em nome de uma partilha de soberania e de interesses comuns: o Parlamento, criado em 1979, sistematicamente ganhou competências a cada novo tratado, com um alargamento do seu poder de co-decisão (partilhado com o Conselho dos ministros da UE).
É no entanto no início dos anos 2000 que as tendências de opinião começaram a mudar, e a cerca de 2012-2013, já notava-se uma repartição mais equilibrado, com mais ou menos um terço de pessoas respondando ao Eurobarómetro dizendo ter uma boa visão da União Europeia, um terço dizendo ter uma visão negativa, e o resto sendo indeciso. Muito preocupante também, em 2012, quase dois terços das pessoas interrogados diziam julgar que « a sua voz não conta na União Europeia » (enquanto 50% estimava então que ela conta no seu próprio país). E na mesma altura, o sentimento de uma péssima tomada em conta dos interesses nacionais no âmbito da UE predominava (52%, contra 41%).
A permanência de um desemprego estrutural elevado há mais de trinta anos, a estagnação do poder aquisitivo e a desindustrialização da Europa de Loeste e do Sul parecem explicar essa desconfiança crescente em relação à União Europeia. Acrescenta-se o sentimento também crescente segundo o qual muitos das elites políticas perderam há muito tempo o senso das realidades e são desconectadas das preocupações diárias da maioria da população. Esse sentimento é confirmado quando essas mesmas elites apoiam como uma evidência o projeto europeu cujos impactos positivos não parecem óbvios para públicos cada vez mais vulneráveis e numerosos: habitantes de áreas rurais, trabalhadores operários, desempregados, idosos, mães solteiras, etc.
Essa impopularidade e essa decepção em relação à construção europeia, um outro indicador de longo prazo, mais concreto do que as sondagens, o ilustra. São as eleições europeias, tanto por os seus resultados como por a fraca mobilização eleitoral. Desde 1979, e isso enquanto o próprio Parlamento europeu viu o seu papel constantemente resforçado no âmbito do processo decisionário da União, a abstenção aumentou de maneira contínua, para atingir mais ou menos 57% em toda a Europa dos Vinte-sete em 2009 (contra 50,5% em 1999, e 41,6% em 1989). Mais surpreendentemente, essa abstenção observa recordos nos novos Estados membros da Europa de Leste, enquanto as adesões de 2004, de 2007 et de 2013 foram muito celebradas. A única vez onde viu-se a abstenção baixar, em 2019, quando a participação voltou a passar ligeiramente acima de 50% dos eleitores inscritos, vimos os dois movimentos centrais históricos, os conservadores do Partido Popular Europeu (PPE) e o Partido Socialista Europeu (PSE), conhecerem um declínio importante, e temos observamos então um certo sucesso das formações populistas e anti-europeias, como já o tínhamos comentado o mês passado (A Europa frente à democracia (1/2): anos depois da rejeição da Constituição europeia e da crise grega, quais consequências a longo prazo, quais responsabilidades?). Isso tudo deixa com dúvidas sobre as perspetivas de uma sociedade civil europeia que constituiria um lugar de debates ultrapassando as fronteiras.
Se as eleições europeias ilustram de maneira notável o desinteresse crescente dos cidadãos em relação à União Europeia, cujo funcionamento parece bem complicado do ponto de vista do público lambda, são sobretudo os referendos sobre as questões europeias que concentram, muitas vezes, o descontentamento ou os receios dos eleitores. Em 1992, em 2000 e em 2015 no Dinamarca, na Noruega em 1973 e em 1993, na Suíça em 1992 e em 2001, na Suêcia em 2003, na França em 2005, na Holanda em 2005 e em 2016, no Reino-Unido em 2016, ou ainda na Irlândia em 2001 e em 2007, e na Hungria em 2016, sendo sobre a adopção do euro como moeda única, uma reforma dos tratados, o alargamento/adesão, ou também a questão da imigração organizada no âmbito europeu, as rejeiçãos foram muitas. Certamente, houvem muitos outros referendos com resultado positivo, mas a tendência é cada mais negativa para a UE. Qual seria, hoje em dia, após a crise econômica terrível que afetou o país, o resultado de um tal voto num país como a Espanha, que tinha no entanto aprovado, em 2005, o Tratado constitucional por 77% dos votos (com só 42% de participação)? Bem esperto aquele que é capaz responder a essa pergunta.
