Será a França um país racista? (1/2) A realidade de um racismo institucional no país dos direitos humanos
Polémica sobre as « reuniões não mistas », violências policiais, debate sobre o permanência de estátuas de defendedores da escravatura no espaço público, etc.: em França, a realidade de um racismo estrutural, herdado da escravidão e da colonização, cria debate, como o temos constatado nos últimos meses e anos. Ainda se acha pessoas chocadas quando se diz que a França é um país « racista ». Pelo contrário, muitos estimam que este qualificativo,, em relação a um país que acolheu com generosidade os seus pais ou avós imigrantes, exprime uma ingratidão das segunda e terceira gerações instaladas no território francês. Então será que é justo dizer que a França é um « país racista »?
Temos primeiramente que definir as palavras usadas. Falando do « racismo » de um país ou de uma sociedade, fala-se dos preconceitos e das atitudes dos cidadãos, do Estado e das leis, das práticas administrativas, do discurso político e mediático, ou ainda da produção inteletual e cultural? De fato, provavelmente de todas essas coisas ao mesmo tempo, por graus diversos, embora o racismo parece muitas vezes invisível e insidioso. Portanto consideraremos o racismo na sua definição larga. Ou seja, não só como a crença na existência de raças humanas e numa hierarquia entre elas, mas também como a atitude e os preconceitos hostis a uma categoria de pessoas, com base a sua origem, a cor da sua pele, a sua pretença etnolinguística, ou a sua religião. A maioria das pessoas que não sofrem do racismo como modo de opressão quotidiano (geralmente as pessoas identificadas como « brancas » no Ocidente) consideram muitas vezes como « racistas » apenas os atos ou palavras exprimindo um ódio explícito contra tal ou tal comunidade. Porém esta definição permite evitar qualquer questionamento mais crítico e avançado sobre nós mesmo, os nossos preconceitos, os nossos reflexos e a nossa atitude, ou ainda sobre as componentes estruturais da nossa sociedade (as instituições, as leis, a vida económica, a escola, etc.) logo que elas não são diretamente e abertamente racistas. Além disso, essa concepção do racismo exclui milhares de situações do dia a dia que só podem ser percebidas pelas próprias vítimas – o que chamamos o racismo ordinário. Dito de uma outra forma: se você é uma pessoa branca, pouco exposta a discriminações e a prfeconceitos raciais, pode não ser a pessoa mais relevante para julgar do caráter racista ou não da sociedade. E o simples fato de negar o racismo sem tomar em conta a experiência de discriminação das pessoas que sofrem do fenômeno e devem compor com ele, questiona: como interpretar a negação ou a exasperação de muitos cidadãos brancos diante do racismo e da sua denúncia?
A dificuldade de falar de racismo é acentuada pela questão semântica ligada à própria palavra «racismo ». Fala-se de qué? Após o choque da descoberta dos crimes cometidos pelos nazistas, em 1945, todo um trabalho de renovação do vocabulário foi iniciado após a guerra, para finalmente mudar o fundo marginalmente. Defender as ideologias racialistas e racistas que justificaram a colonização tornou-se impossível. As noções de « desenvolvimento », de « sub-desenvolvimento », de « cooperação », de « ajuda », de « recuperação », são então introduzidas na área da pesquisa e na política. Substituem-se gradualmente à famosa « missão civilizadora » que levou a Europa na África e além – sem, no entanto, mudar a ideia de hierarquia entre sociedades « avançadas », detendores do saber e da tecnologia, e outras « atrasadas » (Frente ao fiasco da ajuda pública ao desenvolvimento, para quando a sua desprogramação?). Enfim, há uma condenação universal do racismo biológico, mas apenas o vocabulário muda, não as práticas. Inventa-se um racismo sem raça, e é a cultura dos outros que serve de base ao racismo. Tal ou tal cultura torna-se inassimilável, está fora da civilização... Em França, o culturalismo não deixa de ser, tal como a islamofobia, um racismo « respeitável ». Muitos dos que pensam o antiracismo insistam, portanto, na existência persistente das raças, não como fato biológico, mas como fato social, como intimação dos indivíduos não brancos a um conjunto de estereótipos associados à cor da sua pele – e que induz, ao seu custo, estigmatização, discriminações, e até opressão, isso tudo podendo ser sistémico.
