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O acendedor de lampiões

Revolução sudanesa (2/2): os desafios e os obstáculos da transição democrática

20 Octobre 2021 , Rédigé par David Brites Publié dans #Democracia, #África

Em 3 de Outubro passado, o Primeiro ministro sudanês Abdallah Hamdok, em carga desde um pouco mais de um ano, assinou com os principais grupos rebeldes do Sudão (originários do Darfur, do Cordofão do Sul e do Nilo Azul) um acordo de paz qualificado de histórica por todos os observadores, apesar dos inumeráveis desafios que o documento protocolário assinado induz para os meses e os anos futuros. Essa é a última das pedras postas no edifício da transição política, mas outros ainda devem ser levados pelas autoridades de transição para responder às esperanças alimentadas pela Revolução de 2019. O quadro desta transição foi consagrado pela assinatura, em 17 de Agosto de 2019, por representantes dos manifestantes civis, da oposição política e dos militares, de uma Declaração constitucional que define no detalho o calendário político e eleitoral do país. Como é que a pressão popular, apesar de uma repressão trágica, conseguiu então esta enésima vitória? E sobretudo, desde um ano, em que estado está o processo que deve conduzir à implementação de um Estado democrático? Quais são os obstáculos e os desafios que apresentam-se às autoridades encarregadas da transição?

O movimento revolucionário sudanês nasceu em 19 de Dezembro de 2018, após uma triplicação do preço do pão. Ele foi levado por diversas estruturas da sociedade civil, em particular a Associação dos Profissionais Sudaneses (APS), e por « comités de resistência » estabelecidos em várias localidades do país. Ele encontra as suas raízes num amplo cunjunto de fatores, tanto determinantes sociodemográficos de longo prazo, como também um contexto socioeconómico marcado por uma sub-capacidade produtiva (em particular no setor da agricultura), um desemprego de massa na juventude, e a pauperização das massas. Finalmente, explica-se pelo desejo de liberdade e de democracia reprimido durante uns trinta anos por um regime opressivo que deu o poder, de fato, aos militares e aos islamistas. O vimos o mês passado (Revolução sudanesa (1/2): como o povo sudanês pôs fim a trinta anos de reinado de Omar al-Bashir), apesar das particularidades que caraterizam cada país afetado pela Primavera árabe (e elas são muitas, num país como o Sudão), muitos ingredientes são partilhados: fragilidade do tecido económico, « transição demográfica » em fase avançada, surgimento de uma tímida classe média em meio urbano, subida dos descontentamentos diante da reapropriação das riquezas por uma pequena casta dirigente, etc. A esse cocktail já explosivo acrescentaram-se especificamente no Sudão, o desaparecimento, após a independência do Sul-Sudão em 2011, da renda petrolífera, e a multiplicação dos conflitos ligados às forças centrífugas, o mais famoso (e o mais sangrento) sendo o no Darfur desde 2003.

Apesar da alegria observada quando foi anunciada a destituição de Omar al-Bashir, o movimento de contestação prolongou-se além do 11 de Abril, recusando ver a revolução « confiscada » pela junta militar que implementou-se imediatamente sob a forma de um « Conselho militar de transição » – presidido pelo tenente-general Abdel Fattah al-Burhan Abdelrahmane.

A capital sudanesa, Cartum. (Crédito foto © Mariam Diakité, 2013)

A capital sudanesa, Cartum. (Crédito foto © Mariam Diakité, 2013)

Primavera e Verão de 2019: quando o povo obriga os militares a ouvrir as suas revindicações e impõe a sua agenda pós-al-Bashir

A protestação continuou, portanto, tomando por alvo os militares. Aliás, o perfil de uns deles pode explicar o seu rejeito pelos manifestantes. Por lembrança, o número dois da junta, Mohamed Hamdan Dogolo, conhecido pela alcunha Hemetti, dirige a Força de apoio rápido, os famosos ex-Janjawids (milicianos famosos por as suas exacções no Darfur), que ele mobiliza ainda na capital; ele beneficie de padrinhos regionais, em particular do Golfo, que desejam ver o movimento revolucionário contido. Um outro general, Taha Osman al-Hussein, outro próximo de al-Bashir e claramente apoiado pela Arábia Saudita (até foi encarregado, em 2015, de tropas sudanesas no Iémen na guerra conduzida por Riade), permanece uma das figuras centrais da junta. O Conselho militar é portanto composto por caciques do regime al-Bashir. À frente, a Associação dos Profissionais Sudaneses propõe uma « Constituição provisória » para assegurar a transição. Além de uma declaração dos direitos do cidadão, uma reforma da justiça e uma descentalização do poder, o texto prevê a instauração de um Conselho presidencial « cujas funções seriam limitadas a um papel de representação e de soberania », de um governo civil e de uma Assembleia constituinte de 120 membros (devendo incluir pelo menos 40% de mulheres) escolhidos para representar todas as regiões, todas as forças políticas e a sociedade civil, e encarregados de preparar eleições gerais daqui três anos.