Os atores nacionais e europeus parecem perditos frente ao desinteresse crescente dos cidadãos em relação à Europa. Aqui, são caricaturados José Manuel Durão Barroso, antigo Primeiro ministro português que foi presidente da Comissão Europeia entre 2004 e 2014; e Herman Van Rompuy, antigo Primeiro ministro belgo, que foi presidente do Conselho Europeu entre 2010 e 2014.
Em Julho de 2015, o povo grego pronunciou-se por 61,31% dos votos contra as medidas de rigor orçamental exigidas pela Comissão Europeia, o Banco central europeu (BCE) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para prolongar os programas de refinanciamento da dívida grega. No mesmo mês no entanto, o governo grego cedeu à pressão dos seus parceiros europeus e adoptou um conjunto de medidas quase-semelhantes, ignorando de fato o resultado do referendo. Os dirigentes europeus já tinham desprezado as escolhas exprimidas pelos povos nas urnas. Lembramos, claro, a sequência do Tratado de Lisboa sobre a reforma das instituições comunitárias, que consolidava a orientação liberal da União Europeia. Adoptado pelos parlamentos francês e holandese, era contudo uma versão apenas diluída do Tratado estabelecendo uma Constituição para a Europa, rejeitado em França e na Holanda na primavera de 2005. Podemos nos lembrar também do Dinamarca em 1992-1993, sobre Maastricht, e de Irlândia em 2001-2002, sobre o tratado de Nice, e depois em 2008-2009 sobre o de Lisboa, que revotaram sistematicamente para que o resultado correspondesse às escolhas dos dirigentes europeus. A indiferência e o desprezo causados pelos resultados dos votos, logo que eles não correspondiam aos desejos das nossas elites, não deixa nenhuma dúvida sobre o caráter anti-democrático do quadro e das políticas europeias.
Portanto, não há surpresa em ver que o argumento segundo o qual a Europa é um espaço de liberdades e de democracia não convence muita gente. A democracia não parece concreta logo que os povos não são e não se sintem ouvidos. E a liberdade é naturalmente limitada num contexto de aumento das desigualdades e de pobreza. Pois, numa sociedade onde tudo se compra, onde tudo se vende, o cidadão pobre ou endividado não é, claro, um cidadão livre.
Para gerações nascidas após a Segunda Guerra mundial, o argumento da paz não convence muito. Aliás, esse argumento é cada vez menos verdade. No seu ambiente próximo, primeiro: ouvimos durante muito tempo que a União Europeia constituiu um fator de estabilização na sua vizinha. Foi verdade no início dos anos 2000, quand a perspetiva da adesão favoreceu um consenso político em algumas repúblicas de ex-Iugoslávia, pelo menos para impedir uma volta da violência. O conflito entre Rússia e Georgia em 2008 e a guerra na Ucrânia a partir de 2014, tal como a persistância de conflitos gelados nos Balcãs (particularmente na Bósnia-e-Herzegovina) e na ex-URSS, sugerem finalmente que não é totalmente verdade. Igual com a multiplicação das áreas de conflito de todos os tipos e guerras civis no oriente-Médio e no Mediterrâneo, desde mais de quinze anos. Pelo contrário, junto às adesões à Aliança atlântica, a alargamento da União Europeia revela-se um fator de tensões.
Desde a guerra no Iraque em 2003 até o conflito ucraniano iniciado em 2014, passando pelas intervenções israelenses no sul do Libano em 2006 e em Gaza em 2008, a guerra civil na Líbia, no Iêmen e na Síria, em particular desde 2014, ou ainda o golpe no Egito em 2013, vemos bem que, no melhor dos casos, quando os Estados membros não são eles mesmos à origem dos conflitos, a Europa revela-se coletivamente bem incapaz para os impedir. E aliás, o alinhamento sistemático de certos Estados membros com a posição norte-americana cria muitas vezes uma lógica de « blocos » contra o mundo árabe-muçulmano, ou contra a Rússia. França e Reino-Unido ultrapassam os limites do direito internacional, e como o fizeram tantas vezes o Estados-Unidos no passado, lançam-se em aventuras militares em nome de « guerras justas », as quais, na realidade, não levam nem a paz nem solução política sustentável. Foi o caso na Líbia em 2011, e a partir de 2014 na Síria e no Iraque. A isso acrescenta-se uma especificidade muito francesa, ou seja, a vontade de Paris de manter a sua capacidade de interferir na sua « área de influência » no Mediterrâneo e na África central e de Loeste – o que explica as intervenções no Mali em 2011 e na Centráfrica em 2013, por exemplo.
