Plano de relançamento de 2020 da União Europeia: a dicotomia entre « países frugais » e « Clube Med », qual a parte de realidade, qual a parte de fantasia?
Em 21 de Julho de 2020, os países europeus conseguiram negociar um acordo qualificado por uns e outros de « histórico », pela sua dimensão (750 bilhões de euros), e pelo fato que a própria União Europeia – e com ela os seus Estados membros – definiu-se como garante do reembolso dos valores emprestados nos mercados financeiros. No início deste ano, o processo de ratificação deste plano passou uma etapa decisiva, com a validação de uma maioria do Parlamento europeu. Após terem adoptado o orçamento comunitário de 1 074 bilhões de euros para 2021-2027, a decisão que permite à Comissão Europeia de endividar-se em nome dos Vinte-Sete para o financiar, e o mecanismo que liga o pagamento das ajudas ao respeito do Estado de direito, os eurodeputados adoptaram, em 9 de Fevereiro de 2021, as regras de funcionamento do « fundo de relançamento e de resiliência » pelo qual vai transitar o essencial dos 390 bilhões de subvenções previstas para os países que mais o necessitam, tal como os 360 bilhões de euros de emprestos que serão colocados à sua disposição. Ainda falta a ratificação parlamentar de uma maioria de países europeus, no entanto, com raras excepções (Hungria, Polônia), esta fase de validação pelas representações nacionais não deveria ser realmente problemática.
Contudo, e apesar dos elogios que os dirigentes europeus formulam há meses sobre o acordo comunitário sobre este plano, a seqüência inteira das negociações em 2020 apareceu como uma repetição das clivagens que dividiram os chefes de Estado e de governo europeus na altura das crises financeiras e das dívidas públicas entre 2008 e 2015. Por trás das divisões que podem parecer terem uma base política, acha-se um grande desprezo das elites do Norte em relação aos povos do Sul do continente.
Em Março de 2020, o ministro das Finanças neerlandês, Wopke Hoekstra, ilustrou-se de uma forma bem infeliz, criticando, em direto, numa visioconferência com os seus homólogos europeus, a Espanha e a Itália para supostamente não terem bem gerido as suas contas públicas, o que teria explicado então que estes dois países estiveram numa situação tão dramática durante a crise do COVID-19. Naquela altura, ele até sugeriu à Comissão Europeia de iniciar uma missão de investigação sobre a gestão orçamental dos dois Estados – uma atitude qualificada pelo Primeiro ministro português António Luis Santos da Costa de « repugnante », uns dias mais tarde.
Globalemente, se a União Europeia esforçou-se um instante de relaxar a sua vigilância em relação aos critérios de Maastricht (particularmente o controlo do défice orçamental sob os 3% e a dívida pública sob os 60% do PIB), é mais a falta de solidariedade, de concertação e de coordenação que foi constatada na Europa, durante a crise do coronavírus. Por exemplo, nove países, entre os quais a Itália, a Espanha, a Grécia, a Irlanda, Malta e a França, proporem lançar nos mercados financeiros empréstimos maciços garantidos por todos os Estados da Zona euro, os famosos eurobonds, ou euro-obrigações. Uma proposta rejeitada em 26 de Março pelos Países Baixos e a Alemanha. Ainda na noite do 7 para o 8 de Abril de 2020, as negociações entre parceiros europeus acabaram num impasse, notavelmente pelo fato das posturas inconciliáveis dos Neerlandeses e dos Italianos. Como uma repetição das clivagens intra-europeias já observadas durante a crise financeira e a crise das dívidas soberanas, a partir de 2008. Em 8 de Abril de 2020, Wopke Hoekstra até teria declarado aos seus homólogos, de novo: « Eu não posso explicar à minha opinião pública que os Países Baixos vão pagar para aqueles que não foram virtuosos. » O dia a seguir, em 9 de Abril, finalemente, os ministros europeus acharam um compromisso, sobre um plano de relançamento baseado em três eixos principais: até 240 bilhões de euros de empréstimos do fundo de auxílio da Zona euro, um fundo de garantia de 200 bilhões para as empresas, e até 100 bilhões para apoiar o desemprego parcial. O projeto de eurobonds era mais uma vez abandonado.