Em de 21 abril, os representantes da contestação anunciam suspender as negociações com o Conselho militar, e em 25 de Abril, e depois de novo em 2 de Maio, protestos importantes reunem em Cartum milhares de pessoas vindas de todo o país (incluindo de Atbara, a cidade onde nasceu a Revolução, e do Darfur) e representando interesses diversos. Situado à beira do Nilo Azul, o sit-in que mantem-se diante da sede do exército serve de ponto de reunião a cada protesto. Numa mistura de avenidas ocupadas por tendas, de ruas onde se bebe o chá, e de prédios acadêmicos requisitados para a luta, ele é o que se pode chamar o centro de gravidade da « capital triangular » (formada pelas cidades de Cartum, Omdurman e Bahri). Clínicas móveis são arranjadas, brigadas de limpeza percorrem as ruas, um prédio universitário difusa cantos, discursos e informações, a distribuição de comida é organizada, tendas de difusão cinematográfica, de debate e de criação artística são instaladas, tal como sanitários para mulheres. As renociações acabam por ser retomadas, as para instaurar uma autoridade conjunta entre civis e militares, e as para definir as modalidades de implementação de uma assembleia legislativa, mas elas falham de novo em 20 de Maio. Entre outras coisas, os representantes da rua reclamam então que dois terços dos 300 membros do futuro corpo legislativo sejam pessoas vindas da Aliança para a Liberdade e a Mudança (AMC), uma plataforma que representa toda a oposição política, os grupos rebeldes e a sociedade civil.

Os eventos aceleram-se no final da Primavera de 2019. Ações de repressão já eram frequentemente observadas ao longo das semanas, provavelmente orquestradas pelas Forças de apoio rápido com alvo quebrar a determinação dos contestatários. Finalmente, em 3 de Junho, as forças sudanesas conduzem uma intervenção musculada e dispersam o sit-in que estava instalado à frente do quartel geral do exército desde o 6 de Abril; conta-se, segundo um coletivo de médicos próximo dos manifestantes, 128 mortos e mais de 1 350 feridos – uma quarentena de corpos são encontrados no Nilo. O dia a seguir, o Conselho militar anuncia anular o conteudo negociado até então com o movimento revolucionário, e querer organizar eleições num prazo de nove meses. O momento é charneira, pois o Sudão pode então cair na reação contra-revolucionária. A Associação dos Profissionais Sudaneses chama à « desobediência civil total para derrubar o Conselho militar pérfido e assassino »; motins e barragens selvagens surgem em vários eixos da capital. Finalmente, o diálogo retoma em 3 de Julho, desta vez sob mediação da União Africana (UA) e da Etiópia, e um acordo é encontrado, logo em 5 de Julho, entre a ALM e o Conselho militar, em particular para uma direção « alternada » do « Conselho soberano », o qual, organizado sobre a base de uma presidência rotativa, será encarregado da transição, num período de três anos. Além disso, é decidido que uma investigação transparente e independente seria conduzida Para esclarecer as responsabilidades nas ações de repressão orquestradas nas semanas anteriores – entretanto, a culpabilidade das Forças de apoio rápido foi reconhecido pelo poder, em relação ao ataque do 3 de Junho.

Grupos rebeldes do Darfur denunciam então os compromissos combinados com os militares no acordo do 5 de Julho, tal como as suas zonas de sombra, em particular a paz no Darfur e a questão dos refugiados; quanto às mulheres, a sua causa foi relegada em segundo plano. Contudo, as negociações continuam com a junta durante o mês de Julho para detalhar a transição, enquanto a oposição define em interno as suas posições para apresentar um rosto unido. O estatuto dos membros do exército questiona particularmente, pois os generais do Conselho militar insistem para que os seus representantes no futuro Conselho soberano beneficiem de uma « imunidade total » nos casos de repressão. Após a assinatura de um novo acordo político em 4 de Agosto, civis e militares assinam portanto, em 17 de Agosto, uma Declaração constitucional, um documento grosso que organiza os 39 meses da transição. Foi necessário oito meses de mobilização e 250 mortos para chegar a esse ponto. Em 20 de Agosto, o famoso Conselho soberano, composto por cinco militares, cinco civis vindos da Aliança para a Liberdade e a Mudança, e um civil designado de comum acordo, é implementado, e constitui o orgão executivo – oficialmente com um papel « consultativo ». Neste Conselho soberano, encontra-se os generais Abdel Fattah al-Burhan e Hemetti, números 1 e 2 da junta militar cessante, e do lado dos civis, três homens e duas mulheres, Aisha Musa, e uma cristã copta, a jurista Raja Nicolas Abdel Massih, sinal de uma vontade nova de respeito da diversidade religiosa. Al-Burhan é o primeiro a ocupar a presidência rotativa, para uma duração de 21 meses. Entretanto, símbolo fortee, o julgamento de Omar al-Bashir, remetido em 16 de Junho à Procuradoria-Geral encarregada dos casos de corrupção em Cartum, abriu-se em 19 de Agosto.