Em oposição à postura da diplomacia francesa durante a intervenção norte-americana e britânica no Iraque em 2003, essa vontade intervencionista, observada a uma década, coloca a Europa em contradição com ela mesma, logo que essas intervenções ultrapassam os limites do direito. Primeiro, porque elas revelam a fraqueza de uma ação diplomática europeia inclusiva e coordenada. Segundo, e sobretudo, porque elas são contraditórias com uma lógica de segurança coletiva baseada no direito e em mecanismos de diálogo no âmbito da ONU – uma lógica que dominaria se a União Europeia fosse forte, coerente e unida em termos de política estrangeira.
Em 2012, a União Europeia, num duplo contexto de crise do euro e de planos de rigor da Troïka (Comissão Europeia, FMI, Banco europeu), recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Uma escolha criticada.
A Alemanha tem uma grande responsabilidade nessa situação, pois convem lembrar que as relações entre Estados na União Europeia não resumem-se a apertos de mão e abraços no âmbito da reconciliação franco-alemã, mas também a relações de poder, a negociações entre interesses contraditórios; e hoje, desde o fim da Guerra fria, esse equilíbrio é muito favorável aos países do norte da Europa, Alemanha em primeiro lugar. Pois houve um evento muito importante, que foi a reunificação alemã. Dai, a Alemanha tornou-se de novo a ser um país muito mais importante do que os seus grandes vizinhos, Grã-Bretanha, Itália, e sobretudo França. Isso é óbvio em termos industriais, mas também em termos de demografia. O presidente francês François Mitterrand (1981-1995) pensou que a ferramenta da moeda única, o euro, permitiria controlar a potência alemã, mas foi o contrário que aconteceu. Tudo inverteu-se em menos de vinte anos, com também o alargamento da União aos países de Europa central e de Leste que voltaram a tornar-se a « área de influência » austríaca e alemã. Enquanto antigamente, a Europa foi contruida numa ideia de coletividade de proteção, hoje em dia, ela é, com o núcleo composto pela Zona euro, uma área de hierarquização entre as nações que a compõem. De fato, ela recriou situações de competição, pois a rigidez dos conceitos europeus, do dogmo da austeridade, do euro, cria essa situação em que as nações europeias, ainda muito diferentes, lutam economicamente e socialmente umas contra as outras. Nações enfrentam-se em termos de potência.
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Em 20 de Maio de 2013, um aumento dos suicídios de 26,5% em um ano era revelado pelo instituto grego da Estítica – um aumento espetacular num país onde a taxa de suicídio é tradicionalmente dos mais baixas da Europa. Outro exemplo, estatísticas divulgadas no congresso da Federação mundial para a saúde mental, reunido em Atenas em Março de 2013, mostratam que tinha-se tornado difícil consultar um especialista em saúde mental na Grécia; em algumas regiões do país, passamos em três anos de quinze dias para dois meses e meio de espera antes de poder ter uma consulta marcada.
E a degradação do nível de vida e de saúde foi (e é) uma realidade além da Grécia. Na Itália, a queda do poder aquisitivo provocado pelas medidas de austeridade teve consequências diretas na parte do orçamento dos Italianos consagrada à saúde: « mais ou menos 9 milhões de Italianos abandonam agora o tratamento para desordens ou doenças de fraca ou média gravidade », revelou em 2013 Walter Ricciardi, diretor do Observatório nacional da saúde da Universidade católica de Roma. Outro exemplo, o consumo de antidepressivos aumentou muito na Itália: passou de uma média de 8,18 doses cotidianas para 1 000 habitantes no ano 2000 para 35,72 doses em 2010.
No Portugal também, mais de um terço dos centros de saúde faltaram material básico só no ano de 2012, uma estatística que ainda subiu depois. luvas, vestidos ou vacinas contra o tétano faltaram mais de dez vezes aquele ano, segundo um estudo realizado nas Unidades de saúde familiar (USF), que incluem médicos gerais e enfermeiros. Só 13% dos centros, então, não encontraram nenhum problema. Uma tendência que não foi parada pela contestação social. Para aprofundir o caso das políticas de austeridade implementadas no Portugal: Eleições do 4 de Outubro em portugal (1/3): um novo fracasso da esquerda anti-austeridade?
