A Europa frente à democracia (2/2): França em 2005, Reino Unido em 2016: quais lições tirar do voto das categorias populares sobre a União Europeia?
No âmbito da comunidade europeia em construção (e em crise), os povos tiveram várias vezes a ocasião de exprimir a sua oposição às orientações políticas e econômicas da União Europeia nos quarenta últimos anos, ou seja, desde o Ato Único (1986) e o tratado de Maastricht (1992). Ainda foi o caso nas últimas eleições europeias de 2009, quando a abstenção atingiu quase um eleitor inscrito sobre dois, e que os votos anti-UE conhecerem uma forte progressão. Para analisar a crise da democracia europeia, iremos neste artigo concentrar-nos sobre dois terramotos que conheceu a União Europeia, a mais ou menos uma década de intervalo. Em 23 de Junho de 2016, os Britânicos tiveram que dizer se tinham que permanecer (Remain a member of the European Union) ou deixar (Leave the European Union) a União Europeia. Eles quizeram sair, por 51-89% dos votos (72,2% de participação). Entre os dois votos, uma diferença de um milhão e 269 000 votos. Fora de raras excepções (a Argélia francesa em 1962 e a Groenlândia em 1985, os quais no entanto não tinham estatutos de Estados membros), era a primeira vez que a UE viu-se condenada a reduzir-se, e não a alargar-se. E com a partida de um membro muito particular, a quinta potência mundial (e a terceira da UE).
Apesar das laboriosas negociações que estabelecerem-se entre 2017 e 2019 entre o Reino-Unido e a União Europeia, após a aitvação do artigo 50 do tratado de Lisboa que permite a saída de um Estado membro, Londres acabou por sair. Esse voto de 2016 chegou onze anos após os referendos de 2005 em França e nos Paíxes Baixos, onde os povos disseram « não » ao Tratado que institui uma Constituição para a Europa. Em França, em 29 de Maio de 2005, o « não » atingiu 54,67%, por 69,33% de participação. Num caso como no outro, no Reino-Unido como na França, tomando por comparação esses dois países comparáveis, esses resultados provocaram um choque na classe política, à escala nacional e europeia, nas mídias tradicionais, e nas redes sociais.
Após um ano 2015 marcado pelo sucesso da esquerda radical, com a chegada no poder de Syriza na Grécia em Janeiro (e a sua recondução em Setembro), o referendo grego de de Junho rejeitando as medidas de austeridade impostas pela Troïka (FMI, BCE, Comissão Europeia), a aliança das esquerdas portuguesas levando a um governo anti-austeridade em Outubro, ou ainda o relativo sucesso de Podemos em Decembro, após esse ano 2015, portanto, o ano 2016 tinha sido marcado por um outro tom. No referendo do 6 de Abril, os Holandeses rejeitaram por 61% o Acordo de associação ligando a União Europeia com a Ucrânia (32,28% de participação), o que fragilizava então a política exterior da UE em relação à Rússia; sobretudo, a campanha ilustrou a desconfiança dos Holandeses em relação ao alargamento da União, e aos riscos de um aumento da imigração vinda da Europa de Leste. Em 2 de Outubro na Hungria, o Primeiro ministro Victor Orbán convocou um referendum que deu um resultado incontestável, apesar de uma abstenção forte, de 56,65% (ou seja, não atingiu o quorum de 50% de abstenção necessário para ser validado): por 98,33%, os votantes rejeitaram « a instalação obrigatória de cidadãos não-húngaros » prescrita pela União Europeia « sem a aprovação da [sua] Assembleia nacional ». Entender: os Húngaros recusaram o princípio da relocalização de refugiados no seu solo, prevista no âmbito da UE.
Sem esquecer o famoso referendo britânico, que permitiu a perspectiva do « Brexit ». O Primeiro ministro David Cameron o tinha prometido na sua campanha eleitoral, nas legislativas de 2015. O resultado foi aquele que sabemos, embora Cameron tinha conseguido impor aos seus parceiros europeus negociações que tinham chegadas, em 19 de Fevereiro de 2016, a um acordo que dava ao Reino-Unido mais margens de ação na União Europeia. David Cameron deixou a sua carga o dia a seguir do voto referendário, Theresa May assumindo a tomada de posse em 13 de Julho de 2016 – Boris Johnson sucedeu-lhe em 24 de Julho de 2019. Esses resultados todos ilustram uma crise profunda da democracia europeia, que já tínhamos analisada por parte num primeiro artigo em Janeiro, pelo prismo das consequências políticas do referendo grego de 2015, dez anos após o choque dos referendos francês e holandese de 2005 (A Europa frente à democracia (1/2): anos depois da rejeição da Constituição europeia e da crise grega, quais consequências a longo prazo, quais responsabilidades?). Desta vez, o objetivo é analisar essa mesma crise pelo prismo sociológico dos referendos francês de 2005 e britânico de 2016.