Al-Jebel Aulia, wilaya de Cartum. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Al-Jebel Aulia, wilaya de Cartum. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Os desafios da transição: « liberdade, paz, justiça »

Em 21 de Agosto de 2019, o Conselho soberano recentemente constituido designa, para dirigir o governo, Abdallah Hamdok, um economista que trabalhou nas Nações Unidas. É então o primeiro civil a ocupar esta carga em trinta anos. O Primeiro ministro anuncia logo ter que achar dez bilhões de dólares, entre os quais dois num prazo de três meses, para acabar com a escassez. Para isso, ele pode aproveitar a supressão das sancções comerciais impostas pelos Estados-Unidos de América, já decidida em 2017 pela administração Trump. Tornado público em 5 de Setembro, o governo é composto por dezesseis civis, entre os quais quatro mulheres (uma delas sendo Asma Mohamed Abdallah, nomeada nos négócios estrangeiros), e dois militares (para os ministérios da Defesa e do Interior). Reapropriando-se o slogan revolucionário « Liberdade, paz, justiça », o executivo define imediatamente três prioridades. A primeira: estabelecer claramente a sua autoridade diante ao Conselho soberano onde os militares permanecem importantes, e consequentemente assegurar a democratização das instituições. A segunda: relançar a economia, por grande parte controlada por próximas ou pilares do antigo regime, e portanto atacar-se a interesses ligados aos diversos serviços de segurança, os quais, aliás, apoderam-se de uma grande parte do orçamento nacional. E a terceira: fazer paz com os grupos armados. Tudo isso devendo inicialmente ser concluido por eleições gerais organizadas em 2022.

As negociações que aconteceram em Juba, no Sul-Sudão, entre Cartum e os movimentos do Cordofão do Sul, do Nilo Azul e do Darfur, uma das prioridades do Primeiro ministro, foram fragilizadas pelo falecimento do ministro da Defesa, o general Jamal al-Din Omar em 25 de Março de 2020, vítima do coronavírus. Elas tornaram-se sobretudo laboriosas por certas exigências dos grupos rebeldes, a principal sendo que o poder seja mais bem partilhado à escala nacional, com lugares reservados no Conselho soberano, no governo, e no corpo legislativo. Um acordo foi anunciado em 9 de Maio de 2020 entre o governo e as forças rebeldes do Darfur, do Cordofão e do Nilo Azul, para lhes dar um lugar nos círculos do poder em Cartum, o que devia permitir desbloquear as discussões em outros assuntos. Em 31 de Agosto passado, uma primeira versão de um acordo foi assinado em Juba. Ponto culminante da ceremonia daquele dia, o aperto de mão entre o general Mohamed Hamdan Dogolo, vice-presidente do Conselho soberano, e os chefes de cinco movimentos rebeldes que compõem a Frente Revolucionário Sudanês. Os protocolos assinados abordam a maioria dos problemas cruciais dos conflitos em questão. Esse acordo, tornado possível pelo apoio de países africanos (Sudão do Sul, Chade, Etiópia) e ocidentais (Estados-Unidos, Reino-Unido, Noruega, União Europeia), não deixa de ser histórico; contudo, o fracasso de acordos anteriores (em 2006 e em 2010) convida os observadores à prudência. Ainda mais porque, inicialmente, dois grupos armados não o tinham assinados, ou seja, o Movimento Popular de Libertação do Sudão-Norte (SPLA-N) de Abdelaziz al-Hilu, partidário de uma solução mais radical, e o Movimento de Libertação do Sudão (MLS) de Abdelwahid Nur, o qual defende em vão o estabelecimento de uma república laica. No início de Setembro, os dois grupos voltaram à mesa das negociações, em acordo com o Primeiro ministro sobre princípios como a promessa do respeito da diversidade étnica e religiosa, a regra democrática para todos, e sobretudo a separação da religião do Estado, que deveria ser inscrita na futura Constituição.

Finalmente, o dizíamos em introdução deste artigo, em 3 de Outubro passado, o governo sudanês e os chefes rebeldes assinavam em Juba um acordo de paz histórico, durante uma ceremonia na qual estavam os diplomatas chadianos, catarenses, egípcios, da União Africana e das Nações Unidas. O documento é composto de oito protocolos tratando da segurança, da propriedade fundiária, da justiça transicional, das reparações e compensações, do desenvolvimento do setor nómado e pastoral, da partilha das riquezas e do poder, e do retorno dos refugiados e deslocados. Os combatentes dos grupos rebeldes devem ser integrados no exército regular que conhecerá uma reorganização; é concedido ao Cordofão do Sul e ao Nilo Azul uma autonomia no âmbito do Estado federal, e investimentos públicos (um fundo de 750 milhões de dólares por ano durante uma década) são prometidos nas três regiões rebeldes, dedicados em particular ao retorno das populações deslocadas e ao desenvolvimento local. Enfim, num plano mais político, o período transitório é prolongado de 39 meses, a partir do 31 de Agosto de 2020, e centenas de cargas e assentos de parlamentares serão dados aos rebeldes, na expectativa das eleições que devem ser organizadas nos três próximos anos. Por enquanto permanece o fato que, em relação aos diferentes conflitos em questão, os responsáveis das atrocidades não são realmente preocupados.

Por causa do atrada das negociações, outras questões anexas permanecem sem resposta, e têm a ver particularmente com o Darfur. O futuro dos refugiados, notavelmente, ainda não é resolvido, enquanto representam quase um terço da população do Darfur. E permanecem sem resposta também as garantias de segurança que pedem as populações mais vulneráveis; contudo, a ONU, apoiada neste sentido pela União Africana, prevê sempre o retiramento dos Capacetes azuis da MINUAD este Outuno – isso, enquanto o próprio governo sudanês pediu ao Conselho de segurança da ONU de autorizar a mobilização de uma nova missão « de vigilência » para assegurar as condições de paz e um retorno dos refugiados em toda segurança. O exemplo de Al-Geneina, no Darfur Ocidental, onde combates tribais foram constatados em Dezembro de 2019, seis meses após o retiramento da MINUAD desse setor, devia portanto servir de alerta. Ainda em 5 e 6 de Maio passado, confrontos inter-comunitários, entre a tribo arabófona dos Raziqats e a subsaariana dos Falatas, provocaram a morte de pelo menos umas trinta pessoas no Darfur-Sud, após uma história de roubo de gado. A missão internacional que sucedeu à MINUAD no final de Maio tem finalmente uma « missão política inttegrada para a consolidação da paz »; com 2 500 policiais e um batalhão de reação rápida, ela não cobre, teoricamente, o único Darfur, mas sim, todo o país. Contudo, e conformo o desejo do Primeiro ministro, posto sob pressão pelos seus parceiros governamentais para defender a soberania do Sudão, ela já não tem oficialmente nenhuma missão militar, o que impõe ao Estado sudanês de assegurar por os seus próprios meios a segurança dos civis.