A Europa sofre de uma grande impopularidade por vários motivos. Como foi dito, ela dá o sentimento que coloca as pessoas e os povos em concurrência. Foi também o caso com a prática dos trabalhadores destacados, uma forma de contrato que foi apenas reformado desde a sua existância (diretiva de 1996). Abusos existem e pedem correções, claro, pois não é surpreendente uma construção tão complexa como a comunidade europeia ter que adaptar-se com a realidade e os disfuncionamentos; mas as correções sempre são marginais e não questionam o princípio no qual é baseado a construção europeia desde a década de 1980 e o Ato Único de 1986, ou seja: uma área com fronteiras abertas à concurrência livre e sem distorções entre países com níveis de vida diferentes e sem nenhum objetivo comum de harmonização social. A União Europeia aparece como o terreno de implementação da teoria econômica liberal neoclássica, onde até os seres humanos vêem a sua força de trabalho colocado em cuncurrência, muitas vezes para salários ridículos e tendendo ao declínio em termos de direitos sociais.
Hoje em dia, quem defende ainda os símbolos como as ferramentas da União Europeia? O euro é sistematicamente associado à queda do poder aquisitivo, não ao seu caráter federador simbólico. A crítica do sistema global, o qual permite as deslocalizações e o aumento das desigualdades é ainda mais justificado porque a União Europeia negocia os seus acordos comerciais com o exterior através a única voz da Comissão Europeia. A construção europeia é portanto associada, justamente, ao processo de globalização do comércio e aos suas muitas consequências desastrosas: deslocalizações de fábricas e desemprego, pressão da concurrência dos trabalhadores pobres da Europa de Leste e dos países em desenvolvimento, etc. Acrescenta-se a regulação europeia sobre a qualidade dos bens e serviços, muito denunciado porque parece detalhada demais e deconectada das realidades dos produtores – exemplos como o tamanho regulado do tomato ou a curvatura do pepino são os mais famosos. O erro sendo de pensar que essas orientações econômicas são impostas pela única União Europeia, enquanto cada diretiva, cada regulamento europeu é em primeiro lugar negociado pelos Estados, no âmbito do Conselho dos ministros da UE, e muitas vezes também pelos partidos políticos reunidos no Parlamento europeu.
Mas as elites políticas e mediáticas pro-europeias consideram qualquer rejeição da Comunidade que está se construindo como uma forma de nacionalismo fechado, um passo para trás que não iria no « sentido da História ». Foi essa lógica que predominou em 2007, quando foi adoptado por via parlamentar, contra qualquer lógica democrática sincera, o Tratado de Lisboa que reformulava sem grandes mudanças a reforma das instituições prevista no Tratado constitucional, no entanto rejeitado pelos Franceses e os Holandeses em 2005. Os resultados dos referendos foram muitas vezes interpretados com muita condescendência: os eleitores tinham dado a resposta errada, só quizeram sancionar os políticos nacionais, não se pronunciaram sobre a pergunta do referendo. Como sempre, do ponto de vista dos dirigentes europeus, a conclusão é que, para convencer em relação à Europa, não é a Europa que deve ser mudada, são os povos que têm que entender melhor as coisas, pois claramente, eles não entenderam nada e precisam mais pedagogia. No melhor dos casos, os votos são interpretados como a vontade de ter menos Europa política, como manifestações de nacionalismo, mas nunca como um pedido de mais Europa social, mais proteção no âmbito da globalização, mais relevância nas orientações políticas. A consequência direta é que para muitas pessoas, a Europa aparece como o « cavalo de Tróia » da globalização, e os recentes tratados de livre-comércio com muitas áreas do mundo, por exemplo o Canada (CETA), países da América do Sul (UE-Mercosul), países africanos ou asiáticos, e num futuro próximo os Estados-Unidos (TAFTA), parecem confirmar essa realidade.
– além da permanência, qualquer seja o custo, de uma linha econômica liberal que nos conduz todos num impasse.