No Reino-Unido como na França: o que traduz o voto das categorias populares
Mesmo onze anos após o referendo de 2005, a situação do Reino-Unido faz estranhamente eco à da França. É também o caso, mas menos obviamente, com os Paíxes Baixos, onde na questão europeia, criou-se gradualmente uma distância entre as elites e o povo, quase os dois terços dos votantes tendo votado contra a Constituição europeia em 2005, enquanto a classe política permanece, mais ou menos por 80%, muito pro-UE.
As semelhanças entre as duas margens do canal de La Manche/English Channel, são óbvias. Os dois países conhecerem um surgimento muito importante dos partidos nacionalistas e eurocéticos: Front national (que virou Rassemblement national em 2018) em França, UK Independence Party (e Brexit Party a partir de 2019) no Reino-Unido. Nos dois, os partidos da direita, conservadores, correm atrás em termos de discurso e de ideias: UMP/Les Républicains em França, Conservative Party no Reino-Unido. Nas últimas eleições europeias, o FN/RN chegou em primeiro lugar na França, com 24,86% em 2014 e 23,34% em 2019, e o UKIP/Brexit Party igual no Reino-Unido, com 26,60% em 2014 e 30,74% em 2019. A diferença sendo que a relação à globalização e à imigração é um pouco diferente nos dois países, mas nos dois casos, colocava-se a questão da soberania nacional em relação à União Europeia. O que pode explicar os péssimos resultados do British National Party, nacionalista, anti-imigração e anti-globalização, que nunca ultrapassou 2% nas legislativas, e cujo o maior resultado nas europeias foi 6,3%, em 2009. Por outro lado, em França, a direita nacional consegue surgir com base temáticas mais amplas, não só concentradas na questão da UE.
Entre a France e o Reino-Unido: dois Estados com Produtos Interiores Brutos (PIB) semelhantes e populações equivalentes, duas antigas potências coloniais, únicos países da União Europeia a estar de forma permanente no Conselho de segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) e a ter a arma nuclear. Duas grandes potências que ainda têm uma influência consideráveis em regiões extra-europeias (Oriente Médio e África austral para Londres, África de Loeste e central para Paris) e uma capacidade de projeção militar excepcional. Estados que guardam muitos territórios além-mar, países de imigração há décadas, ambos foram historicamente o coração da democracia liberal europeia e cujas áreas industriais (no leste e no norte da França, no norte da Inglaterra) conhecerem violentas mutações econômicas ligadas à globalização a partir dos anos 1970. Entre essas duas nações portanto, as semelhanças são grandes. Entrevistado pelo site Internet Atlantico.fr, Emmanuel Todd explicou, em 3 de Julho de 2016: « Há uma grande mentira das elites francesas quando elas pretendem desconfiar da Inglaterra. [Há] uma relação de confiança extremamente forte. […] Há só algumas dezenas de milhares de Franceses em Berlim, enquanto há centenas de milhares em Londres. Como há Ingleses em França. Há duas megalópolas gêmeas na Europa, são Londres e Paris. As dinâmicas demográficas dos dois países são as mesmas, pertas de duas crianças por mulher. » O demógrado e historiador francês acrescenta: « O discurso sobre a oposição entre a Inglaterra neoliberal e desigual e a França do Estado social contem um elemento de verdade, mas quando observa-se esses dois países, vemos que eles evoluem em paralelo, sobre a opressão dos jovens, os privilégios dos idosos. Todas as nações são diferentes, mas a objetividade comparativa deve nos forçar a admitir que o verdadeiro mundo estrangeiro, não [é] a Inglaterra. »
O estudo do geógrafo francês Christophe Guilluy, publicado em 2010 sob o título Fracturas francesas, enriquece consideravelmente a análise do voto contra a Constituição europeia, e explica mais amplamente a hostilidade crescente do povo francês em relação das instituições da UE. O seu livro não trata diretamente da relação dos Franceses à questão europeia, mas desenvolve a noção de « França periférica » e analisa a distância separando as categorias populares e as suas elites. « A evocação da sua realidade social e territorial, explica Guilluy, permite constatar os efeitos concretos das escolhas econômicas e sociais das classes dominantes. »
