Revolução sudanesa (1/2): como o povo sudanês pôs fim a trinta anos de reinado de Omar al-Bashir
Em 11 de Abril de 2019, Omar al-Bashir, ditador que dirigia o Sudão há trinta anos, foi destituido pelo exército, após meses de protestos de massa que afetaram várias cidades do país, em particular a capital, Cartum. Após negociações laboriosas entre a contestação popular e o exército, uma agenda de transição foi decidido, em Julho de 2019. Como é que chegou a esse ponto o país, ao qual foi imposto um regime particularmente autoritário que deu uma importância considerável aos militares e aos islamistas desde 1989? Qual mistura de ingredientes permitiu os meses de mobilização que conduziram à queda de Omar al-Bashir, e depois ao acordo de transição com os militares?
Por lembrança, o nome do Sudão vem do árabe balad as-sudaan, « país dos Negros ». É uma terra de câmbios há séculos, que teve a sua idade de ouro, durante a Antiquidade, sob as gloriosas dinastias nubianas de Kerma, entre os séculos XXV e XVI, e egípcio-nubianas de Napata e depois de Méroé, entre os séculos XVI e IV antes da nossa era. Se ela não conheceu o crescimento dos grandes centros demográficos da região (planaltos de Abissínia, delta do Nilo), ela não deixa de ser, ao longo da sua história, uma terra de trocas intensas entre a África do Norte e o Chifre do continente, ao mesmo tempo que um espaço cosmopólito. Gradualmente islamizado na Idade Média, o Sudão foi conquistado em 1820 pelo Egito de Mehmet-Ali, uma invasão que conclui a islamização do país.
Podemos situar naquela altura o nascimento do Sudão « moderno ». De fato, o Sudão nilótico conhece o seu primeiro renascimento nacional com a ação do guia religioso Muhamad ibn Abdallah, o qual autoproclamou-se Mahdi (« enviado »), unifiou as tribos do centro e do oeste a partir de 1881, venceu o éxercito egípcio e tomou Cartum, em Janeiro de 1885, antes de morrer em Junho do mesmo ano; o regime mahdista sobreviveu até 1898. Entretanto, entre 1896 e 1898, a conquista « anglo-egípcia » é marcada por violentes massacres contre os adeptos do mahdismo. Em 1898, a derrota dos Sudaneses na batalha de Omdurman, e depois a crise franco-britânica de Fachoda, consagram definitivamente a dominação britânica sobre o país. O Sudão colonial nasce oficialmente em 19 de Janeiro de 1899, com o estatuto de condominium anglo-egípcio, e é dirigido pelo governador lord Kitchener. Será preciso um meio-século, o ano 1956 mais precisamente, para ver o país aceder à independência.
Distúrbios estouram rapidamente após a partida do colono britânico: instabilidade governamental, lutas entre facções tribais ou políticas, dissidências étnicas, estagnação económica... Entre 1955 e 1972, uma primeira guerra civil até surge entre o poder central de Cartum e a parte meridional do país, povoada em maioria por populações negras e confissão cristã ou animista, que exigem o estabelecimento do federalismo. De fato, como em toda a África pós-colonial, as fronteiras herdadas da colonização não correspondem a realidades nacionais ou históricas, e obrigam portanto a coabitação entre povos cuja cultura difere profundamente. Em 1969, um golpe põe na direção do país o coronel Gaafar Nimeiry, o qual sobrevive a um golpe comunisto em 1971 e acaba com o conflito com o Sul o ano a seguir, concedando-lhe uma autonomia. Contudo, a situação geral se degrada. Como outros Estados do Sahel, o Sudão conhece várias sécas e fomes nas décadas de 1970 e de 1980. Além disso, a guerra civil com o Sul recomeça a partir de 1983, após a extensão do direito coránico a todo o país. Em 1985, Nimeiry, vítimo de um golpe, é destituido pelo general Abdel Rahman Souwar al-Dahab, o qual fica um ano no poder e permite o regresso de um governo civil, à favor de eleições legislativas em 1986. Já Primeiro ministro em 1966-1967, Sadeq al-Mahdi constitui então um governo de coligação, entre 1986 e 1989; porém a instabilidade política que permanece favorece um enésimo golpe de Estado, conduzido em 30 de Junho de 1989 por um general, um certo Omar al-Bashir.