O assunto da semântica é ainda mais complexo porque as discriminações e as percepções cruzam-se e tornam-se às vezes confusas. Em França, uma pessoa judeu e identificada como branca por exemplo, pode sofrer palavras ou violências por ser judeu. Mas beneficiará de preconceitos favoráveis aos Brancos logo que procurará um emprego ou um alojamento, ou diante de um controlo de polícia – excepto se é identificada pela sua religião. Igual para pessoas com origens norte-africanas, ou para pessoas identificadas como muçulmanas, pois o islão é visto como uma religião estrangeira (o que não é o caso do judaismo nem do cristianismo) e vê portanto os seus crentes « racisados », embora podem ser etnicamente caucasianos. As palavras « Brancos » ou « Negros » são truncadas e aumentam a confusão, pois a identificação racial não é apenas baseada na cor da pele (a qual, aliás, nunca é realmente branca ou negra). Os Roma, por exemple, claramente brancos, são no entanto « racisados » e objetos de preconceitos violentes e muitas vezes antigos, tal como o foram, até o meio do século XX, os migrantes italianos, espanhóis e portugueses em França. E uma pessoa mulata (com um dos dois pais negro, outro branco) identificará-se talvez como negra, porque partilha experiências de discriminação afectando os Negros.
O conceito de pessoa « racisada », que corresponde ao processo de categorização de uma pessoa num grupo étnico ou racial diferente da maioria (vista como a encarnação da universalidade, e portanto não racisada), vem por parte responder às faltas de vocabulário nesse assunto, mas provavelmente de maneira insuficiente. Uma pessoa racisada, em França onde a maioria da população é branca (de origem europeia) e de cultura judeo-cristã (não importa se é praticante ou não), poderia portanto definir-se como uma pessoa não branca.
A França também tem a sua história do racismo
Quando os Estados Unidos de América, após a morte de George Floyd, cidadão afro-americano vítima de uma violência de polícia em 25 de Maio de 2020, protestos acabaram com confrontos com a polícia e pilhagens de lojas, no Hexágono fala-se de « motins urbanos » e recusa-se a comparação com a caso francês, sob o pretexto que os dois países não têm a mesma história. Certamento, os Estados Unidos conhecerem a escravatura e a segregação. Mas identificar o território hexagonal a uma terra de libertação dos Negros, que seria ficado virgem de práticas de escravidão, oculta amplamente o fato o fato que a França também tem a sua história do racismo e da segregação. Uma história antiga, de fato, que nos leva à Idade Média e aos reis muito cristãos. Episódio esquecido na narração nacional francês, em 1269, em aplicação do Quarto Concílio de Latrão (1215), São Luís impôs aos Judeus de levar signos vestimentários distintos: para os homens, um pequeno estofo no peito, e uma touca especial para as mulheres – as e os recusando tinham que pagar uma multa. No século XX, foram não só os Judeus, mas também os Roma, que foram vítimos, sob o regime de Vichy, das leis de segregação e depois de deportação num objetivo de exterminação, entre 1940 e 1944 – observou-se então um zelo das autoridades francesas que não se explica apenas pelo único fato da colaboração com os ocupantes alemãos, mas que correspondia também à ideologia racista (de inspiração maurassiana) da « Revolução nacional » levada pelo marechal Pétain. A responsabilidade do Estado francês durante a Segunda Guerra mundial só foi reconhecida cinquenta anos mais tarde, num discurso pronunciado por Jacques Chirac, logo após a sua eleição como presidente da República, em 16 de Julho de 1995 no Velódromo de Hiverno, em Paris.
Além disso, lembramos que, em 2 de Maio de 1938, ou seja antes da implementação do regime de Vichy, o governo Daladier (aquele que sucedeu à Frente Popular), querendo reservar os empregos aos trabalhadores franceses, promulgou um decreto-lei instituando medidas discriminatórias em relação aos estrangeiros morando em França, e voltando sobre o caráter automático de certos direitos (entre os quais o direito de voto) dados aos estrangeiros naturalizados franceses. Em 12 de Novembro de 1938, o mesmo executivo promulgou um segundo decreto-lei, o qual autorisava o internamento administrativo dos « indesejáveis estrangeiros ». É esse mesmo governo que, diante da chegada massiva de refugiados espanhóis em campos criados na urgência a partir de Fevereiro de 1939 nas praias do Languedoc-Roussillon, agiu de tal maneira que muitos deles foram finalmente reconduzidos na Espanha. Enfim, medidas adoptadas por republicanos, defendedores da democracia... Medidas que finalmente prefiguravam as adoptadas pelo regime de Pétain, em particular, logo no Outono de 1940: uma circular ordonando a transferência dos « nómadas » (entender: a comunidade cigana francesa) expulsos de Alsace-Moselle em campos do sul; a criação dos Grupamentos de Trabalhadores Estrangeiros para os « estrangeiros em excesso na economia nacional »; ou ainda a adopção de uma lei permintindo o internamento (arbitrário) dos Judeus estrangeiros.