As problemáticas de segurança até vão além das únicas questões relativas aos grupos rebeldes. Em Setembro de 2019 por exemplo, o Conselho soberano decidiu fechar as fronteiras com a Centráfrica e a Líbia. Esta decisão não é particularmente excepcional na região, porém ela é reveladora dos desafios inerentes à porosidade das fronteiras daquela área, e aos desafios que se impõem globalmente a toda a sub-região: tráficos de mercadorias, de drogas, de armas, de seres humanos, e a imigração ilegal. Na mesma altura, aliás, o Sudão anuncia a detenção de uma dúzia de traficantes e de 120 migrantes clandestinos. Além disso, Cartum poderia querer impedir rebeldes do Darfur de ir treinar nos países vizinhos, ou de juntar-se a movimentos estrangeiros, como os Tubus aliados ao marechal Haftar, mestre do Leste da Líbia, ou ainda os fazendeiros de Vakaga na Centráfrica, rivais dos criadores arabófonos no sul do Darfur. A isso tudo acrescente-se, para o governo, a vontade de ver os Estados-Unidos retirar o país da sua lista das nações apoiando o terrorismo, mostrando sinais de boa vontade na luta contra a mobilidade dos grupos armados na região – por a mesma razão, o executivo prometeu em 13 de Fevereiro de 2020 a indemnização, com vários milhões de dólares, das famílias de marinheiros matados no atentado do USS Cole em 2000. Símbolo da instabilidade securitária, em 16 de Março passado, Abdallah Hamdok escapou a um atentado terroristo à bomba, em Cartum.

Democratizar o Estado sudanese e garantir as liberdades individuais e coletivas

Uma das grandes particularidades do movimento revolucionário sudanês, se devemos o comparar com outras revoluções árabes desde 2010, é o olhar que é aqui levado sobre o islã político. Na Tunísia e depois no Egito, e de uma certa forma na Síria, as oposições de tipo liberal, laicas e de esquerda, deixaram-se transbordadas pelos islamistas. Com excepção a Líbia, onde as eleições legislativas de 2012 e as de 2014 consagraram mais o fracasso dos islamistas; porém a guerra civil que afeta aquele país desde 2014 tornou esses resultados obsoletas. Na Argélia, a história da guerra civil da década de 1990, como também os compromissos passados entre os partidos islamistas e o poder de Abdelaziz Bouteflika, descreditaram por grande parte essa tendência política, embora eleições realmente pluralistas e transparentes ainda devem ser organizadas para o confirmar.

No Sudão, a relação do movimento contestatário com os islamistas é marcada por uma profunda hostilidade. Num artigo do jornal francês Le Monde diplomatique publicado em Junho de 2019, Gilbert Achcar, professor na Escola dos estudos orientais e africanos da Universidade de Londres, o explicou assim: « No Sudão, a dupla oposição popular aos dois polos reacionários [o exército e os islamistas] é ainda mais radical, porque eles governaram em comum desde [1989]. Chefe de uma ditadura militar aliada aos Irmãos muçulmanos (certamente, com altos e baixos), [Omar al-Bashir] era de uma certa forma uma combinação de Sr. Morsi e de Sr al-Sissi. » E o pesquisador franco-libanês acrescentou: « Um dos aspetos fortes da revolta sudanesa – de uma radicalidade política superior à a de todas as revoltas que conheceu a espaço arabófono desde 2011 – é a sua oposição declarada tanto ao poder dos militares como também ao dos seus compadres islamistas, e a proclamação sem rodeios da sua aspiração a um governo civil e laico, democrático e até feminista. »

O novo governo parece ter uma postura semelhante, apesar da presença de militares ligados aos países do Golfo no Conselho soberano. O executivo parece ter-se lançado numa relação conflictual com os islamistas, os quais tinham infiltrado toda a sociedade sob o reinado de Omar al-Bashir. Em 3 de Outubro de 2019, Abdallah Hamdok, preocupado de fazer limpeza nos setores públicos, destituiu das suas funções 35 diretores e presidentes de conselhos administrativos nas universidades. A maioria eram membros ou próximos da fraternidade dos Irmãos muçulmanos, politicamente associada, no Sudão, ao Congresso Nacional, o antigo partido de al-Bashir. Símbolo forte, uma mulher foi então designada para dirigir a Universidade de Cartum. O ensino superior, até então amplamente islamisado, é portanto o primeiro terreno de batalha de um refluxo anunciado dos fundamentalistas na sociedade sudanesa.