Demistificação das relações sociais habitualmente apresentadas pelas mídias, em particular a oposição entre as periferias urbanas (as banlieues francesas) e os outros territórios, o livro de Christophe Guilluy base-se num constato: muitas famílias assimiladas « França baixa » (ou seja, popular) gradualmente deixaram as periferias urbanas, as banlieues, cuja imagem nas mídias e na imaginação coletiva é péssima, marcada pelos problemas de insegurança, mas elas não foram morrar nos centros urbanos, mas em meios peri-urbano, relativamente desconetados da cidade. Com ao mesmo tempo uma forte desindustrialização e fenômenos de gentrificação (aumentos dos preços das habitações), a evolução das metrópoles desde o final da década 1970 claramente participou à partida das categorias populares em direção do peri-urbano. A cidade industrial as atraiu, as acolhia; o modelo metropolitano contemporâneo as rejeita violentamente. As categorias populares são agora longe dos centros de decisão e das conexões de transporte ligando as banlieues aos centros urbanos. Quanto à classe política, ela prefira concentrar-se numa « questão das banlieues » caricaturada e equivocada. Como o escreve Guilluy, « a instrumentalização política das banlieues participa não só ao fracasso das políticas públicas nesses territórios, mas também à dificuldade de estabelecer um diagnótico a partir das dinâmicas sociais demográficas que conhecem [as banlieues e o peri-urbano] desde trinta anos ».
« O constatamos, se o desaparecimento cultural e político das categorias populares sublinha a crise democrática, ele permite sobretudo instalar de forma sustentável a imagem errada de uma sociedade em paz, [dominada pela classe] média e consensual. A invisibilidade das camadas populares evacua a própria ideia de conflito. A conflictualidade social e cultural já não faz parte da área política; aliás, é uma das causas principais do descontentamento de uma grande parte dos eleitores com os partidos políticos. Essa sociedade sem conflito permite entreter com eficiência o mito de uma classe média maioritária e beneficiária da globalização. » Essas palavras de Guilluy, que fazem eco aos protestos dos Coletos amarelos em 2018-2019, considerados por muitos observadores como o grito de protestação de uma « França invisível », resumem muito bem o sentimento de insegurança social e cultural dessa « França periférica », voluntariamente esquecida. Essa França que permitiu o sucesso do « não » em 2005. Nesses referendos, em 2005 como em 2016, há o sentimento de uma clivagem entre os que sofrem, que não são mestres do seu destino, por causa da globalização e da financiarização, e os que têm o sentimento de ser armado na globalização e de poder ser mestres do seu destino.
A evolução do voto em França entre o referendo de 1992 sobre o tratado de Maastricht e o de 2005 sobre o tratado estabelecendo uma Constituição europeia. Os territórios de além-mar (Guadeloupe, Guyane, Martinique, La Réunion) não são representados aqui, mas votaram maioritariamente todos « sim » nos dois referendos, com mais de dois terços dos votos exprimidos em 1992, e com sempre mais de 58% deos votos em 2005. Só uma excepção: La Réunion, que tinha votado « sim » por 74,24% dos votos em 1992, rejeitou a Constituição europeia por 60% em 2005.
Além das áreas peri-urbanas e as suas populações « invisíveis », acha-se também, na França que votou « não », os territórios desclassificados desde os anos 1980, em particular, como já o ilustrava o mapa do referendo sobre o tratado de Maastricht em 1992, as áreas desindustrializadas do norte e de leste da França. Ainda em Fraturas francesas, Christophe Guilluy evoca « o abandono da classe operária pelos políticos », notando, desde que os socialistas franceses apropriaram-se a economia de mercado, « uma indiferença crescente para a classe operária em particular e, mais geralmente, para as camadas populares dos espaços peri-urbanos e rurais. […] A esquerda cultural e a direita liberal concordam numa mesma vontade de abandonar gradualmente o modelo egalitário republicano. […] Todas as classes dirigentes de direita e de esquerda encontram-se assim numa mesma linha ideológica. » São bem as políticas implementadas desde mais de trinta anos, seja pela esquerda ou pela direita, com as grandes linhas definidas em Bruxelas (pela Comissão Europeia ou pelo Conselho dos ministros), que acentuaram os problemas do país, e que foram sanccionadas em 2005. O processo acentuou-se desde os anos 1990. Lembramos que entre 2000 e 2007, 63% das destruições de empregos industriais em França foram a consequência da concorrência internacional, planificada e enquadrada pela UE desde o Ato Único. Uma realidade que teve grandes consequências sobre a geografia social da França, e portanto, já foi dito, sobre a geografia do voto.