1989-2019: o reinado de Omar al-Bashir, ou a mistura da corrupção, do fundamentalismo religioso e da ditadura militar
Qual é a herança de Omar al-Bashir, com a qual os Sudaneses devem hoje lidar? Primeiro, uma herança política, amplamente afetada por anos de opressão e de fundamentalismo islamico.
Voltamos sobre o próprio perfil do regime. Autoproclamado presidente do « Conselho do comando revolucionário » (o nome que deu-se a junta militar), Omar al-Bashir, 45 anos de idade quando chegou no poder, cumulou até 1993 as cargas de chefes do Estado, do governo e das forças armadas. Incentivado nesse sentido por Hassan al-Turabi, estratégio da Frente islâmica que tornará-se presidente do Parlamento em 1995 (mas que al-Bashir afastará finalmente em 1999), o novo mestre do Sudão favoreceu muito cedo a aplicação de um islão rigorista, um processo já iniciado sob a era Nimeiry. Na hora na qual o socialismo africano e o nacionalismo árabe conhecem um declínio, al-Bashir considera inevitável o progresso do fundamentalismo religioso. A partir de 1991, ele impõe, com base a Sharia, os castigos corporais em todo o país, com excepção o Sul. Ele vai favorecer a subida de um islão radical dentro da própria instituição militar e como também na educação. Sob o seu regime, ele implementa uma política de nomeações e de entrismo inspirada das agendas islamistas internacionais (ou « projeto Tamkine »), que permite aos membros ou próximos dos Irmãos Muçulmanos de dirigir todos os setores do Estado. Em 1993, o quadro institucional se « normaliza », al-Bashir tornando-se presidente da República de jure. E em 27 de Maio de 1998, uma nova Constituição é oficialmente aprovada por referendo, em 96,7% dos votos – para uma participação de 92%. O regime é presidencial, islâmico, a lei permanece baseada na Sharia. O contexto é o de uma ditadura muito dura, que não permite nem a liberdade de expressão, nem a possibilidade de uma alternância política.
Trinta anos de reinado de Omar al-Bashir, é igualmente um enfraquecimento do Estado diante das revindicações crescentes das forças centrífugas. Forças centrífugas ainda mais legítimas a exprimir-se, porque Cartum só responde, durante décadas, pela repressão e a lei do arbitrário. O Sudão do Sul é o caso o mais antigo imposto aos Sudaneses. Após duas décadas que fizeram dois milhões de mortos e quatro milhões de deslocados, as negociações de paz entre Cartum e o Movimento Popular de Libertação do Sudão (MPLS), que conduz a luta no Sul, conhecem verdadeiros progressos a partir de 2003-2004. Em 9 de Janeiro de 2005, um acordo de paz é assinado entre o poder e o líder do autoproclamado Exército Popular de Libertação do Sudão, John Garang, o qual torna-se, após a implementação de uma nova Constituição em 9 de Julho de 2005, vice-presidente do Sudão. Ele morre em 31 de Julho, apenas uns dias depois, num acidente aéreo, contudo o acordo é implementado. Organiza uma autonomia de seis anos, após a qual um referendo de autodeterminação é organizado. Entre o 9 e o 15 de Janeiro de 2011, os Sul-Sudaneses mobilizam-se em massa (97,6% de participação) para validar a escolha da independência, por 98,9% dos votos. De acordo com Cartum, a República do Sul-Sudão nasce portanto oficialmente em 9 de Julho de 2011, com a cidade de Juba como capital. Vice-presidente do Sudão desde 2005, Salva Kiir Mayardit torna-se chefe do novo Estado. Se os dois Sudões permanecem então ligados economicamente, a subida das tensões a cerca dos litígios frontaleiros e dos recursos em hidrocarbonetos provoca rapidamente uma ruptura diplomática. Entretanto, milhares de Sul-Sudaneses, colocados em campos de refugiados nos arredores de Cartum, são autorizados a regressar – a conta-gotas – no seu (novo país).