Se a história do racismo francês não traduziu-se por uma prática institucional da escravidão no Hexágono – o historiador italiano Salvatore Bono, num estudo muito rico sobre a escravidão na Itália (publicado em 1999), parece no entanto indicar que muitos escravos são presentes a cerca do Mediterrâneo nos séculos XVI e XVII, na Itália mas também no sul da França, representando às vezes 1% da população em certas localidades –, porém ela deu lugar a um tratamento diferenciado em relação aos indivíduos negros. De fato, decerto, éditos reais de Julho de 1315 dispunham que « ninguém pode ser escravo no solo de França » e que « o solo da França liberta o escravo que o toco ». Após o início do comércio triangular, escavos até ganharão a liberdade diante de tribunais nesta base, logo no final do século XVII. Dois casos de libertação notáveis, em 1714-1716 e em 1738, cada vez confortados pelos tribunais, vão no entanto alertar a monarquia. Com medo de ver os escravos que passam em França aproveitar para reclamar a liberdade, e com receio que esse fenômeno inspira as populações negras além-mar e que isto afecta o modelo económico nas colónias, o poder real, após dois primeiros editos promulgados em Outubro de 1716 e em Dezembro de 1738, legifera em 1776 e 1777 sobre a presença dos Negros em França, proibindo a sua entrada no território, como também os casamentos entre « Negros, mulatos e outras pessoas de cor » e « Brancos » de metrópola.
Luís XVI até promulgou uma « Declaração para a polícia dos Negros », proibindo « a todos [os seus] sujeitos [...] de trazer no nosso reino […] qualquer Negro, mulato ou outras pessoas de cor, de um ou outro sexo, e de os reter ao seu serviço ». A duração da moradia dios escravos negros no Hexagono era estritamente limitado a três anos, o tempo de formar-se a um emprego potencialmente util para as colónias. Em cada porto francês, lugares de detenção são então implementados para confinar lá os escravos, durante a escala do seu mestro. No último terço do século XVIII, um recenseamento das pessoas de cor (livres ou escravas) no solo francês, permitido pelo acrescimento dos controlos das entradas e saidas do território nas populações negras e mulatas, dá entre 4 e 5 mil pessoas (homens, para um terço delas), « livres de cor » ou escravos, no Hexagono, essencialmente em Paris e nos portos do Atlântico (700 na única cidade de Nantes). Para reduzir a pequena onda de libertações constatada no século XVIII, em particular as libertações testamentárias em Nantes, a monarquia faz pagar, a partir de 1748, por várias centenas de livres (a moeda da altura) qualquer ato de libertação. Naquela altura, já se acha todo o dilema entre um direito que quer-se emancipadot, e uma aplicação da lei que procura de fato contornar-lo, tirar-lo qualquer tradução concreta. Em 4 de Fevereiro de 1794, quando a República revolucionária proclama a abolição da escravidão em eco à insurrecção em São Domingos (os revoltados haicianos abolirem a escravidão em 1793), esta decisão, de fato, só é aplicada parcialmente, na Guadeloupe, pois é recusada nas outras colónias pelos escravagistas. O decreto que restabelece a escravidão é finalmente publicado em 20 de Maio de 1802, o primeiro Consulo Napoleão Bonaparte respondando positivamento à pressão dos grandes proprietários que dominam as ilhas francesas das Antilhas e do oceano Índico. Segue a ordem do 2 de Julho de 1802 que proibe sob pena de detenção até deportação « qualquer Negro, mulato ou outras pessoas de cor, de um e de outro sexo, que não seriam em serviço, entrar no território continental da República. » O longo processo que conduz finalmente à abolição pela IInda República, por decreto em 1848, encontrará muitas dificuldades, e naquela altura, muitos países de América e de Europa, com excepção notável os Estados Unidos e o Brasil, já terão acabado com a escravidão.
A dualidade entre por um lado a permanência da escravidão nas Antilhas e no oceano Índico, e por outro lado uma terra de França sanctuarisada, suposta ignorar a prática da escravidão mas intolerante à própria presença de Negros, já levava as contradições entre princípios igualitários e realidade de um racismo institucional. É esse racismo que permitiu, sucessivamente e até hoje, o tráfico dos Negros e a escravidão, a aventura colonial, os genocídios culturais, o surgimento de um capitalismo hexagonal predador em relação aos recursos das colónias, os testes nucleares nos territórios de além-mar, o estatuto político e conómico desequilibrado dos atuais territórios ultramarinos, a marginalização e a estigmatização das periferias metropolitanas onde concentram-se as populações imigrantes, etc.