Em 1969, Amilcar Cabral, líder da independência da Guiné-Bissau e das ilhas do Cabo-Verde, fez essa declaração num seminário em Conakry (Guiné): « O povo não luta por ideias, por coisas que estão na cabeça dos homens. O povo luta e aceita os sacrifícios exigidos pela luta, mas para obter vantagens materiais para poder viver em paz e melhor, para ver sua vida progredir e para garantir o futuro de seus filhos. Libertação nacional, luta contra o colonialismo, construção da paz e do progresso, independência, tuddo isso são coisas vazias e sem significado para o povo, se não se traduzem por uma real melhoria das condições de vida. » Igual para a construção europeia: as elites pensaram que o apoio seria inabalável porque a solidez da sua legitimidade pareceria óbvia a todos. E os que agarram-se, qualquer seja o custo, à orientação atual da construção europeia, descredibilizam de maneira profunda e sustentável o projeto europeu. O presidente Charles de Gaulle (1958-1969) dizia algo semelhante numa entrevista famosa em 14 de Dezembro de 1965: « Temos que abordar as coisas como são, pois não fazemos política diferentemente que nas realidades. Claro, podemos saltar na sua cadeira como uma cabra dizendo "Europa! Europa! Europa!" mas isso não serve para nada e não significa nada. » A necessidade de preservar as identidades nacionais, os receios em matéria social, a ideia que as nossas crianças terão condições de vida piores do que nós, o sentimento que a construção europeia só tem sentido se ela garante um futuro a todos, são bem sentimentos partilhados por milhões de cidadãos.
As realidades e os medos devem ser respeitados. Qualquer projeto de sociedade só tem sentido se ele contribui de maneira eficiente ao desenvolvimento individual, coletivo, e à felicidade dos habitantes. A maioria das pessoas pretendem apenas viver em paz, informar-se em liberdade, aceder a lazeres e à cultura, etc. Qualquer orientação política, econômica e social que não iria nesse sentido é portanto provavelmente, a longo prazo, destrutora para a sociedade pois não contribui à felicidade das pessoas. O risco hoje em dia, é bem de ver os sentimentos de decepções e receios predominar sobre os objetivos democráticos e sociais fundadores do projeto europeu. Como as elites podem pretender convencer um operário francês ou italiano que a concurrência de uma empresa búlgara participa à paz de uma qualquer forma, ou respeita da dignidade dos trabalhadores? Tal como a União soviética levava valores de extrema-esquerda e assim os descredibilizou, a União Europeia representa provavelmente o pior inimigo do projeto europeu inicial. Os apoiantes da UE ganhariam em credibilidade se eles desenvolvessem um espírito crítico em relação à organização atual da União, às suas escolhas políticas, e à sua estratégia econômica. E sobretudo, se eles aceitassem o princípio do debate de maneira mais aberta e sem considerar os oponentes como espantalhos nacionalistas ou utopistas ignorantes e desconectados. A Europa dos princípios não será suficiente, a União Europeia deve achar a sua justificação nos seus resultados. Ela deve alargar os aspetos positivos da sua ação para que os resultados sejam concretos, não só para as classes mais favorecidas, que são capazes de viajar e estudar no exterior, e de ser protegidas no âmbito da globalização, mas também para os mais vulneráveis, os operários, os empregados, os desempregados, os idosos que conhecem rendas baixas na reforma, etc.
Para concluir, podemos lembrar essas palavras do antigo chefe do governo e ministro dos negócios estrangeiros francês (1947-1948) Robert Schuman, um dos « fundadores » das Comunidades Europeias e que negociou pela França muitos dos tratados internacionais nas décadas de 1940 e 1950, que disse em 1956: « A Europa não é uma coisa simples, porque ela não é uma fantasia que cada um pode construir à sua maneira; ela é uma iniciativa realista, a qual exige, além de qualquer tecnicidade experimentade, a confiança que a nação tem em si mesmo e a confiança que ela coloca na sinceridade dos seus parceiros. »
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O texto a seguir vem de um discurso de Pierre Mendès-France, líder de esquerda francês durante a Quarta República (1946-1958) e no início da Quinta. Ele começa explicando: « Meus caros colegas, muitas vezes recomendei mais rigor na nossa gestão econômica. Mas devo confessar que não estou resignado em fazer juiz disso um areópago europeu no qual reina um espírito muito longe do nosso. » O seu desenvolvimento mostra, dado como a União Europeia evoluiu, uma certa visão política, e muito discernimento.
O projeto de mercado comum [que] nos é apresentado é baseado no liberalismo clássico do século XIX segundo o qual a concurrência pura e simples resolve todos os problemas. Será que as iniciativas sociais ainda são possíveis? A tendência à uniformização não supõe que os países os mais avançados vão ver-se proibido [...] novos progressos sociais? [...] A abdicação da democracia pode tomar duas formas, ou o recurso a uma ditadura interna, entregando todos os poderes a um homem providencial, ou a delegação desses poderes a uma autoridade exterior, a qual, em nome da técnica, vai assumir de fato a potência política, pois em nome de uma economia sã, ditamos facilmente uma política monetária, orçamentária, social, finalmente « uma política », no sentido largo da palavra, nacional e internacional.