O plano proposto em Maio de 2020 por Emmanuel Macron, o presidente da República francesa, e Angela Merkel, a chefe do governo alemão, fortalecido uns dias mais tarde pela Comissão Europeia, foi num primeiro tempo rejeitado pela Áustria, a Suécia, o Dinamarca, a Finlândia e sobretudo os Países Baixos (com base as mesmas razões ligadas à gestão orçamental dos países meridionais), antes de ser validado, após quatro dias de cimeira europeia, em 21 de Julho de 2020, por todos os Estados membros. O acordo prevê finalmente um plano de 750 bilhões em três anos, emprestados nos mercados em nome da Comissão Europeia, e transferidos aos Estados, regiões e setores afetados pela pandemia. No detalho, 360 bilhões serão atribuidos aos Estados que o desejam, e 390 bilhões serão transferidos daqui a 2023, sob a forma de subvenções que, quanto a elas, serão reembolsadas, por parte pelos Estados, por parte por novos recursos com dimensão federal ( maiora parte sendo ainda a definir). Emmanuel Macron escreveu então, por twitter, na conclusão da cimeira: « Dia histórico para a Europa! » Uma palavra que foi amplamente reapropriada pela imprensa francesa e às vezes europeia.
Por fim, em 14 de Abril passado, a Comissão Europeia apresentou a sua estratégia para mobilizar daqui a 2016 este valor de 750 bilhões, reavaliada a 806 bilhões a preços correntes, graças à emissão de obrigações e de títulos de dívida de curto prazo. Uma grande parte da liquidez do plano de relançamento (407,5 bilhões a preços correntes) será portanto partilhada entre os Estados sob a forma de subvenções cujo valor mudará segundo os impactos da crise económica ligada ao contexto sanitário atual. Além disso, 386 bilhões serão distribuidos sob a forma de emprestos aos Estados que o pedirão. « Esta crise supõe uma ação rápida em todas as frentes, explicou Johannes Hahn, comissário europeu encarregado do orçamento, em Bruxelas, em 14 de Abril. Desde então, eu chama os Estados membros que não o teriam feito ainda a acelerar o processo de ratificação. » Irão acrescentar-se 12,5 bilhões para programas específicos da União Europeia.
As mídias acostumaram-se a apresentar os debates sobre o orçamento europeu com base uma dicotomia entre países ditos frugais e países que seriam gastadores. Uma visão que releva mais da fantasia e dos estereótipos do que da realidade.
As negociações de 2020: a repetição de um desprezo dos países do Norte contra os países do Sul
Portanto, haveria o « Clube Med », os países perguiçosos e péssimos gestores, no Sul: Grécia, Itália, Espanha... E os países « sérios », no Norte: Países Baixos, Alemanha, Áustria, Finlândia... As mídias até retomaram esta dicotomia, qualificando regularmente estes últimos de « países frugais ». Rivalides entre Países Baixos e Espanha e Itália em 2020, entre Grécia e Alemanha em 2015. Desde 2008 e o início da crise das dívidas, esses clivagens dominam a vida política europeia, em paralele de clivagens mais « jurídicos » entre a Europa de Loeste qualificada de liberal, e o grupo de Visegrád : Eslováquia, República Checa Polônia e Hungria, em particular estes dois últimos sobre o respeito do Estado de direito. Clivagens que resurgiram em Novembro de 2020, na altura de confirmar a adopção do plano; e ainda recentemente quando Budapeste e Varsóvia levaram uma reclamação, em 11 de Março passado, ao Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), pedindo para anular o mecanismo de condicionalidade da transferência dos fundos ao respeito do Estado de direito, estimando-lo ilegal – o TJUE ainda não deu uma resposta. Entre Europa do Norte et do Sul, foram criados e alimentados estereótipos consideráveis, por exemplo os Gregos denunciando o autoritarismo alemão, os Alemãos criticando as deficiências do Estado de direito, do sistema fiscal e da economia gregos. Desta vez, os Neerlandeses criticaram a péssima gestão financeira de Madri e de Roma, os países mediterrâneos denunciando o desprezo dos Estados membros da Europa do Norte.
E desprezo, podemos dizer que houve mesmo. Pois por traz dos planos de rigor impostos pela Troïka (Comissão Europeia, Banco Central Europeu, Fundo Monetário Internacional), e sobretudo pela chefe do governo alemão Angela Merkel (e o seu ministro das Finanças entre 2009 e 2017, Wolfgang Schäuble), há certamente a questão da imposição de um dogma liberal combinando medidas de desregulamento da economia e uma política de rigor orçamental, mas há também uma forma de desprezo em relação a povos que são considerados « péssimos gestores », perguiçosos, gastadores... Por tràs, estereótipos racistas, e preconceitos que permanecem há muito tempo. A ideia também que as culturas protestantes do Norte, alemã, neerlandese, sueco... são mais rigoristas, mais eficientes, mais ordonadas. Ideia que é amplamente veiculada pelas mídias europeias.