Outro conflito importante: desde 2003, as províncias (Wilayas) do Darfur (três naquela altura) são vítimas de violências terríveis. Nesta grande área quase deserta de 510 000 km², povoada por seis a oiti milhões de habitantes, coexistem várias etnias islamizadas, e várias línguas: zaghawa, tedaga, fur, tama, árabe sudanês, etc. Iniciado num contexto de distúrbios transfrontaleiros com as tribos nómadas do Chade, o conflito toma uma dimensão genocidária quando os milicianos (originários das tribos brancas ou negras arabizadas), os Janjawids (tornados depois uma espécie de guarda pretoriana ao serviço de Omar al-Bashir), atacam as aldeias do Darfur, em particular aqueles ligados à etnia zaghawa, provocando o deslocamento das populações, tomando possessão das terras, matando sem razão, violando... Apenas entre 2003 e 2007, três milhões de pessoas são deslocadas, e 300 000 matadas. Um acordo de paz é assinado em Maio de 2006, que prevê a integração de certas milícias de Janjawids no exército sundanês, e também um referendo na região (após um tempo de transição), mas este último nunca foi organizado. Após a independência do Sul-Sudão em 2011, a carga de vice-presidente da República sudanesa é ocupada por uma pessoa originária do Darfur (e membro do partido presidencial, acessoriamente), e em 2012, a região do Darfur é recortada em cinco Wilayas (Norte, Suleste, Este, Oeste e Centro) – mudanças institucionais que revelam-se sem nenhum impacto no conflito. A instabilidade não é questionada pelos acordos de cessar assinados entre 2011 e 2013 com grupos rebeldes: o Movimento de Libertação do Sudão (também ativo no Sul-Sudão) e o Movimento Justiça e Igualdade (MJI). Também não é quando acontece a conferência internacional de Doha, a qual, em 2013, consagrou, porém, um plano de desenvolvimento do Darfur, incluindo a criação de um banco de desenvolvimento e uma ajuda de 3,6 bilhões de dólares vindo por mais dos dois terços do governo sudanês – o Qatar oferecia a maior contribuição estrangeira. Entretanto, a morte de Khalil Ibrahim, fondador do MJI, matado pelo exército sudanês em Dezembro de 2011, reavivou as tensões dos clãs dentro da própria rebelião, provocando o nascimento de movimentos dissidentes. A esse cocktail já complexo, acrescentaram-se as lutas locais para o controlo da terra, da água, das minas e das terras aráveis; em 2013, notavelmente, os confrontos entre duas tribos, os Misseryas et os Salamates, fizeram centenas de mortos e provocaram o deslocamento de 100 000 pessoas.
A degradação da situação securitária acompanhou-se, à escala nacional, de uma deterioração da economia e de uma subida dos descontentamentos e da contestação política, incluindo em Cartum. As eleições presidenciais, as de Julho de 1996, de Dezembro de 2000, de Abril de 2011 e de Abril de 2015, nas quais al-Bashir vencu com um resultado sempre situado entre 65 e 95% dos votos, são, tal como as eleições legislativas, sistematicamente marcadas pelas fraudes, as pressões políticas, ou os limites impostos à liberdade de expressão. Num contexto de pauperização das massas, elas consagram um regime repressivo que impõe à sua população uma ordem social particularmente pesado, com base uma leitura rigorista da Sharia, e uma forte intolerância religiosa. Esta última é ilustrada, entre outras coisas, pelo destino das minorias coptas, católicas e anglicanas, reduzidas à clandestinidade, ainda mais depois da cisão do Sul em 2011 – o Sudão aparece regularmente nos últimos lugares em todas as classificações internacionais sobre a liberdade religiosa. Aliás, em 2014, o caso de uma Sudanesa, Meriem Yahia Ibrahim Ishag, 26 anos, condenada por apostasia à pena de morte (nascida de um pai muçulmano, ela praticava de fato a religião da sua mãe, cristã), tinha provocado um alvoroço imenso, em particular depois de ela ter dado a luz ao sua segunda criança em prisão; finalmente, ela tinha tido libertado sob a pressão internacional, antes de partir em exílio.