Um foco na situação das populações assimiladas à cultura rom na história contemporânea basta a ilustrar a distância, em França, entre os valores proclamados pelas instituições e a realidade vivida pelas populações discriminadas. As comunidades roma sempre foram classificadas em categorias administrativas, por exemplo no século XIX com denominações ligadas à raça, como « Boêmios », « Romanichel » ou ainda « Ciganos », e em outras alturas sob a apelação de « nómadas » e de « viajantes » (gens du voyage). O direito jurídico francês soube construir com inteligência um tratamento diferenciado em relação às populações roma, sem no entanto evocar de maneira explícita a palavra de « raça ». Assim, os « nómadas » têm há muito tempo um estatuto particular, o qual enquadra o direito à mobilidade como também a sua liberdade professional (o caráter não estável do seu domicílio e a dimensão ambulante da sua atividade são dois elementos que definem, no direito, o estatuto dos viajantes). E este « acumpanhamento » administrativo supera finalmente a lei para os tornar cidadãos particulares. Em 2000, uma lei associava explicitamente os « viajantes » assimilados à cultura rom com uma « habitação tradicional [...] constituida de residências móveis », distinguindo assim, com o uso da palavra « tradicional », as pessoas nascidas em famílias nómadas das que decidirem, sozinhas e sem laço com a cultura cigana, tornar-se viajantes – essas últimas não terão portanto nenhuma obrigação a instalar-se am áreas de acolhimento. Os « viajantes » são, em consequência, tratados diferentemente dos outros cidadãos e cidadãs deste país. Sobre a obrigação imposta aos « viajantes » de ter um Caderno ou um Folheto de circulação, documentos que substiruirem em 1969 o Caderno antropométrico criado em 1912 (e que detalha caraterísticos físicos da pessoa, incluidos a corpulência e a cor da pele), ela só foi abolida, de forma gradual, entre 2017 e 2019. Verdadeiros passaportes interiores, esses documentos permanecem ainda exigidos por certos municípios, de forma ilegal. O sentido é muito claro: sair do espaço oferto e autorizado deve ser criminalizado, e os « viajantes » recebem multas forfetárias se instalam-se fora das áreas de acolhimento. Tal como multas forfetárias com alvo as pessoas ocupando escadas e entradas de prédio, a penalização quer-se objetiva, e contudo tem como alvo uma população particular – as pessoas assimiladas à cultura cigana, num caso, os jovens descendentes de imigrantes nos bairros populares, num outro.
Além da dimensão jurídica, acrescenta-se a marginalização sistemática dos roma. Na sua obra Onde estão os viajantes? (2021), o jurista e pesquizador francês William Acker estabelece, de maneira muito ilustrativa, uma cartografia crítica das áreas de acolhimento reservadas aos « viajantes ». De fato, essas são muitas vezes localizadas à proximidade imediata de áreas industriais, de lixeiras, de sítios poluidos, etc. Pois, para satisfazer os receios e as fantasias racistas de muitos cidadãos e cidadãs, as autoridades, que têm desde uma lei de 2000 (nas cidades com mais de 5 000 habitantes) uma obrigação de por à disposição áreas de acolhimento (obrigação nem sempre respeitada...), prefirem afastar essas populações dos centros urbanos. De fato, as áreas de acolhimento são localizadas perto de infra-estruturas que foram, por razões óbvias, afastadas dos centros das cidades (por exemplo sítios industriais), para diminuir o custo da sua conexão às redes da água ou da eletricidade. Com um risco, ou seja, expor as populações que moram lá a formas de incômodos (sónoros, atmosféricos, etc.) consequentes – além de as afastar geograficamente, e portanto socialmente, dos lugares de vida. William Acker fala então de « racismo ambiental » sobre o tratamento dos Roma, expressão que também podemos aplicar a populações afetadas pelo fato colonial, por exemplo Caribenhos vítimas do escândalo do clordecona. A isso tudo acrescentou-se, há muito tempo, a vontade das autoridades de incentivar os Roma a sedentarizar-se, processo considerado como o sentido do « progresso » e a garantia de uma boa integração à sociedade francesa. Com, subjacente, o desejo de ver as populações nómadas assimiladas à cultura cigana apagar-se, desaperecer, assimilar-se.