Dai, pode nos deixar desconfortável a postura que adoptaram estes anos a Itália e a Espanha. Pois entre 2009 e 2015, pode-se entender que governos gregos mais ou menos liberais, e em particular o dirigido entre 2012 e 2015 pelo conservador Antónis Samarás, pediu e implementou com uma grande vontade planos de austeridade orçamental e de desregulamento drásticos, já era difícil entender porquê o líder de esquerda radical Aléxis Tsípras (2015-2019) acabou por submeter-se ao diktat da Troïka, apesar do referendum do 5 de Julho de 2015 no qual o povo grego tinha rejeitado por 61,3% (62,5% de participação) o último plano de rigor. No entanto, colocava-se então a questão da permanência da Grécia na Zona euro, o que induzia riscos bem maiores para Atenas, e grandes incertezas, o que pode explicar a mudança de postura observado naquela altura, em 13 de Julho de 2015 (A Europa frente à democracia (1/2): anos depois da rejeição da Constituição europeia e da crise grega, quais consequências a longo prazo, quais responsabilidades?). Desta vez, era questão de um plano de relançamento, ou seja, não para salvar as economias afetadas pelo coronavírus, mas para as relançar. A Itália e a Espanha não eram ameaçadas de falência; são duas das quatro maiores economias da Zona euro, e ainda mais, são dirigidos por governos de centro-esquerdo aliados (teremos a ocasião de voltar na composição destes dois executivos) a movimentos ditos populistas (Movimento 5 Estrelas e Podemos), críticos dos dogmas europeus ligados ao direito da concorrência, às privatizações dos setores públicos nacionais ou locais, e ao reembolsamento da dívida pública. Apenas após a validação do plano de relança, vimos, a partir de 2019 e sobretudo durante o Verão de 2020, um debate interno na Itália sobre o uso eventual do Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES), o qual foi criado em 2012 e tinha submetido durante anos a Grécia a medidas de rigor drásticas; enquanto o Partido democrata defendeu o recurso a esta ferramenta, dado a então subida forte da dívida italiana no contexto de confinamento ligado ao COVID-19, a Liga (extreme-direita) na oposição e o M5S no governo opuseram-se a isso, denunciando os riscos para a soberania italiana.
Por qué então eles toleraram este tratamento político por supostos parceiros europeus? Fora da reação do Primeiro ministro português, e de uma intervenção do então Primeiro ministro italiano Giuseppe Conte em Junho de 2020 no qual ele lembrava a destinação de Angela Merkel (a qual tinha chamada os países europeus em crise a usar todas as ferramentas da UE, inclusive o Mecanismo Europeu de Estabilidade), que ele é que « trata das contas » da Itália, fora desses poucos exemplos, ouvimos bem poucas respostas às acusações neerlandeses e a este desprezo todo. Onde está agora o orgulho dos países du Sul, ainda mais destas duas grandes nações, a Itália e a Espanha (os quais, objetivamento, têm as capacidades de relançar as suas economias sem a ajuda da UE)? No âmbito da crise política iniciada em Roma em 13 de Janeiro de 2021 com a partida de deputados centristos (ligados a Matteo Renzi) da coligação no poder (governo dirigido por Giusippe Conte), os Italianos até chegaram por formar um novo governo de união conduzido por um perfil técnico, Mario Draghi, ex-presidente do Banco central italiano (2006-2011) e antigo presidente do Banco Central Europeu (2011-2019). À contracorrente dos resultados das eleições legislativas de 2018 que tinham permitido a vitória relativa do Movimento 5 Estrelas, esta mudança de maioria parlamentar faz lembrar a queda de Silvia Berlusconi, em 2011, que tinha acontecido sob pressão da Alemanha e dos credores internacionais (FMI, Banco Central Europeu...) e provocado a formação de um governo técnico dirigido por Mario Monti, antigo comissário europeu (1995-2004). O principal motivo, explicitado por quase todos os partidos (Partido democrata, Forza Italia, Liga, Italia Viva...): assegurar a estabilidade política e garantir a confiança de Bruxelas, com base as