Segundo campo de batalha: as liberdades individuais e coletivas, e o peso das leis religiosas e consuetudinárias no direito comum. Em 28 de Novembro de 2019, o governo sudanês revogou uma lei sobre « a ordem moral e pública », a qual, segundo uma interpretação rigorista da lei islâmica, permitia condenar a castigos, incluindo corporais (chicotadas, lapidações, etc.), as pessoas tendo cometido atos julgados indecentes. Com alvo específico as mulheres, esta lei, votada quando al-Bashir chegou na direção do Estado, dava aos todo-poderosos serviços de polícia o poder de detenção sobre quelque pessoa para uma longa lista de infrações (dançar, usar calças, comerciar na rua, estar em presença de homens que não são da família...). Outras leis sobre a moralidade, que regem em particular a sexualidade, o modo de vestir-se ou de estar na vida privada, permanecem em vigor, sim, contudo, a revogação desta representa uma grande vitória para as Sudanesas, apresentada pelo chefe do governo como « o advento de uma nova era ». Outro progresso importante, em 22 de Abril de 2020, as autoridades de transição alteraram o artigo 141 do Código penal, criminalizando portanto oficialmente a excisão. Foi definitivamente validado pelo Conselho soberano em 11 de Julho passado, ao mesmo tempo que três outros grandes avanços: a proibição das flagelações públicas, o desaparecimento da pena da lapidação para os apóstatas que abandonam a lei islâmica, e ainda a abolição da pena de morte para as relações homossexuais  essas últimas permanecem, porém, priobidas, agora sancionadas com sete anos de prisão. Contudo, e os defensores do antigo regime ambicionam lutar nesta base de uma suposta « defesa das tradições », o Sudão não deixa de ser um país amplamente conservador, onde práticas de casamentos precoces e as mutilações genitais femininas são ainda muito comum segundo o organismo onusiana UNICEF, nove Sudanesas sobre dez seriam mutiladas.

Neste contexto, entende-se bem que a luta pelas liberdades e para a aplicação das novas leis progressivas será longa, cheia de obstáculos, e que ela encontrará à frente dela um conjunto de forças reacionárias determinadas a manter a Sharia como pilar do direito sudanês. Aliás, em Março de 2020, ativistas sudanesas disseram decepcionadas pela falta de pressa com a qual as novas autoridades pretendem melhorar os seus direitos, e reclamaram a alteração de várias leis julgadas discriminantes em relação às mulheres. Elas mencionaram em particular a fraca representação das mulheres no executivo, a ausência de uma lei criminalizando o assédio sexual e a lei sobre o estatuto pessoal de 1991, inspirada da Sharia, a qual permite entre outras coisas dar em casamento meninas de 10 anos e não prevê o consentimento da mulher nos contratos de casamento. Dado o lugar das mulheres na contestação de 2019, representadas em particular pelos Grupos feministas civis e políticos (Mansam, segundo o acrónimo árabe), mas também pela Iniciativa Não à opressão, fundada em 2009 e membro também da ALM – as duas organizações, Mansam e a Iniciativa, são na origem da famosa cota de 40% de mulheres prevista no futuro Conselho legislativo , dado isso, portanto, parece claro que a questão dos direitos das mulheres foi central no movimento, e que ela não deixará de o ser, apesar dos escolhos.

Outro símbolo muito forte de tolerância, o novo ministro sudanês dos Negócios religioses, Nasr-Eddin Mofarah, chamou, em 6 de Setembro de 2019, os judeus sudaneses condenados ao exílio (após a independência, e sobretudo após a Guerra dos Seis dias de 1967), a regressar no país; se a diáspora é provavelmente idosa (e ainda muito desconfiada em relação às autoridades sudanesas) para pensar no retorno, a messagem destinado à esta comunidade, a qual contou uns mil indivíduos na década de 1950, não deixa de ser muito ilustrativa da postura do novo poder. Além disso, em 3 de Fevereiro de 2020, o general Abdel Fattah al-Burhan, pela sua carga de presidente do Conselho soberano, encontrou o Primeiro ministro israelense Benyamin Netanyahou, na Uganda, para iniciar um diálogo para a « normalização das relações » entre os dois países uma iniciativa que o governo sudanês qualificou, porém, de « unilateral », julgando que al-Burhan tinha « ultrapassado [o seu] mandato ». Finalmente, sob pressão norte-americana, a normalização das relações diplomáticas com Israel deveria ser uma questão de dias, enquanto esse 19 de Outubro, Cartum aceitou de transferir 335 milhões de dólares às familhas das vítimas dos atentados orquestrados por Al-Qaïda em 1998 contra as embaixadas dos Estados-Unidos no Quénia e na Tanzânia (mais de 200 mortos). Se o reconhecimento do Estado hebreu não faz consenso no Sudão ( um eufesmismo), ela não acontece por acaso. De fato, esse mesmo 19 de Outubro, Donald Trump afirmou (sem dar nenhum calendário) que ia a « retirar o Sudão da lista dos Estados apoiando o terrorismo ». Outro objetivo do governo sudanês: obter dos um reescalonamento da dívida externa, equivalente a 160% do PIB.