Desde os anos 90, constatando a existência de « duas França », Emmanuel Todd analisou muito o mapa do « não » ao tratado de Maastricht em 1992, e a sua reflexão enriquece o que já sabemos sobre a questão europeia, e mais geralmente sobre o futuro da democracia social. A clivagem já não é mais o de uma horizontalidade ideológica (direita-esquerda, liberal-socialiste, etc.), mas é o de uma verticalidade social, entre a França « baixa » e a França « alta ». Todd fala de um « confronte entre classes médias que vêem-se como elites, e classes populares que já não se sentem mais representadas por qualquer doutrina ou programa ». Ele luta assim, como o faz Guilluy, contra a visão consensual da estrutura social que levam as elites políticas e mediáticas, visão que « impede a representação política dos conflitos de interesses e de classes que conhece a sociedade francesa ». Em breve, a ilusão que tudo está bem, no âmbito da construção europeia e da « feliz globalização ».
Na Inglaterra, são também os « perdedores » da globalização que provocaram o resultado de Junho de 2016. A sua vontade sendo de restaurar a soberania que a sua nação gradualmente perdeu ao benefício da União Europeia, do setor privado, da finança (a famosa City britânica), em particular desde os anos Thatcher (1979-1990) cuja herança foi assumida por Tony Blair (1997-2007). A ambiguidade está ai, e os « prescriptores de opinião » argumentam assim: os que querem restaurat por parte a soberania à escala do Estado, os que consideram que a democracia tem sentido ao nível nacional, ou seja a escala à qual os cidadãos identificam-se mais, essas pessoas, por privilegiar a nação em vez da Europa ou do mundo, só podem ser fechadas, conservadores, reacionárias, anti-progressistas, errados, e fundamentalmente maus. Seja de direita ou de esquerda, de extrema-direita ou de extrema-esquerda, caricaturar o seu oponente tem como vantagem acabar logo com o debate, pois por princípio todos os seus argumentos serão vistos como nulos e irrelevantes – ou seja, qualquer crítica contra a Europa é desconsiderada, qualquer seja ela. Foi a postura assumida, por exemplo, nas eleições gerais de 2017 e europeias de 2019 em França, quando Emmanuel Macron e os seus torcedores trataram o Front national como o seu primeiro inimigo e contentaram-se de alertar sobre a volta dos nacionalismos, multiplicando as comparações com a década de 1930. Contudo, essa estratégia esconde mal a pobreza dos argumentos pro-União Europeia. De fato, a construção ideológica que opõe « globalistas liberais » e « nacionalistas protecionistas », ou pior, « humanistas » ou « progressistas » versus « conservadores » e « racistas », já não basta para convencer os cidadãos de votar como eles querem. Essa dicotomia abusiva deixa o debate num impasse, e acentua a distância entre elites e categorias populares. Em breve, o argumento segundo o qual « a construção europeia, é a paz e a fraternidade entre os povos » já não tem eco para muitas pessoas, como o tínhamos analisado num artigo de Fevereiro (O ditado « a Europa é a paz » ainda é relevante? A necessidade de agir para convencer, e não convencer que se age).