Se ela fazia sentido no plano político e cultural, a perda do Sul-Sudão custa, obviamente, muito caro a Cartum. renunciando a 620 000 km² (e uns dez milhões de habitantes), o Sudão já não é o maior país da África, e ele deve fazer sem o maná petrolífero, o qual permitiu um forte crescimento económico na década de 2000; de fato, a maior parte das reservas em hidrocarbonetos são localizadas no Sul. Uma situação que aumenta um isolamento internacional, consagrado pelo embargo comercial imposto pelos Estados-Unidos de América desde 1997, e pelos mandatos de captura internacionais emitidos em 2009 e 2010 pelo Tribunal Penal Internacional contra al-Bashir, por crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio no Darfur. Em 2015, a dívida soberana sudanesa ultrapassou os 40 bilhões de dólares. O Sudão torna-se cada vez mais dependente da ajuda dos países do Golfo, primeiramente a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, embora esta perfusão não permite responder a todas as dificuldades. O ano 2018 cumula uma inflação de mais de 70%, uma grave crise da liquidez, a escassez repetida de gasolina e diesel, e um aumento muito importante dos preços dos produtos básicos.
Além disso, os dois Sudões multiplicam os confrontos militares para delimitar a fronteira comum, com duas questões importantíssimas em perspetiva: a repartição dos recursos petrolíferos, a autodeterminação das áreas contestadas. Se vários territórios são revincicados entre Juba e Cartum, dois em particular cristalizam a atenção. O primeiro, na parte oriental da fronteira comum, o Estado do Nilo Azul (1,2 milhões de habitantes), com um estatuto ainda indefinido, e o segundo, a região de Abyei, uma terra muito fértil e rica em petróleo, localizada na província sudanesa do Cordofão do Sul. Quanto a Cafia Cingi do lado sudanês, rico em minerais e em cobre, e Renk, do lado sul-sudanês, forte do seu petróleo e de terras aráveis, são assuntos que alimentam menos contestação.
O litígio sobre a partilha das riquezas em hidrocarbonetos é ligado ao fato que a amaioria das reservas encontram-se no Sul, enquanto as infra-estruturas de transporte e de transformação (pipelines, refinarias...) atravessam o Sudão, antes da exportação desde Port-Sudan. O custo da passagem do petróleo no Sudão foi objeto de negociações sensíveis entre os dois países. Em Janeiro de 2012, o Sul-Sudão até escolheu interromper durante vários meses a sua produção de petróleo, para asfixiar a economia do Sudão e obrigar Cartum a ceder nas negociações sobre as taxas de trânsito. Uma decisão que afetou profundamente os dois Estados, além de provocar uma multiplicação dos combates a cerca dos campos petrolíferos de Heglig, na área de Abyei e dos montes Nuba. Em 4 de Agosto de 2012, um compromisso pautal foi encontrado, e a reprodução recomeçou, antes da criação, decidida em 27 de Setembro do mesmo ano, de uma zona-tampão teoricamente desmilitarizada. A situação nunca estabilizou-se totalmente. Novas interrupções do tráfico petrolífero foram de novo decididas depois. Além disso, ainda em Junho de 2014, aconteceram no Cordofão sudanês (recurtado em 2013, passando de duas, Norte e Sul, para três regiões, com a criação do Cordofão Ocidental no qual está situado Abyei), entre membros da tribo dos Misseryas, para o controlo de terras ricas em petróleo.
Port-Sudan, na costa do mar Vermelho. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013) No mapa aqui em baixo, apresentando a divisão administrativa do país no momento da independência do Sul-Sudão em 2011, o amarelo escuro corresponde aos territórios onde permanece um conflito frontaleiro: no Norte, o « Triángulo de Hala'ib » egípcio, revindicado por Cartum, e a área de Bir Tawil; e sobretudo, no Sul, duas enclaves revindicadas pelo Sul-Sudão, uma no Sul da região (wilaya) do Darfur, a outra (Abyei) no Suloeste do Kordofan.
Como a Revolução foi possível? A « volta » da Primavera árabe
A crise que conduziu à queda de Omar al-Bashir vem de longe. Ela é profunda, mas sem voltar nas escolhas políticas e económicas dos diferentes regimes que sucederam-se desde a independência, podemos pelo menos constatar fermentos, e até primícias, no início da década de 2010, no contexto das Primaveras árabes, das quais o chefe do Estado não parece ter tirado nenhuma lição.