Em França, as políticas racistas prolongaram-se amplamente além das independências africanas, em bairros populares do Hexágono como nos territórios do além-mar. Em A barriga das mulheres: capitalismo, racialisação, feminismo, publicado em 2017, a ensaiste Françoise Vergès, originária de La Réunion, descrivia as políticas natalistas violentemente discriminatórias que prevalerem nas décadas de 1960 e 1970 nos départements do além-mar, com notavelmente o encorajamento, às vezes mesmo uma forma de obrigação, para favorecer os abortos, as esterilizações e o uso de contraceptivos, com alvo as mulheres não brancas – é preciso lembrar que naquela altura, o aborto era ainda oficialmente criminalizado em França. Esterilizações e abortos forçados, praticados em massa sobre milhares de mulheres de La Réunion e das Antilhas, aos quais acrescentou-se um muito forte incentivo à emigração das populações racisadas (que era suposta compensar a instalação nos ultramarinos de funcionários brancos vindo da metrópole). Além dos próprios fatos, Françoise Vergès analisa no seu ensaio « as redes estreitas entre a prefeitura (o Estado), a justiça, a polícia, as mídias e a classe possuidora, herdeira da terra e da reconomia escravagista e colonial e que agarra o mundo político ». Ela desmostra que essas mesmas redes de relação « explicam que o aborto sem consentimento de milhares de mulheres foi possível durante anos sem que houve investigação ». « O estudo dessas redes de complicidades, acrescenta ela finalmente, coloca a luz numa casta masculina branca que basa a sua dominação na intimidação e na ameaça. Homans brancos constroem a sua fortuna sobre os corpos mutilados de mulheres de La Réunion. Um mundo masculino e branco defende a necessidade de intervir nos corpos, ele dispõe do apoio do aparelho de Estado, da Ordem dos médicos, da hierarquia da Igreja, da polícia e da justiça. »
Para ela, esses fatos são « profundamente reveladores de uma colonialidade republicana ». « O que acontece nos além-mar nas décadas de 1960-1980 torna visível uma nova configuração da sociedade francesa que podemos chamar "póscolonial", do seu espaço e do conteudo dado à "identidade nacional" e à narração "nacional". » Nessa reconfiguração da cartografia republicana, a história dos além-mar – onde uma relação colonial permanece em relação ao Hexágono apesar da départementalisation (porém a própria Argélia conheceu também a ocupação colonial e ao mesmo tempo um estatuto de département) – é voluntariamento negligenciada, esquecida. Dito de uma outra maneira: 1) não há ruptura fundamental entre a França colonial e a pós 1962, simplesmente reorganização das relações de poder para assegurar a perenidade do imperialismo francês no seu antigo espaço colonial; 2) há uma negação do lugar dos territórios ultramarinos na construção da narração nacional, e do que significa a marginalização dos além-mar para a sociedade francesa em geral.
A história dos Estados Unidos é marcado pela escravidão e a segregação. Mas na mesma altura, científicos franceses praticavam a frenologia para desmostrar a superioridade natural da raça branca e do género masculino; a Escola republicana ensinava a existência de quatro raças humanas distintas; o Estado francês reconstituiu « aldeias negras », verdadeiros jardins zoológicos humanos, entre os quais o último famoso foi realizado na Exposição colonial de 1931 em Paris; a França conduziu a sua empresa colonial na África, no Pacífico, nas Antilhas e na Ásia, e ela praticava lá o trabalho forçado e um regime de segregação de facto e de jure (por exemplo com as legislações e práticas que comporem o código do indigenato, que só acabou após a Segunda Guerra mundial). Embora ela é diferente da dos Estados Unidos, a França também tem a sua história do racismo, profundamente ligada às experiências da escravidão e da colonização – os territórios e départements do além-mar lembram-se bem disso, – e que explica-se por parte pela convicção que o homem branco europeu, dotado da Razão diante de um mundo bárbaro brutal e animalizado, é único detentor das chaves do progresso, e tem por missão trazer a civilização ao mundo inteiro para o fazer entrar na « luz ».
Podemos lembrar o episódio violente da deportação das « crianças da Creuse ». Organizado desde a ilha de La Réunion pela Direção distrital dos Negócios sanitários e sociais (abreviado em francês por DDASS), sob a autoridade de Michel Debré, entre 1962 e 1984, esse movimento forçado de população consistiu na reinstalação, em territórios pouco povoados do Hexágono (em particular o département da Creuse), de pelos menos 2 150 crianças, declaradas « pupilas do Estado » (ou seja, os pais biológicos, ficados em La Réunion, perderem qualquer direito sobre as suas crianças). Atiradas de uma familha para a outra, de um centro de acolhimento para o outro, elas foram muitas vezes vítimas de racismo, e, exploradas, servirem de mão de obra em quintas ou de domésticos. Foi preciso esperar recentamente, em 2014, para ver a Assembleia nacional, sob proposição da deputada de La Réunion Ericka Bareigts, reconhecer a « responsabilidade moral » do Estado nesse caso. Será que uma sociedade capaz de produzir tais arrancamentos durante duas décadas consecutivas, merece menos do que os Estados Unidos, a Austrália ou a África do Sul (que também praticaram políticas de rapto de crianças indígenas, políticas natalistas discriminatórias, ou ainda leis de separação raciais no espaço público) os qualificativos de racista ou de segregacionalista?