À questão do lugar dado às tradições e à lei religiosa, acrescente-se um outro desafio importante. O governo deve constituir as bases de uma verdadeira democracia política e social, num país no qual, sob o reinado de Omar al-Bashir, era impensável a ideia de alternância no poder, e onde os corpos intermediários foram reduzidos ao silência, com a proibição de qualquer representação sindical independente – aliás, é para defender direitos profissionais que a Associação dos Profissionais Sudaneses tinha sido criada, em Outubro de 2016. O Sudão, com a sua história industrial amplamente ligada à extração de petróleo e à força do seu Partido Comunista, um dos mais poderosos do mundo árabe até a década de 1970, ainda deve lançar as vastas obras dos direitos individuais e coletivos e da segurança dos trabalhadores, em todos os sentidos da palavra. Além disso, o desafio da revolução sudanesa consiste também a pensar o tempo pós-transição. De fato, certamente o respeito do processo em curso para implementar uma nova Constituição é um passo determinante, porém uma verdadeira democratização não pode suceder com a única base de novas instituições. A democracia também é ligada às práticas políticas, ao desenvolvimento de uma cultura democrática. Para que essa última seja possível, é preciso pensar a estruturação de uma alternativa real, de uma verdadeira oferta partidária, para dar às e aos cidadãos a possibilidade de escolher os seus representantes com base programas e ideias.

Dado o estado da oposição sudanesa, o desafio não é pequeno. A maioria das grandes formações políticas  como o Partido Comunista, o Congresso Popular, antigamente dirigido por Hassan al-Turabi (falecido em 2016), ou ainda o partido Umma de Sadeq al-Mahdi (Primeiro ministro em 1966-1967 e em 1986-1989) – são ou discreditados, ou muito enfraquecidos, e os seus dirigentes envelhecidos. Em 26 de Abril passado, uma coligação de partidos políticos e de movimentos armados, « A chamada do Sudão », fundada em exílio na Etiópia em 2014, reuniu-se pela primeira vez em Cartum, em presença de figuras conhecidas, como o chefe rebelde Minni Minawi, ou ainda Sadeq al-Mahdi, e a diração da Frente Revolucionária Sudanesa. Um jeito para esses protagonistas de afirmar-se no jogo político, diante de um governo forçado a fazer compromissos com os militares – protagonistas que, há meses, tomaram publicamente as suas distâncias com a Aliança para a Liberdade e a Mudança, da qual, contudo, eles são membros. Se os protestos de 2018-2019, a APS em primeiro, não é capaz de pemritir o surgimento de um pessoal político credível e uma oferta programática consistente, o risco é grande de ver a revolução questionada, ou nas urnas por forças conservadores (islamistas ou militares), ou por um retorno musculado do exército no poder. Os exemplos norte-africanos, Egito em primeiro lugar, devem servir de lição.

Enfim, os defensores da Revolução devem tomar conta das suas próprias fraquezas, em particular o caráter finalmente muito urbano (incluindo em província) do movimento, o fato de este último regrupar sobretudo awlad al-beled, os arabófonos das províncias centrais (embora ele sempre manifestou a sua vontade de incluir todas as lutas), e as suas possíveis divisões, além da única APS. A elaboração de uma oferta política credível não pode deixar de propor uma reflexão profunda a cerca das questões ligadas à gestão da terra, da água e das riquezas naturais. Os desafios climáticos e ambientais alimentam tensões a cerca do acesso aos recursos, o que favorece os confrontos e as violências. Num país onde as populações rurais são constantemente submetidas aos riscos climáticos e securitários, não tratar essas questões traduziria-se portanto, provavelmente, pelo fracasso da revolução.

Nas ruas de Cartum. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Nas ruas de Cartum. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Em amarelo, a barragem do Renascimento etíope.

Entre os desafios económicos e as questões de soberania: problemáticas que entrelaçam-se

Neste grande país de 41 milhões de habitantes, a recuperação económica é uma prioridade absoluta. A corrupção é muito presente no Sudão, o qual é o 173° na classificação de Transparency International nesse assunto. O aparelho produtivo é subitilizado, incluindo na criação e na agricultura, submetidos aos imprevistos climáticos do Sahara e do Sahel. O endividamento do Estado e a sua dependência em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI) não são revolvidos, e induzem profundas reformas da administração, porém que não devem fazer esquecer as necessidades importantes em termos de investimentos públicos para ajudar a população. De fato, o governo sudanês não questionou realmente os paradigmas neo-liberais que prevaleciam sob al-Bashir (e que favorecerem o contexto da sua queda). Por exemplo, o ministro da Economia, Ibrahim Elbadawi, antigo economista no Banco Mundial, anunciou em Dezembro de 2019 o fim gradual das subvenções aos preços dos combustíveis, e só renunciou finalmente à medida após o protesto da Aliança para a Liberdade e a Mudança. Contudo, os problemas perduram. A forte inflação (70%) acrescente-se à depreciação contínua das taxas de câmbio e à escassez generalizada. Símbolo terrível (em eco à origem da revolução), em 8 de Abril de 2020, a governadoria de Cartum anunciou uma subida do preço do pão, para responder às queixas dos padeiros, os quais são confrontados ao aumento dos custos de fabricação.

No futuro próximo, o chefe do governo pretende organizar uma conferência dos « Amigos do Sudão », para estimular as doaçéoes e os investimentos estrangeiros. Por enquanto, a crise económica, que provocou por grande parte a Revolução de 2018-2019, acentuou-se com os meses. Ela até foi agravada em 2020, primeiramente com a crise do COVID-19 – embora o próprio Sudão contou muito poucos contaminados , e depois por causa das chuvas torrenciais e das inundações que cairam no país, em Agosto e em Setembro de 2020. Contou-se então pelo menos uma centena de mortos de várias dezenas de deslocados, e os grandes centros urbanos do país foram particularmente afetados, deixando por trás paisagens de desolação, em particular depois do transbordamento do Nilo, o qual atingiu mais de 17,5 metros  uma primeira vez em mais de um século.