Para conduzir esta retrospetiva, é preciso voltar em Junho de 2012, quando o governo sudanês, atolado em dificuldades económicas, anuncia um plano de austeridade orçamental, que inclui o fim das subvenções sobre a gasolina; consequências: a subida por 50% dos preços e protestos estudantis, na Universidade de Cartum e além, na capital e em outras cidades do país. O movimento nasce de forma espontânea, conduzido por grupos estudantes criados em 2009-2010 (Sudan Change Now, Girifna Movement) e pela União estudiantil, que contestam tanto a inflação considerável como também a influência pesada do regime sobre os campus universitários. A contestação recebe o apoio, num segundo tempo, da oposição política, em particular o Partido Comunista Sudanês, e depois do Congresso Nacional Popular dirigo por Hassan al-Turabi e do partido Uma do ex-Primeiro ministro Sadeq al-Mahdi. Todos, com a sociedade civil, reclamam o pluralismo político, com o apoio oficial, a partir du 12 de Julho, da Frente Revolucionário do Sudão, uma coligação criada em Novembro de 2011 entre os principais grupos rebeldes das regiões periféricas (Darfur, Cordofão do Sul, Nilo Azul, etc.). Se ela é reprimida em Julho, ao custo de uns vinte mortos, centenas de feridos e 2 000 detenções, esta primeira mobilização popular, a mais importante deste tipo desde 1985, contudo, ela cria as bases do clima de contestação que carateriza toda a década. Quanto à repressão, ela é tornada possível pela atividade do poderoso Serviço Nacional de Segurança e de Inteligência (SNSR). Em Novembro de 2012, pretextando uma « conspiração » da oposição política, supostamente apoiada pela Frente Revolucionária do Sudão, al-Bashir faz entrar o exército na capital e ordena detenções, incluindo nas próprias forças nacionais de segurança.
Em 1 de Abril de 2013, a chamada de Omar al-Bashir convidando a oposição e as forças rebeldes do Cordofão do Sul e do Nilo Azul a iniciar um diálogo para substituir a Constituição de 2005, não convence ninguém, pois o Movimento Popular de Libertação do Sudão, conduzido por Malik Agar, et a Aliança da Oposição Sudanesa, uma coligação de uns vinte partidos representa por Faruk Abu Issa, são acostumados a esse tipo de manobra do poder. Aliás, em 16 de Novembro de 2013, as promessas « estruturais, aos níveis local e nacional » formuladas por al-Bashir diante de 400 memùbros do seu partido, não faz mais ilusão. E de fato, logo em Abril de 2014, a presidência da República proibe por decreto aos partidos políticos qualquer reunião sem autorização prévia das autoridades. O mês a seguir, as mídias são impedidos de tratar de forma « negativa e destrutiva » os negócios militares, judiciárias ou ligadas à segurança nacional, o que provoca uma suspensão de orgões de imprensa como o jornal Al-Saiha. Igualmente, também lhes é proibido comentar a detenção do antigo Primeiro ministro Sadek al-Mahdi – o qual tinha denunciado as exacções de uma milícia ligada ao poder na região do Darfur. Em Dezembro de 2014, Faruk Abu Issa, outro líder da oposição (e membro do Partido Comunista), é também detido, por ter chamado a opor-se à reeleição do chefe do Estado.
A Revolução de 2018-2019, a qual conduziu à queda de Omar al-Bashir, foi precedida por um clima de protestação difuso cujas origens podem ser situadas a aquele primeiro movimento de massa de 2012, e até um pouco antes. E nesta subida gradual da contestação, neste lento enfraquecimento das bases do regime, o ano 2013 constitui um passo capital, com o seu cocktail de mobilização, de repressão, de mártires. Em Setembro de 2013, em Uádi Madani, cidade universitária e industrializada do centro do país, e depois em Cartum e na sua vizinha do outro lado do Nilo, Omdurman, e até em Port-Sudan, motins denunciam a subida dos preços da gasolina, a qual provoca opor eco uma inflação de muitos produtos de primeira necessidade. Nesta ocasião, a Aliança dos Jovens da Revolução Sudanesa, um dos atores deste movimento, constata que até as categorias as mais pobres da população, afetadas pela crise, juntam-se à protestação. Apoiados por supletivos, « milícias de defesa popular », as forças de ordem reprimam finalmente a contestação, ao preço de 800 detenções e de mais de 210 mortos. Porém, a acumulação de lutas setoriais e étnicas deixa germinar um grunhido profundo. Em 2016 ainda, chamadas à desobediência civil conduzirem a movimentos importantes de greve. De fato, a situação degradou-se desde a independência do Sul-Sudão, revelando a incapacidade do regime a antecipar esta perda e a diversificar a economia nacional, após mais de vinte anos de reinado.