Bem longe dos mitos de uma República libertadora e igualitária, a história do racismo francês ainda fica para ensinar – uma obra ambicioso, pois nesse assunto, o trabalho historiográfico permanece parcial e desconhecido. Finalmente, podemos notar que, longe dos preconceitos habituais, foi nos Estados unidos e não em França que, logo no dia após a morte de George Floyd, os policiais em questão foram despedidos e duas investigações abertas; assistiu-se então, do outro lado do Atlântico, a cenas comoventes à margem dos protestos, de policiais respeitando um minuto de silêncio, um joelho no chão, em solidaridade com a luta antiracista.
Protesto contra as violências policiais e o racismo, organizado pelo comité Adama Traoré em 13 de Junho de 2020, na praça da República, em Paris.
Um racismo ancorado nas instituições e na vida política
Pode-se dizer que um país não é racista, logo que as leis e as instituições não são racistas. Contudo, é preciso lembrar que uma sociedade puxada entre xenofobia e princípios humanistas pode perfeitamente produzir leis com conotação racista. Entre muitos exemplos, podemos falar do famoso « delito de solidaridade », o qual voltou na atualidade sob a presidência de Nicolas Sarkozy (2007-2012). Delito que referenciava-se ao artigo L.622 do código da entrada, da estadia dos estrangeiros e do direito de asílio (abreviado em Ceseda em francês), criado em 1945. Esse texto dispõe que « qualquer pessoa que terá, por ajuda direta ou indireta, facilitado ou tentato facilitado a entrada, a circulação ou a estadia irregular de um estrangeiro em França » pode ver-se imposto até cinco anos de cadeia e 30 000 euros de multa. Esta disposição foi reformada na década de 1990 com uma série de excepções (imunidade familial, perigo iminente, ato sem contrapartida...). A reescritura da lei pela maioria socialista, em Dezembro de 2012, e todas as leis que sucederem-se desde então, limitaram-se a suabizar o dispositivo repressivo sem suprimir o que cobre a desnominação de « delito de solidaridade ». Aliás, é depois do mandato de Nicolas Sarkozy, em 2017, que o agricultor Cédric Herrou (tal como o professor Pierre-Alain Mannoni) foi condenado a uma pena suspensa por ter ajudado uns 200 migrantes que tinham atravessado a fronteira italiana pelo vale da Roya. Foi preciso a intervenção do Conselho constitucional em Julho de 2018 para invalidar as condenações ao título do « princípio de fraternidade », do qual decorre « a liberdade de ajudar outrem num objetivo humanitário ». Uma decisão que coloca a luz sobre o repuxamento mencionado entre, por um lado, uma xenofobia encorajada e intrumentalizada pela área política, e por outro lado os princípios humanistas garantidos pelo direito. Mas a lei permanece, e constitui obviamente uma ameaça para as cidadãs e os cidadãos solidários. Após a eleição de Nicolas Sarkozy, em 2007, as associações de clandestinos denunciaram um uso cada vez mais frequente do artigo sanccionando o « delito de solidaridade », contra os seus membros ou outros cidadãos que ajudavam migrantes. Em apenas três meses, em 2009, uns quinze responsáveis de centros Emmaüs tiveram problemas com a polícia.