Mais ou menos um ativo sobre cinco, entre os quais um terço dos jovens, sobretudo jovens mulheres (mais de 60% das mulheres de 15-24 anos), são desempregados. Quase 50% da população está abaixo do limiar da pobreza. Mesmo funcionando plenamente, a refinaria de Cartum só consegue responder a 70% das necessidades do país em gasolina, e a 45% em diesel, e a 65% em gás doméstico. E a mecanização da agricultura, com alvo o aumento da produção de trigo, falha em parte por as deficiências em combustível. Nas grandes cidades, às vezes é preciso horas a esperar para reabastecer o veículo nas estações-serviço engarrafadas, para comprar pão, ou para fornecer-se em botijas de gás. As cortes de energia são frequentes. E as perspetivas permanecem sombrias, pois, depois de uma recessão de 2,3% em 2018, e de 2,5% em 2019, a economia sudanesa vai provavelmente contrair-se por 1,2% em 2020. Um certo descontentamento popular exprimiu-se nas questões económicas e sociais, na ocasião da manifestação do 20 de Fevereiro passado, organizada para protestar contra a passagem à reforma de oficiais do exército que tinham apoiado o movimento de contestação (o mais famoso sendo o tenente Muhammad Siddiq Ibrahim) – o comando militar recuou finalmente, e os mantiveram oficialmente em função.

O desmantelamento do « Estado profundo », ou seja, a estrutura administrativa e militar estabelecida pelo exército e os islamistas sob al-Bashir durante três décadas, permanece umas obras imensas. E a condenação de Omar al-Bashir, em 14 de Dezembro passado, a dois anos em centro correccional para corrupção, é apenas a ponta visível do icebergue. A procaduria geral aproveitou da ocasião para anunciar outras investigações contra o antigo presidente, « em relação a assassinos e crimes contra a humanidade » em várias regiões do país e relativas ao golpe de 1989. Contudo, paralelmente, várias figuras importantes do antigo regime permanecem no poder ou em cargas chaves, e os eventos em curso na província oriental do Cassala são sobre isso sintomáticos. Em 22 de Julho de 2020, o Primeiro ministro nomeou dezoito novos chefes de província por interino (à espera de novas nominações, tornadas possíveis graças ao acordo assinado em Juba em 3 de Outubro), poém a escolha, para o Cassala, de Saleh Ammar, antigo jornalista e próximo da revolução, provocou protestos violentes, reprimidos com dureza pela polícia; o chefe de uma tribo local liderando a contestação, que teve receios de ver-se por em causa por atos cometidos sob o antigo regime, usou amplamente, para discreditar o novo presidente de província (originário dos Beni Amer, uma étnia comum com a Eritreia), de argumentos racistas, muito retransmitidos pelos militares do Conselho soberano. Em 13 de Outubro, Abdallah Hamdok foi finalmente obrigado a revogar Saleh Ammar, sinal das resistências e dos escolhos importantes que apresentam-se ao longo do caminho da transição.

A implementação de um corpo legislativo, constituido (segundo a Declaração constitucional do 17 de Agosto de 2020) de 300 membros, entre os quais 201 seriam mandados pela Aliança para a Liberdade e a Mudança, era suposta permitir contornar por parte o antigo Parlamento sudanês, onde domina o Congresso Nacional, partido de Omar al-Bashir, oficialmente disolvido em 28 de Novembro de 2019. Contudo, o atraso tomado nas negociações entre Cartum e os diferentes grupos rebeldes, em particular do Darfur, teve consequências sobre a formação desta assembleia legislativa (que será encarregada de redigir uma nova Constituição), tal como sobre a nomeação de governadores civis, dois passos cruciais do processo de transição.

Por trás do « Estado profundo » sudanês, encontra-se interesses estrangeiros poderosos: a Arábia Saudita, os Emirados Árabesn5d6s e o Egito, que desconfiam da emergência de um regime democrático na região, ainda mais se ele carateriza no longo prazo por um recuo do fundamentalismo religioso. Aliás, é porque ele tinha recebido o apoio da Arábia Saudita e dos seus aliados na região, que o Conselho militar lançou, em 3 de Junho de 2019, a repressão contra o acapamento dos manifestantes – Abdel Fattah al-Burhan tinha ido em visita oficial nos três países (Egito, Arábia Saudita, Emirados) o mês anterior, e o general Hemetti, quanto a ele, tinha encontrado o príncipe herdeiro saudita, Mohammed ben Salmane, em 23 de Maio. Por lembrança, o regime de Omar al-Bashir, de inspiração islamista por grande parte, era muito ligado a Riyadh e a Abu Dhabi. Durante o seu julgamento, o presidente deposto teria reconhecido, no âmbito dos interrogatórios preliminares, ter recebido 90 milhões de dólares em dinheiro da parte das autoridades sauditas, entre os quais « um valor de 25 milhões de dólares enviados pelo príncipe herdeiro [saudita] ». E em Setembro de 2014, o encerramento de centros culturais iranianos em Cartum (oficialmente por proselitismo xiita) decidido pelas autoridades sudanesas, obedecia a pressões do Golfo, num contexto de forte tensões entre Riyadh e Teerão, isso enquanto o regime sudanês e a República islâmica do Irão sempre entreterem pelo passado boas relações. Uns dias apenas após a queda do ditador, no meio de Abril de 2019, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, desejos de defender os seus interesses no país, anunciaram um plano de resgate de três bilhões de dólares, uma parte deste valor sendo para alimentar diretamente o Banco Central sudanês, o resto sob a forma de medicamentos, de trigo ou de gasolina.