Um conjunto de fatores fez germinar as raivas e as frustrações, e conduzirem aos eventos de 2019, como o temos observado anterioramente em outros países arabófonos. Apesar das especificidades que caraterizam cada país (Tunísia, Egito, Líbia, Síria, Iémen, etc.), muitos ingredientes são partilhados: ligados por uma parte à sua evolução demográfica e sociológica, e por outra parte à conjuntura económica e social. A diferença sendo que no Sudão, como num outro país da África do Norte, a Argélia (O « Hirak » argelino (1/2): quando o povo argelino impõe prolongamentos à Primavera Árabe), esse cocktail surge um pouco mais tarde, em relação aos outros países árabes. Assim, em vez de uma simples « Primavera árabe » que teria verrado todos os regimes da sub-região, constata-se que a onda de revoltas de 2011 era apenas a primeira fase de um processo revolucionário de longo prazo. Num artigo do jornal francês Le Monde diplomatique publicado em Junho de 2019, Gilbert Achcar, professor na Escola dos estudos orientais e africanos da Universidade de Londres, explicou: « Nesta perspetiva, a apelação "Primavera árabe" podia ser guardada com condição de a entender não como uma fase de transição democrática de curta duração e relativamente pacífica, como muitos o esperavam em 2011, mas como o primeiro momento de um encadeamento de "temporadas" destinado a durar vários anos, e até várias décadas. »
Os determinantes socio-demográficos primeiramente, explicam amplamente a Revolução sudanesa. Embora não deixa de ser elevada, a taxa de fecondidade está em declínio contínuo, caida a 4,5 crianças por mulher na década de 2010, contra 6,9 na década de 1970. A mortalidade infantil, segundo as fontes, está à cerca de 50 falecimentos por 1 000 nascidos, contra provavelmente mais de 200 por 1 000 na década de 70. A taxa de alfabetização ultrapassou os 75% da população (uma estatística, porém, que pode ser questionada), contra menos de 60% na década de 1990. O país mantem um certo atraso sobre os seus vizinhos septentrionais, em particular com uma taxa de diplomados em cursos superiores marginal, e a permanência de costumes e de normas muito retrógradas, como a excisão, ainda praticada em massa (89%), a criminalização da apostasia, ou ainda, até 2015, o laborioso reconhecimento do estatuto de vítima para as mulheres violadas (com necessidade de quatro testemunhas diretos). Contudo, o Sudão parece ter, de certo modo, iniciado a sua transição demográfica. Acrescenta-se uma cobertura de chombo implementada em nome de uma ordem religiosa rigorista, cujas bases são abaladas ao longo do tempo pelas contradições entre as pregações moralistas, as restrições muito duras impostas à sociedade, e o alto grau de corrupção e de ineficiência do poder. Além das queixas sociais, as novas gerações revindicam um melhor acesso ao progresso tecnológico, à liberdade e à democracia.
A situação económica e social assume o papel de centelha. Com a renda petrolífera confiscada, destabilizado pelas suas despesas militares disproporcionadas, o Sudão sofre da tutela austeritária do Fundo Monetário Internacional (FMI), o qual recomanda em particular o abandono das subvenções públicas, e reduz ainda um pouco mais a margem de manobra financeira do regime. É ainda mais verdade no setor da agro-alimentação, liberalizado no âmbito dos « programas de ajustamento estrutural » imposto sob a pressão das instituições financeiras internacionais há vários anos. Os preços dos produtos agrícolas, indexados nos mercados internacionais, são voláteis e submetidos a fenômenos de especulação, enquanto o Estado, o qual privilegiou até 2011 uma economia de renda baseada nos hidrocarbonetos, viu a sua capacidade a apoiar a agricultura nacional consideravelmente reduzida.