competências técnicas de Mario Draghi, para gerir a chegada, no âmbito do Plano de relançamento europeu, de 209 bilhões de euros para a Itália. Até o Movimento 5 Estrelas, em 11 de Fevereiro, aceitou apoiar a designação de um « governo técnico-político prevendo um super-ministério da transição écológica e defendendo o [balanço do M5S no poder] com as outras forças indicadas [por] Mario Draghi ». A final, o governo conduzido por Draghi, confirmado amplamente pelas duas câmaras parlamentares (em 17 e 18 de Fevereiro), entrou em posse em 13 de Fevereiro de 2021, composto por ministros originários de quase todos os partidos presentes no Parlamento, incluidos a Liga e o M5E. Posturas estranhas em relação a aquele que ocupou entre 2002 e 2005 a carga de vice-presidente de Goldman Sachs (banco por grande parte responsável da crise financeira internacional de 2007-2008), pois não havia nenhuma tempestade nos mercados nem crise de confiança do lado dos credores da Itália, e portanto pôr em ordem as finanças públicas, no contexto da crise económica provocada pelo confinamento ligado ao COVID-19, não era a prioridade do momento. (Contudo, podemos notar que Mario Draghi assegurou que opunha-se a qualquer austeridade orçamental, apesar do nível significativo da dívida pública italiana, para preservar a coesão social, num contexto em que o país conheceu uma contracção do seu PIB de 8,9% em 2020.)
As elites políticas europeias limitam-se a elogiar o projeto europeu como se ainda fosse apenas um projeto de solidariedade entre os povos, confundindo os símbolos ligado à construção comunitária e as ferramentas económicas (liberais) que enquadram o projeto desde os anos 1970-1980. Como dizia o antigo presidente francês Charles de Gaulle, entrevistado em 14 de Dezembro de 1965, não basta gritar « Europa! Europa! Europa! » para justificar a submissão, a adopção de qualquer medida, na Europa do Sul, nem « Dívida! Dívida! Dívida! » para impôr aos seus parceiros medidas irrelevantes e injustas, do lado da Europa do Norte. Como é que que as políticas europeias traduzem-se concretamente nas vidas dos cidadãos europeus, no tecido económico comunitário, nas relações entre os povos membros? Essas são questões que têm realmente sentido. Os valores, tanto como os espantalhos, só têm sentido se elas traduzem-se por uma melhoria da qualidade de vida.
E realmente, podemos dizer que a própria relevância do plano de relançamento adoptado pela União Europeia em 2020 pode ser questionada, em termos de impacto, de escolhas, de orientação. Se o caso da Hungria e da Polônia induziu um novo problema, ou seja, a questão de saber se as ajudas no âmbito do plano de relançamento seriam condicionadas ao respeito do Estado de direito – entre outras coisas, Budapeste deveria, se a condicionalidade é validade pelo TJUE, reformar o seu código dos mercados públicos –, no fundo das opções tomadas, há muito para dizer, e portanto podemos ainda mais ficar surpreendido pelo fato que países como a Itália e a Espanha manteram, apesar do desprezo exprimido por outros Estados membros, a sua participação a este plano. Primeiro, o que foi apresentado por muitos como um acordo histórico sobre emprestos comuns foi bastante exagerado, pois aqui não assistimos a uma mutualização da dívida, mas apenas à uma « mutualização » da garantia sobre o reembolso, em nome da União Europeia; contudo, cada Estado terá que reembolsar o que ele recebeu no âmbito do plano. Além disso, o próprio princípio dos eurobonds pode ser denunciado como uma nova forma de acrescentar a dívida sem no entanto responder às duas perguntas seguintes: como será resolvido o problema da dívida no longo prazo, e será que os investimentos no futuro, ao benefício das próximas gerações, serão comprometidos pelo fato que os governos atuais irão priorizar o reembolso da dívida com vários planos de austeridade sucessivos? O desafio de achar novas ferramentas próprias à União Europeia, tal como a ideia mencionada em 2020 de uma taxa sobre o plástico, ainda permanece sem resposta concreta.