A Constituição proclama, no seu primeiro artigo, a igualdade diante da lei de todos os cidadãos, sem distinção de origem, de raça ou de religião, porém as violações desses princípios são quotidianos, e isso não é recente. Sob a Quarta República, entre 1946 e 1958, o preâmbulo da Constituição assurava que « qualquer ser humano, sem distinção, de raça, de religião nem de crença, possui direitos inalienáveis e sagrados », e a França tinha ratificado a Declaração universal dos direitos humanos em 1948 como membro da Organização das Nações unidas. Isso não impediu a França, naquela altura, de conservar as suas colónias africanas e asiáticas durante mais de uma década, nem de conduzir as guerras de Indochina e de Argélia, contra os direitos dos povos à autodeterminação e apesar do caráter racista da argumentação que justificava a empresa colonial. Afirmar que não existe racismo institucional sob o único pretexto que o direito garante teoricamente a igualdade dos cidadãos sem distinção racial ou de origem, é tão absurdo e kafkeano do que afirmar que não se pode falar de violências policiais em França porque prevalece lá um Estado de direito – o que Emmanuel Macron tinha no entanto dito em 7 de Março de 2019 numa reunião pública. Aliás, os exemplos de políticas e de atitudes discriminatórias são muitas, inclusive na história recente, e já foram objeto de protestos e de lutas judiciárias. Num ensaio publicado em 2020, A potência das mães, a politóloga Fatima Ouassak dá vários exemplos de lutas levadas pelas comunidades migrantes, entre as quais a dos « Chibanis marroquinos da SNCF » (a grande empresa pública ferroviária francesa), que conclui-se com uma linda vitória « contra todo um sistema discriminatório »: « [Eles] conseguirem fazer vergar a potente SNCF, e a través ela o Estado, condenada em 2018 a lhes transferir milhões de euros ao título de reparação das discriminações racistas que ela lhes causou durante décadas. Um milhar detrabalhadores ferroviários conduzindo o mesmo combate judiciário, fazendo reconhecer assim pelo próprio Estado a existência de discriminações institucionais massivas. »
Um olhar sobre a composição (atual) da Assembleia nacional e do Senato deveria, na verdade, bastar a ilustrar as lacunas da representação e da vida democrática em França. As duas câmaras do Parlamento sub-representam a diversidade racial, com, na Assembleia, menos de vinte pessoas com origem africana ou das Antilhas por exemplo, e ainda menos de origem asiática (sobre 577 deputados). Mas também um sub-representação das mulheres (menos de 40% do hemiciclo), das pessoas deficientes, e, claro, das categorias populares (com apenas um operário e 26 empregados de serviço à Assembleia nacional, ou seja, 4,6% dos deputados, contra 76% de quadros e profissões inteletuais superiores). Igualmente, a idade média de um deputado é 51 anos, contra 41 anos para toda a população – era 61 anos no Senato em 2017. Na realidade, bem longe de representar o povo, o Parlamento representa as desigualdades e as relações de poder na sociedade. Uma sociedade que, apesar de uma legislação que fez imensos progressos nas últimas décadas, e das mentalidades que evoluem globalmente no bom sentido, conserva sequelas e preconceitos aristocráticos, validistas, patriarcais... e racistas. Sem esquecer o peso de uma sociedade capitalista na qual uma campanha eleitoral precisa meios financeiros importantes e onde o apoio das mídias (onde pode-se deplorar a falta de diversidade) pode mudar o resultado final.
Num tal contexto, o jogo democrático é rapidamente fechado aos novos chegados na cena política. E pensar o contrário, é negligenciar as construções e as dinámicas sociais e mentais herdadas pela sociedade inteira. É passar totalmente ao lado do peso dos preconceitos, os quais, não só podem ser à origem de discriminações (sociais, raciais, etc.), mas podem também aniquilar as capacidades e as ambições das pessoas discriminadas. Sem isso, deduziríamos facilmente que se as mulheres ou os Negros não acedem aos estratos os mais elevados nas empresas, nas administrações, nas instituições ou nas áreas científicas ou culturais, é porque eles não o querem realmente, falta-lhes a vontade. Pior, isso supõe que as reclamações dessas categorias teriam mais a ver com uma tendência a privilegiar a victimização coletiva ao esforço individual. Exit os preconceitos e as discriminações no recrutamento, no alojamento, no controlo policial; exit as observações e os gestos misóginos, racistas ou validistas, ou ainda o despreso de classe; exit a importância da rede e das amidades na construção de uma carreira profissional ou política. Até questionamo-nos porqué um governo anterior sugeriu a ideia de CV anónimos, ou porqué foram criados o Defendedor dos direitos, a Comissão nacional consultativa dos direitos humanos, ou ainda as muitas associações antiracistas, pois tudo está perfeitamente bem.
Na continuidade dessas constatações, pode-se questionar também o peso do discurso racista na classe política, a qual faz « viver » as nossas instituições. Em particular, é difícil interpretar como o simples fruto do acaso a popularidade das teorias racistas e a facilidade com a qual as personalidades políticas de vários lados apropriam-se um discurso xenófobo e identitário para ganhar votos. Pode-se mencionar várias declarações, propostas e discursos, nos últimos anos, de pessoas ou de direita, ou de extrema-direita, como Jean-Fronçois Copé, Philippe de Villiers, Nadine Morano, Nicolas Sarkozy, Claude Guéant, Brice Hortefeu, ou ainda Marine Le Pen, cristalizando-se sobre a ideia de uma ocupação do território e uma guerra das civilizações, com base uma « Grande substituição » da população francesa (de origem europeia e de cultura católica) por populações africanas e árabes (muçulmanas). Do lado esquerda do palco, declarações deixam também perplexo. Lembramo-nos de Manuel Valls, antigo deputado e depois Primeiro ministro, sobre a falta de Brancos no seu município, ou ainda sobre os Roma. Ou também Jean-Luc Mélenchon, lider da esquerda radical, sobre os Chechenos, em 2020. No seu ensaio de 2020, Fatima Ouassak denuncia também as posturas oportunistas, islamofóbicas e racistas de muitos eleitos locais de Saine-Saint-Denis (um distrito concentrando muitas comunidades imigrantes, à margem de Paris) ligados a partidos de esquerda, em particular o Partido socialista; ou eles instrumentalizam os habitantes dos bairros sensíveis, com objectivos eleitorais, ou eles os estigmatizam ou os tratam com desprezo, tudo isso sob pretexto de laicidade. « Muitos, escreve ela, são de fato notáveis com ideias e práticas de extrema-direita, que só precisam de uma etiqueta respeitável a colar-se na testa para conduzir a sua carreira política e sobretudo ganhar dinheiro.