Porém a dependência em relação às importações, e em particular as importações de cereais, torna o regime particularmente vulnerável. Por lembrança, o país, que consume mais ou menos 2,5 milhões de toneladas de trigo por ano, produz apenas 445 000. A situação torna-se portanto preocupante à medida que os meios do Estado reduzem-se. Apesar de um subvencionamento por 75% pelo governo, o custo de saco de trigo é multiplicado por dois, logo em Janeiro de 2018. Sobretudo, em Dezembro de 2018, o poder decide triplicar o preço do pão. Embora o conjunto das dificuldades cotidianas explica a explosão de raiva, é esta última decisão que serve de pretexto aos primeiros protestos em 19 de Dezembro de 2018, na cidade operária de Atbara, situada a 350 km ao Este de Cartum. A oposição política chama imediatamente a reuniões e protestos em todo o país, e a Associação dos Profissionais Sudaneses (APS) consegue federar e organizar o descontentamento, incluindo em Cartum (onde foram manifestantes de Atbara, a bordo de um « comboio da liberdade »)/ Contudo, a contestação demora a imprimir-se na população. Ela sube lentamente, e torna-se um verdadeiro movimento de massa a partir de Fevereiro de 2019, obrigando Omar al-Bashir, em 22 de Fevereiro, a decretar o estado de emergência e a demitir o executivo – um novo governo é constituido em 13 de Março, dirigido por Mohamed Taher Ela. Al-Bachir não hesita a mobilizar as Forças de apoio rápido, compostas de antigos Janjawids, aqueles mercenários que cometeram massacres no Darfur desde 2003; eles patrulham nas ruas, à proximidade dos sítios de poder.
A conestação toma uma outra dimensão a partir do 6 de Abril, com um aumento da mobilização e a instalação de um sit-in diante do complexo onde fica a sede do exército, o ministério da Defesa e a residência do presidente al-Bashir. Em 6 e em 7 de Abril de 2019, dezenas de milhares de Sudaneses manifestam para reclamar a demissão do chefe do Estado. O lema « Liberdade, paz, justiça » impõe-se nas reuniões, e os contestatários até pedem ao exército por « escolher entre o seu povo e o seu ditador ». Embora tem como origem as queixas sobre o preço do pão, desde o início da revolta, os cantos são profundamente políticos. Os « comités de resistência », fortes da sua implementação em muitas localidades do país, em particular na juventude, constituem uma malha de terreno que permite uma coordenação eficaz da contestação. Quanto à Associação dos Profissionais Sudaneses, ela nasceu em Outubro de 2016 a partir du regrupamento do Comité central dos médicos, da Rede de jornalistas e da Aliança democrática dos advogados, para defender numa primeira altura os seus direitos profissionais, num país onde a representação sindical independente permanece proibida. Juntam-se depois outros setores. A APS reune, quando acontece a revolta, uma quinzena de ofícios, de corpos profissionais; publicou em 1 de Janeiro de 2019 uma Declaração para a Liberdade e a Mudança, a qual federou a cerca dela novas entidades, entre as quais muitos partidos de oposição e grupos armados. A presença em massa de mulheres nas ruas é uma outra particularidade do movimento; elas representaram em alguns momentos, segundo certas fontes, uns dois terços dos manifestantes, e os seus slogans questionam claramente a aplicação da lei islâmica.
As coisas precipitam-se finalmente a partir do 8 de Abril, quando militares instalaram-se a cerca do quartel-general do exército, diante do sit-in dos contestatários; a partir do 10 de Abril, esses mesmos militares impedem os serviços de segurança de expulsar os manifestantes. Finalmente, em 11 de Abril, no final da manhã, o ministro da Defesa (e vice-presidente) Auad Mohamed Ahmed Ibn Auf anuncia a detenção do presidente da República, e a formação de um « Conselho militar » encarregado do interino durante dois anos, antes da organização de eleições gerais. Com 75 anos de idade, Omar al-Bashir é portanto forçado a deixar o poder, após trinta anos de reinado. Entre o 19 de Dezembro e o 11 de Abril, aquela que podemos desde então chamar a Revolução sudanesa contou mais ou menos 80 mártires, vítimos da repressão.