Mais preocupante, uma das condições dos Estados que irão beneficiar do plano será a adopção de « reformas estruturais » por estes mesmos Estados. Entender: planos de austeridade. Ou quando as lógicas próprias à famosa Troïka estão de volta pela janela... Por lembrança, todas as despesas decididas são realizadas no âmbito do « Semestro Europeu », ou seja, do controlo que é feito a priori pela Comissão Europeia sobre o orçamento de cada país. Neste quadro legal é que serão validadas (ou não) as « reformas » conduzidas por os que beneficirão do plano de relançamento. Dai, haveria muito a dizer sobre o fato que o Movimento 5 Estrela na Itália e Podemos na Espanha não imposerem um veto à participação de Roma e Madri a este plano. Ainda mais, os países ditos frugais viram as suas contribuções ao orçamento europeu reduzidas, e notavelmente os Países Baixos, os quais conseguiram poupar dois bilhões de euros... Para o segundo excedento orçamental de toda a Europa, qual é o sentido?
A dicotomia entre « frugais » e gastadores será relevante?
Contudo, se os Países Baixos são frequentemente apresentados como um país virtuoso em termos financeiros, haveria muito para dizer sobre este preconceito. Reflectando um mínimo a questão da dívida, constata-se logo que os Neerlandeses revelam-se o povo o mais endividado da Zona euro, se consideramos ao mesmo tempo as dívidas pública e privada, ou seja, das coletividades públicas, do Estado, das famílias e das empresas. Vista assim, a dívida em percentagem dos Países Baixos é equivalente à da Grécia, e é bem superior à da Espanha e da Itália. Tem a ver em particular com a dívida considerável das famílias, equivalente a 239% da renda anual dessas mesmas famílias (em 2018), contre 121% para a França, 107% para a Espanha, 106% para a Grécia e 87% para a Itália. E o que nos diz a História, é que as crises financeiras têm origem muitas vezes mais nas dívidas privadas do que na dívida dos Estados.
Além disso, o modelo económico neerlandese, tornado muito vulnerável pela influência considerável que tomam lá os fundos de pensão (aliás, a volatilidade dos cursos da bolsa anunciaram quedas importantes de poder aquisitivo para os apousentados neerlandeses num futuro próximo, com próvaveis cortas secas na transferência das pensões), deve por parte a sua riqueza ao seu estatuto de paraíso fiscal. Assim, lembravam em Abril de 2020 os economistas Isabelle Salle e Dany Lang no site do FigaroVox, « os ativos das 15 000 empresas […] que só dispõem de um endereço nos Países Baixos sem não ter lá nenhuma atividade nem emprego, atigem 4 500 bilhões de euros, o que representa 4,5 vezes o PIB [do] país ». Eles detalhem: « Um número desconhecido – porque confidencial – de empresas multinacionais beneficia de acordos fiscais favoráveis cujos termos, tão confidencialis, são negociados diretamente com as autoridades neerlandeses. » Com a sua estratégia de paraíso fiscal, os Países Baixos, como o seu vizinho o Luxemburgo e alguns outros Estados da UE, confiscam assim subsídios fiscais substanciais aos seus parceiros europeus.
Ironicamente, foi cobrado à Espanha e à Itália a situação das suas contas públicas, como se ela fosse a razão pela qual os seus sistemas de saúde encontraram tantas dificuldades a conter o coronavírus. Por lembrança, os governos que estavam em posse naquela altura em que foram tomadas medidas de confinamento, não eram realmente responsáveis da integralidade do balanço orçamental dos últimos anos, pois o Italiano Giuseppe Conte e o Espanhol Pedro Sánchez, um como outro, só foram Primeiros ministros a partir de Junho de 2018, e a sua equipe governamental respetiva (coligação Movimento 5 Estrelas-Partido democrata em Roma até recentemente, aliança Partido socialista-Podemos em Madri) só entraram em função muito pouco tempo antes da crise, em Setembro de 2019 para o primeiro, em Janeiro de 2020 para o segundo. Além disso, são precisamente as políticas de austeridade, impostas em nome do retorno ao equilíbrio orçamental, que têm, ai como em outros países (Portugal, Grécia, Chipre...), fragilizado os sistemas hospitaleiros e tornado esses países tão vulneráveis a eventuais pademias. Ironicamente, portanto, vemos agora países « ricos » do Norte cobrar-lhes a sua péssima gestão orçamental. Na Espanha como na Itália ou na França, medidas de confinamento tão drásticas, as que foram precisamente à origem das dificuldades económicas que seguiram, teriam sido elas necessárias se os serviços de saúde tinham sido capazes de conter a propagação do vírus e de acolher os doentes, e se as autoridades tinham sido capazes de implementar de forma sistemática testes e de impor o uso da máscara nos espaços públicos?
Quando havemos de sair da lógica de dependência aos mercados financeiros, imposta no âmbito europeu?