Na entrevista de Julho de 2016 já mencionada, o demógrafo e historiador francês Emmanuel Todd ia no mesmo sentido: « Os Britânicos vão-se porque eles não gostam da burocracia de Bruxelas, claro, mas sobretudo porque eles são fundamentalmente ligados à liberdade. Eles vêem a Zona euro […] como o lugar de uma deriva antidemocrática. E claro, a saída da Inglaterra do espaço europeu central nos anuncia num primeiro tempo uma acentuação da deriva autoritária dessa "Europa". » Ele acrescenta sobretudo que « a democracia [...] só pode, para funcionar, ser nacional ». Não por xenofobia ou por nacionalismo, mas simplesmente porque antes de se sentir « europeus » ou « cidadãos do mundo », as pessoas sentem-se nacionais. Os Franceses se sentem franceses, os Britânicos britânicos, os Italianos italianos, etc. E culpá-los disso seria absurdo. Nesse sentido, as posturas de alguns partidos ecológicos ou liberais nos quais certos membros dizem-se favoráveis a uma estrutura claramente federal no qual seriam integradas os Estados-nações europeus, é claramente fora de contato com os sentimentos identitários dos cidadãos lambda. Uma construção política só pode ser um fracasso se ela não traduz-se por uma melhoria concreta da vida das pessoas, claro, mas também se ela não cria um sentimento de pertencimento, uma certa consciência coletiva, uma vontade de constuir-se um destino comum.
Na França e no Reino-Unido, são sobretudo as classes desclassificadas que votaram contra a UE, em 2005 como em 2016. A construção europeia participou ao desmantelamento das redes de proteção do Estado que preservam as categorias socio-professionais as mais vulneráveis dos efeitos da globalização. Nesse sentido, as orientações políticas e econômicas adoptadas por Theresa May e depois por Boris Johnson desde que acederem no poder, em contraste com as de Margaret Thatcher na década de 1980, mostram que as elites políticas britânicas pós-Brexit – isso vale também para o Labour Party, onde o socialista Jeremy Corbyn assumiu a partir de 2015 uma postura contrária à do liberal Tony Blair na década anterior – preferiram ouvrir a voz do povo, em vez de submeter-se às ameaças dos homólogos europeus que tinham prometido « um Brexit duro » (François Hollande, em 20 de Outubro de 2016). « Na geografia eleitoral do Brexit, o que mais me impressionou, dizia ainda Todd no site Internet Atlantico.fr em Julho de 2016, não é tanto o voto Remain da Escócia ou de Londres, esperados, mas a abolição da clivagem Norte-Sul que parecia destruir a Inglaterra. A Inglaterra votou Leave de forma homogénea nas regiões conservadores do Sul e nas regiões trabalhistas do Norte. Um pouco como se o referendo já tinha começado a reunificar a sociedade britânica. »
O mapa eleitoral a seguir baste a confirmar esse constato. O referendo de 2005 em França mostra também (ver o mapa anterior) uma forte unanimidade em desfavor do tratado que institui a Constituição europeia (enquanto o voto em 1992 sobre o tratado de Maastricht dividiu mais). Isso pode ser explicado tanto pelo empobrecimento das classes médias inferiores, e pela aproximação (espacial) com as categorias populares. Os belos discursos sobre a grandeza da construção europeia não bastam mais para convencer, e diante do fracasso das políticas implementadas na França e na Europa desde os anos 1980, a lassidão e a raiva são agora sentimentos partilhados por uma maioria de pessoas. Os operários, empregados, desempregados, jovens e apousentados dos meios defavorecidos, ontem opostos, partilham atualmente uma percepção comum dos efeitos da globalização e do seu corolário urbano, a metropolização. O « não » de 2005, e as eleições sucessivas que sanccionam constantemente os governos, representam um grito de raiva dessas categorias, que lembram que é preciso contar com elas. Essa França, popular e egalitária, só desapareceu nas mídias, fora das parênteses que encarnou o movimento de contestação dos Coletos amarelos a partir de Novembro de 2018, e ela recusou submeter-se ao mito de uma « feliz globalização » cujos frutos têm um gosto amargo. Nesse sentido, Guilluy acrescenta: « Agora, só as camadas médias superiores dizem-se maioritariamente "bastante à vontade" em termos financeiros: problema, essas categorias só representam 15% da população ativa! Esse colapso das classes médias é ainda mais sensível porque intervem num momento que o movimento de redução das desigualdades, iniciado no início do século XX, está sido revertido. »
Como o escreveu o economista francês Jean-Jacques Netter num artigo do site Internet Atlantico.fr publicado em 25 de Outubro de 2016, a França « é curtado em três: 1/ uma França que vive na globalização, que aceita a economia de mercado e que confia no futuro. Todas as pesquizas de opinião concordam para estimar que isso representa mais ou menos um terço dos Franceses. 2/ uma França que vive protegida pelo Estado à sombra de estatutos especiais, de subvenções e de alocações diversas. O que representa mais ou menos 20 milhões de Franceses.. 3/ a França dos excluidos de tudo que conta agora 25 milhões de pessoas é a vergonha do [nosso] "modelo social". » Se essas tendências, um pouco grosseiramente descritas, têm um fundo de verdade, existe, claro, uma grande diversidade social nas áreas rurais, peri-urbanas e industriais, nessa « França dos excluidos de tudo », e seria possível analisá-las com mais precisão do que o fará este artigo. As especificidades de cada categoria varia segundo o nível de desenvolvimento local, da distância separando os indivíduos da cidade, etc. No entanto, acha-se bem, nessa « França periférica », a maioria dos operários e empregados, muitas vezes do setor privado, dos agricultores, mas também a maior parte dos apousentados modestos, muitas vezes precários (essencialmente antigos operários e empregados). O mundo camponês e os jovens rurais inscrevem-se sem dúvida mais do que qualquer outro nessa pobreza « invisível » descrita por Guilluy.