Entende-se portanto bem que a volta ao « estado de graça » do Sudão no palco internacional é um desafio crucial, para a sua recuperação económica, como também para a sua independência política. Certamente, o Sudão, membro da Liga Árabe desde 1956, já entretinha laços importantes com os seus vizinhos, não só com os Estados do Golfo, mas igualmente com o Egito e a Líbia, com os quais, ainda em 2013, al-Bashir tinha assinado vários acordos de cooperação em diversos setores como as minas, os hidrocarbonetos, ou a segurança alimentar. Contudo, a mudança de regime poderia traduzir-se, a longo prazo, por evoluções de postura em assuntos sensíveis, como a repartição das águas do Nilo, o envolvimento de soldados no Iémen, a relação com países como a Turquia de Recep Tayyip Erdogan, ou o Egito de Abdel Fattah al-Sissi – este último permanece um apoio determinante para os militares sudaneses. Este ano, Cartum propôs assumir um papel de mediador no litígio que opõe os Sudaneses, com Cairo, à Etiópia no caso da barragem do Renascimento – uma infra-estrutura em construção desde 2013 (e que deve ser operacional em 2022), que poderia reduzir, para os países a jusante, os fluxos de água e as contribuções de limo. Entretanto, em 12 de Maio, o chefe do governo sudanês anunciou rejeitar o acordo proposto pela Etiópia em relação ao enchimento do reservatório de uma mega-barragem controversa que Adis-Abeba constrói no Nilo, por causa de « problemas técnicos e jurídicos »; as negociações tripartidas devem retomar nas próximas semanas.

Sobre as relações com Riyadh e Abu Dhabi, não tem grande mudança em perspetiva. Diante do desinteresso que a administração Trump parece ter manifestado, até muito recentemente, em relação à situação no Sudão, Cartum permanece dependente demais do dinheiro do Golfo para dar uma reviravolta brutal. A consequência é também interna: o « Estado profundo » sudanês conserva as chaves do poder graças aos seus poderosos protetores. Os oponentes ganharam certamente batalhas decisivas, em 11 de Abril de 2019 com a queda de Omar al-Bashir, como também em 5 de Julho do mesmo ano quando a junta militar recuou; contudo, diante das recomposições geopolíticas em curso no mundo árabe, não deixa de ser totalmente plausível que essas vitórias se terminam em uma série de decepções – os cidadãos que manifestaram em muitos outros países da região desde 2011 podem testemunhar disso. Se o Sudão saiu da ditadura, ele ainda não é uma democracia (embora parece em bom caminho), ainda menos oum país estável.

Em Cartum, vista no Nilo. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Em Cartum, vista no Nilo. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

O movimento revolucionário sudanês encontrou uma das suas fontes na memória histórica popular, marcada por uma procura irresistível de liberdade. Desde a independência em 1956, o país conheceu tempos importantes de ditadura militar, cada vez interrompidos por revoltas populares pacíficas instaurando regimes democráticos efêmeros. Em 1964, a « revolução de Outubro » punha fim com o regime de Ibrahim Abud, instaurado em 1958 com o apoio do Reuni-Unido, o substituindo por um governo democrático que ficou em carga apenas cinco anos. Em 1985, a « revolução de Abril » acabava com a ditadura de al-Nimeiry, apoiada desta vez pelos Estados-Unidos de América, o Egito de al-Sadat e de Mubarak, e a Líbia de Muammar al-Gaddafi. Em 1989, o governo civil foi finalmente vítima de um golpe orquestrado por um certo... Omar al-Bashir.

Esses sucessivos movimentos de massa, em 1964, em 1985 e de novo em 2019, existirem pela conjunção de muitas forças, entre as quais os trabalhadores dos caminhos de ferro, os agricultores da Jazirah (a província do Sudão centro-oriental), a União das Mulheres Sudaneses (co-fundada em 1952 pela ativista feminista e socialista Fatima Ahmed Ibrahim), o Partido Comunista, e uma intelligentsia nacionalista iluminada, encarnada em 2019 pela Associação dos Profissionais Sudaneses. Dado o destino que foi aquele das duas primeiras sequências democráticas, 1964-1969 e 1985-1989, entendemos que os contestatários que conduzirem o movimento de 2018-2019 permanecem particularmente vigilantes sobre a evolução da transição, na qual os militares têm uma grande influência. « Cada geração deve, numa relativa opacidade, descobrir a sua missão, a cumprir ou a trair. » Desejamos às Sudanesas e aos Sudaneses, neste contexto económico e social difícil, coragem para o futuro, para que, conformo estas palavras de Frantz Fanon, escritas em 1961 em Os Condenados da Terra, eles « cumprem a sua missão » e que a revolução não seja, de novo, confiscada.

Perto de Port-Sudan, na costa do mar Vermelho. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

Perto de Port-Sudan, na costa do mar Vermelho. (Crédito fotografia © Mariam Diakité, 2013)

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