Tirada em 8 de Abril de 2019 por uma jornalista local, Lana Haroun, esta fotografia mostra uma jovem estudante de Cartum, Alaa Salah, então com 22 anos de idade. Com dedo em risto, roupa branca e luz refletida nos brincos, ela se tornou em poucas horas um ícone do protesto. A foto virou famosa graças às redes sociais virtuais. Mostra a jovem mulher, orgulhosa, de pé acima de um carro no meio da multidão (onde vêem-se os smartphones), a cantar a revolta em poesia popular.
A história não acaba aqui. Uma relação de força impõe-se logo, os manifestantes permanecendo mobilizados para exigir a partida dos generais e a constituição de um « conselho civil ». Certamente, a junta militar, ou « Conselho militar de transição », dão rapidamente garantias da sua boa vontade, por exemplo a destituição do ministro da Defesa, a demissão de Saleh Gosh, o chefe do poderoso serviço de inteligência, ou ainda a apreensão do equivalente de 113 milhões de dólares, em divisa norte-americana, euros e libras sudanesas, na residência de Omar al-Bashir. Entretanto, o novo procurador geral implementa disposições para controlar os bens dos altos responsáveis e das suas famílias. Ainda em 16 de Junho de 2019, o ex-ditador comparece perante o tribunal encarregado dos casos de corrupção em Cartum. Porém, como na Argélia, onde a queda de Abdelaziz Bouteflika em 2 de Abril de 2019 não bastou para enganar os manifestantes, no Sudão, o movimento popular, instruído pela experiência egípcia de 2011-2013 que conduziu à chegada no poder do marechal Abdel Fatah al-Sissi, recusa-se a ver os militares confiscar a revolução. O risco é aumentado pelo fato que as principais figuras da junta, o que a preside, o tenente-general Abdel Fattah al-Burhan Abdelrahmane, e o número 2, Mohamed Hamdan Dogol (dito « Hemetti »), dirigente da Força de apoio rápido (os famosos ex-Janjawids), foram caciques do regime al-Bashir, e permanecem garantes da defesa dos interesses da instituição militar. Ainda mais, eles têm o apoio dos países do Golfo e do Egito, que temem transformações políticas muito importantes no Sudão. Porém outros aliados de longo prazo de Omar al-Bashir, a Rússia, a China e o Irão em particular, adoptaram uma postura mais atentista em relação ao processo de transição.
Uma série de eventos, nos quais voltaremos mais em detalhes na segunda parte deste artigo, conclui-se a um acordo entre civis e militares em 5 de Julho de 2019, e depois à implementação, em Agosto e Setembro, das instituições encarredadas desde então da transição: um « Conselho soberano » para assumir a presidência da República, e um novo governo dirigido por uma figura não-partidária – a designação de um novo corpo legislativo (e constituinte) permanece ainda hoje pendente. Das decisões das autoridades de transição depende o futuro, por isso os « comités de resistência » que coordenaram a constestação estruturaram-se, para assegurar a sua perenidade e portanto a sua capacidade de mobilização e de pressão sobre o poder; após um encontro de 1 500 « delegados » vindos desses comités, em Cartum, em Setembro de 2019, eles eligiram uma assembleia central (markazevva) de 150 membros. A isso acrescenta-se uma Associação dos profissionais sudaneses que deu desde o início uma forma de « direção » à revolução, e permanece incontornável no diálogo com os militares. Enfim, os desafios permanecem colossais neste grande país da África de Leste, e será necessário aos seus 41 milhões de habitantes muita paciência e sabedoria para passar os obstáculos, sobre os quais teremos a ocasião de voltar. Por enquanto, eles já mostraram ao mundo, tomando a direção oposta às posturas de divisão adoptadas desde trinta anos por Omar al-Bashir – o uso do slogan « Somos todos o Darfur » nos protestos de 2019 foi a mais bonita ilustração disso –, que revolução democrática podia rimar com unidade nacional.
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Para aceder à segunda parte deste artigo: Revolução sudanesa (2/2): os desafios e os osbtáculos da transição democrática