Problema, e ai está toda a dificuldade em abordar comportamentos eleitorais sem desprezo, sem condescendência, mas também sem ingenuidade, o sentimento de desclassificação social e de desassociação cultural favorece o apego a conceitos identitários simples e tranquilizadores, que o Front national pretende levar. Uma tal postura explica que a campanha do referendo britânico seja tido concentrada na questão migratória. A esquerda tendo abandonado as preocupações das categorias populares, as mesmas viraram-se pelo Front national, o qual adoptou uma retórica de tipo soberanista social, como tinha o presidente de Gaule nos anos 60 e a esquerda até a década de 70. Em meio metropolitano, a « questão social » é deixado de lado ao benefício de assuntos de sociedade que muitos partidos de esquerda, como o Partido socialista e os Verdes, prefiram abordar. O que explica por que esses dois partidos em particular fazem geralmente resultados péssimos logo que não se trata de áreas urbanas.
O mapa do voto de 2016 permite analisar o voto, região por região (mapa de direita), mas também de maneira mais fina (mapa de esquerda). Londres votou por 59,9% em favor do « Remain », a Escócia por 62%, e a Irlanda do Norte por 55,8%. O País de Gales votou em favor da saída por 52,5%, e na Inglaterra, nas oito regiões (fora de Londres)todas fizeram essa escolha, e fora do Sudeste, do Sudoeste e do Noroeste, todas votaram « Leave » por mais de 55% dos votos, como o mapa o ilustra bem. O melhor resultado do « Remain » foi observado no território de Gibraltar, onde recebeu 95,9% dos votos exprimidos, e a seguir no distrito de Lambeth, no Sul do Grandes Londres, com 78,6%. E o melhor resultado do « Leave » no distrito de Boston (na costa Leste, na região de East Midlands) com 75,6% dos votos.
Uma distância entre o povo e as elites, chamada a permanecer em França
Claro, como já foi o caso em 2005 na França e nos Países-Baixos, a classe política de centro-direita e de centro-esquerda, em Londres como em Bruxelas, anunciou muitos desastres, um colapso, em caso de vitória do Leave. Logo em Janeiro de 2016, o então presidente da Comissão Europeia Jean-Claude Juncker prometeu que, em caso de voto negativo dos Holandeses na ratificação do acordo de associação com a Ucrânia, uma « crise continental ». No dia a seguir o referendo no Reino-Unido, só bastava ir um pouco nas redes sociais de Internet para achar que os Britânicos tinham acabado com a própria ideia de projeto europeu, ou até com a paz e a coexistência dos povos no continente. Contudo, o perigo não está ai. Se as nossas sociedades permanecem preocupadas com a paz e a prosperidade que a construção europeia pretende ter permitido, a surdez das nossas classes dirigentes em relação às categorias populares deixa lugar a violentos problemas de afirmação nacional, que ameaçam os princípios de bom entendimento e de cooperação entre os povos europeus, de tolerância, de solidariedade e de Estado de direito.