O debate relançado na Primavera de 2020 a cerca dos eurobonds, o dissemos, lembra o clima amargo que dominou, durante vários anos, as reuniões do Conselho da UE e as cimeiras de chefes de Estado e de governo europeus durante a crise das dívidas soberanas, mais ou menos entre 2009 e 2015. Contudo, neste assunto, há também matéria a desconstruir alguns preconceitos, e não é sempre quem se pensa que respeita mais as regras. Além do desafio do reembolso da dívida, coloca-se também a questão da sua legitimidade. Por lembrança, em Março de 2015, Zoé Konstantopoulou, então presidente do Parlamento grego no primeiro governo dirigido por Aléxis Tsípras, lançava em Atenas uma comissão de audito, a qual, composta de peritos e de representantes da sociedade civil e dos movimentos sociais, tinha como objetivo « analizar a origem e o histórico da dívida grega », determinando notavelmente se uma parte era ligada à corrupção, a taxas de juro excessivos, ou a tomadas de decisão contrárias ao interesse geral. Um ano mais tarde, em 1 de Março de 2016, um encontro chamado « Restructuração da dívida – Encontro da democracia » teve lugar em Bruxelas, na presença de muitos membros daquela comissão. Por lembrança, todos os países europeus submetidos a memoranda (planos de austeridade) tinham teoricamente a obrigação de fazer um audito da sua dívida pública (Regulamento 472/2013 relativo ao fortalecimento da vigilância económica e orçamental dos Estados, imposto pela UE há oito anos). A Sra Konstantopoulou lamentou-se então que, submetidos às pressões dos credores europeus e internacionais, o governo Tsípras adoptava, ao contrário do que fazia um ano antes, uma postura negativa em relação ao trabalho de audito realizado, constatando que « o relatório da Comissão pela verdade sobre a dívida grega assustou os credores ».
Lembramos que a Grécia não deixa de ser até agora o único país da UE a ter iniciado um tal audito, e curiosamente, as instituições europeias nunca mencionam esta obrigação. « Uma parte [da] dívida é ilegítima, ou ilegal, explicava logo em Junho de 2015 Zoé Konstantopoulou. No que tem a ver com os casos de corrupção, certos casos já são conhecidos e implicam os governos gregos anteriores. Mas muitas vezes, elas têm também a ver com empresas alemãs » como Siemens, acusado de ter subornado vários partidos políticos.
Esta situação ligada às dívidas não há de acabar enquanto, numa mesma área comercial e monetária onde países com tecidos económicos diferentes, os Estados membros da União Europeia não poderão sair do quadro comunitário vinculativo que lhes obriga a emprestar nos mercados financeiros, os quais fixam as taxas de juro com base as notações de agências privadas. Alguns países já emprestam há muito tempo nos mercados. Por exemplo, em França, uma lei adoptada em 3 de Janeiro de 1973 sobre o Banco de França, chamada « lei Pompidou-Giscard », vei confirmar uma prática já existante há certas décadas, enquadra os emprestos (sem taxa de juro) do Estado francês ao pé do Banco central francês. Ao nível europeu, esta situação foi oficializada um pouco mais tarde. Assinado em 7 de Fevereiro de 1992, em vigor em 1 de Novembro de 1993, o tratado de Maastricht, o qual instituou uma União Europeia, consagrou, a partir do dia 1 de Janeiro de 1994, a instauração de uma coordenação fortalecida das políticas económicas, com alvos a redução da inflação, das taxas de juro e das fluctuações dos câmbios, e uma limitação dos défices dos Estados membros, antes do uso, a partir de 1999, de uma moeda única. O qual uso era preparado pelo Instituto Monetário Europeu (IME).
Assim, e com a substituição dos bancos centrais nacionais (que no entanto não desaparecerem) pelo Banco Central Europeu, em 1999, foi tornado impossível o empresto a taxas de juro a 0% ao pé dos bancos nacionais. Dai, os Estados são tributários dos interesses privados e financeiros. Enquanto esta realidade permanece, e enquanto os meios liberais consideram o aumento da dívida como uma desculpa para impôr medidas de austeridade e o desregulamento das economias nacionais – embora o nível baixíssimo das taxas de juro, inclusive para países em dificuldade económica como a Espanha, a França e a Itália, deveria pelo contrário incentivar os emprestos sem no entanto desesperar da situação –, os problemas encontrados desde 2008 repetirão-se inevitavelmente, provocando novas crises políticas a todos os níveis.