As exagerações apostando sobre « o fim da Europa » ou « o fim do projeto europeu » após o voto do 24 de Junho de 2016, denunciando os diversos populismos no continente, deixam a pensar que, como a seguir dos referendos na França e nos Países Baixos em 2005, como na Irlândia em 2008, ou como na Grécia em 2015, as elites europeias ainda não têm a abordagem correta. Além disso, elas perdem-se num catastrofismo absurdo e irracional, que vale bem o dogmatismo de muitos partidos nacionalistas que culpam sistematicamente todos os problemas do seu país no ombro da União Europeia. Os dirigentes europeus, as classes políticas nacionais na Europa de Loeste, mas também muitas vozes nas mídias e nas redes sociais, deploram o nacionalismo, o espírito de fechamento, e a suposta inaptidão, ignorância dos povos, tudo isso formulado com um tom elitista muito desdenhoso. de fato, observa-se um aumento preocupante da xenofobia, em particular na Europa de Leste, em França, no Reino-Unido, na Itália por exemplo, e, mais surpreendente dada a história desse país, nos Países-Baixos. Mas denunciar o racismo ou a estupidez dos cidadãos é uma resposta um pouco fraca. Já é tempo de questionar-se sobre o fato que, na França em 2005 como no Reino-Unido em 2016, são as regiões desclassificadas, as categorias socio-professionais « invisíveis », que permitiram o sucesso do voto contra a União Europeia.
Talvez é entre outras coisas porque na França, os debates sobre a UE não são colocados de forma séria, razoáveis e convincente, que o Front national permanece liderando a maioria das eleições ao nível nacional. No Reino-Unido pelo contrário, o UKIP só totalizou 12,65% dos votos nas legislativas de 2015, o seu melhor resultado até agora – mas que traduziu-se então com somente um deputado no Parlamento (dadas as modelidades eleitorais específicas do sistema britânico). Isso explica-se pela promessa do Primeiro ministro David Cameron, em 2015, de organizar um referendo sobre a saída da União Europeia, que deu aos eleitores a perspectiva de ser consultados sobre a questão europeia fora do contexto das legislativas; de fato, a candidatura de Theresa May em 2017, e a seguir a de Boris Johnson em 2019, ambos assumindo a vontade de aplicar a decisão popular de sair da UE, tiveram o mesmo impacto sobre o UKIP (em 2017) e o Brexit Party (em 2019). Na França, nenhum voto é previsto pelas elites políticas francesas para questionar o âmbito comunitário e a orientação das políticas europeias.
Guilluy, « é impressionante constatar que a degradação das condições de vida e de trabalho das camadas populares e médias [não] levou a uma contestação radical nem a movimentos sociais destabilizadores (os únicos movimentos amplas são os da função pública, ou seja, da parte de uma classe média protegida dos efeitos da globalização; esses movimentos – por definição integrados ao aparelho de Estado – não tentam questionar o sistema). » A última constatação é interessante a ler hoje em dia, enquanto passou, desde então, o movimento dos Coletos amarelos em 2018-2019. Por enquanto, a classe política francesa parece incapaz de aproveitar do comportamento muito razoável dos cidadãos para mudar a orientação e as políticas da UE enquanto ainda é tempo de o fazer.« O referendo, é a demagogia e o populismo », « O referendo é a arma dos regimes autoritários », « Os eleitores não respondem às perguntas propostas », « Os referendos magoam e dividem », « O referendo é um elemento perturbador da democracia representativa », « Os povos votam pela emoção »: a seguir dos referendos nos quais elas constatam a sua rejeição pelo povo, as elites costumam criticar muito esse modo de consulta – e foi particularmente o caso em 2016, após votos como o referendo de Junho no Reino-Unido, ou o na Colômbia em Outubro de 2016, quando uma maioria de votantes (37,44% de participação) recusou por 50,21% um acordo de paz com as Forças armadas revolucionárias de Colômbia (FARC). Contudo, a Suíça está ai para nos provar que democracia representativa e democracia direta não são antitéticas. Além disso, as críticas formuladas contra o referendo (uso indevido do voto, excesso de demagogia, paixão dos debates...) poderiam ser levadas contra as próprias eleições: será que temos que deduzir desse constato que temos que questionar a prática das eleições? No século XIX, a mesma argumentação era usada para justificar o sufrágio eleitoral censitário. O povo é estúpido demais para responder às perguntas formuladas, ele não entende os desafios, os problemas, as subtilidades, e só responde com as suas emoções, não com a sua razão. No entanto, todo o mundo satisfaz-se da opinião do povo quando ele vota como as elites. Quem denunciou a ratificação do tratado de Maastricht pelos Franceses, em 1992, por 51,04%? Quando os Portugueses aprovaram por 59,25% a interrupção volontária de gravidez, em 2007? Ou quando o casamento homosexual foi validado por 62,07% dos votos na Irlândia, em 2015? Ou quando os países de Leste aprovaram sucessivamente, em 2003, a sua entrada na União Europeia? Por que criticar a própria escolha de consultar os Britânicos? A União Europeia é suposta ser um conjunto de nações que desejam construir uma comunidade de destino? Então, nenhuma obrigação, e se um povo quer deixar o barco, mais vale o saber e deixá-lo ir do que recusar-se a consultá-lo e ver crescer as suas frustrações e os seus ressentimentos.
Obviamente, é absurdo dizer que o referendo, em geral, é bem ou é mal. Pois não há nada a ver entre as consultas na Suíça, que passam-se muito bem, e o exemplo oposto que representa o referendo de Agosto de 1934 pelo qual Adolf Hitler fusionou, na Alemanha, as cargas de chefe do governo e de presidente do Estado, estabelecendo oficialmente um novo regime de tipo ditatorial. Que nem nas eleições, a validade de um referendo depende do contexto da campanha. Lembramos por exemplo que a democracia no Chili foi restaurado após um referendo, o de 1988, quando 55,99% dos muitos votantes (97,53% de participação) rejeitaram uma reforma constitucional que teria prolongado a presidência do general Ausgusto Pinochet. O referendo permite colocar o cidadão lambda no coração do processo de decisão; assim, ele apropria-se assuntos importantes e concretos, e pode exprimir-se diretamente. Quando as elites entendem que a distância que as separa das categorias populares cresce, elas denunciam o « populismo » e a « demagogia » para rejeitar o próprio princípio do referendo. Como se os partidos pro-UE, com os seus discursos catastrofistas e a sua ênfase vazia, não usassem de demagogia nos debates sobre a construção europeia...
Em relação aos referendos na França e no Reino-Unido, a crítica, depois do voto, do princípio do referendo, não só ilustra uma leitura errada da situação. Mostra o aumento significativo da distância entre classes sociais. Queremos evitar consultar diretamente as categorias populares e as classes médias inferiores, embora elas constituem, juntas, a maioria da população. Como se a sociedade fosse melhor gerida sem elas (ou contra elas) do que com elas.
do canal de La Manche/English Channel
Sendo este artigo amplamente inspirado da análise de Christophe Guilluy sobre a nova geografia social da França, essas poucas palavras do capítulo 7 do seu livro Fraturas francesas, chamado « Por trás da globalização feliz », resume muito bem a questão social atual, acrescentada de uma perspetiva histórica.
A geografia social [...] transforma-se segundo as mutações econômicas e as evoluções sociodemográficas. A revolução industrial e o desenvolvimento da classe operária modelaram então a paisagem social dos séculos XIX e XX, em particular com as oposições entre territórios industriais e rurais, autarquias operárias e burguesas. O tempo dos Trinta Gloriosos [...] vê surgir uma nova geografia social, a da França dos pavilhões ligada à emergência de uma classe média maioritária.
[Temos agora] uma geografia social singular, ligada por um lado à adaptação da sociedade francesa à economia globalizada mas também ao surgimento de uma nova estruturação social. Nas ruínas da classe média maioritária, assiste-se de fato a uma recomposição das categorias populares e à sua redistribuição no território.
Ele continua explicando: « Essa recomposição social e conômica é levada pela "metropolização", ou seja, a concentração nas grandes cidades das atividades nas quais base-se agora a economia francesa; um modelo de desenvolvimento que não integra as classes populares. » E acrescenta o seguinte.
Pela primeira vez na história, as classes populares não são mais no coração da produção das riquezas. Se o mercado do emprego metropolitano cria as condições da presença dos quadros e, à margem, dos imigrantes, ele cria pelo contrário as condições da evicção dos mais modestos. O resultado é imparável.
Operários, empregados, pequenos agricultores, apousentados e jovens dessas categorias vivem agora à margem desses « territórias que contam ». É uma primeira. [Essas] repartem-se numa « França das fragilidades sociais », à periferia dos territórios os mais dinâmicos, os das metrópoles. Essa geografia social permite sublinhar o lugar exato conferido às camadas populares, na hora da globalização: o da « periferia ».