A visão apocalíptica da situação nacional, com base essa « Grande substituição » por populações de religião muçulmana, revela um desconhecimento dos equilibros demográficos e das tendências atuais em França, uma leitura troncada das dinámicas, que procura interpretar num certo sentido dados muitas vezes contraditórios. Muitos mostram por exemplo o número de conversão ao islão na sociedade francesa (estimadas a 3 500 por ano, segundo um estudo do INED e do INSEE publicada em Outubro de 2010), sem interessar-se à subida do ateismo ou à secularização das segunda e terceira gerações de comunidade de origem norte-africana, nem à sua vontade de aceder à classe média dos centros urbanos. Indicador reconfortante: o fracasso constante, nos últimos anos, das listas ditas comunitárias nas eleições locais. As alertas em relação a essas listas, em particular vindo da direita francesa, foram repetidas inúmerosas vezes antes das eleições autárquicas de Março de 2020. Porém, constatou-se que a ameaça era uma nova fantasia, pois a dezena de listas identificadas como tais pelo ministério do Interior quase todas foram varridas logo no primeiro torno. Por exemplo, a União dos democratas muçulmanos franceses, a UDMF, que tinha apresentada oito listas em todo o país, realizou uma média de 1,59% e não ganhou nenhuma eleição; podemos notar que, aliás, o seu programa não tinha nenhuma proposta religiosa, tal como quase todas as outras listas então identificadas como « comunitárias ». Chamando a toda a hora a atenção sobre o risco de islamização, diabolizando e dando assim visibilidade a formações políticas sem apoio popular, a classe política pode ajudar-lhes a ganhar visibilidade, as tornando forças de oposição... Talvez seja este o objetivo procurado.
Estela comemorativa da repressão do 16 de Outubro de 1961, à entrada da ponte Saint-Michel, em Paris. Só em 17 de Outubro de 2001 é que tinha sido instalado ali, conforme à vontade do então edil socialista Bertrand Delanoë, uma placa para lembrar o massacre de dezenas de Argelianos, no contexto da guerra de independência argelina (1954-1962). Em 17 de Outubro de 2019, foi-lhe substituido esta estela pela presidente atual do Conselho municipal, a socialista Anne Hidalgo.
Difícil tratar do racismo ao nivel institucional sem falar da questão dos ferramentos de repressão, em particular a polícia. As brigadas anticriminalidade (BAC) são particularmente em questão para as suas intervenções brutais nos bairros periféricos, mas não são as únicas. Sem estender-se muito sobre os controlos policiais que fazem-se apenas com base a cor de pele das pessoas, o que já foi amplamente desmostrado estatisticamente pelo Defendedor dos direitos (em particular quando a instituição era dirigida por Jacques Toubon, entre 2014 e 2010... um estudo de 2016 revelou, por exemplo, que um jovem Negro tinha vinte vezes mais riscos de ser objeto de um controlo de polícia do que os outros cidadãos), a atualidade é regularmente alimentada, há anos, por violências policiais e abusos de poder constatados. Um dos casos mais famosos foi o de Adama Traoré, cidadão francês de 24 anos, que faleceu em 19 de Julho de 2016 no posto de polícia (gendarmerie) de Beaumont-sur-Oise, no département do Val d'Oise. A causa da sua morte: os que o rinterpelaram praticaram nele um chapeamento ventral (ou decubitus ventral), provocando a sua morte por asfixia com privação prolongada de oxigénio. O caso tornou-se rapidamente famoso, graças à mobilização da família e do coletivo de apoio implementado, revoltados pelo tratamento judiciário desta rebarba, o qual procurou obviamente exonerar os policiais de qualquer responsabilidade na morte – foi tentado a explicar pelos antecedentes medicais da vítima. Por lembrança, o processo de instrução, lançado em 2019 apá uma contra-peritagem medical concluindo à responsabilidade dos policiais (gendarmes) no falecimento, ainda está em andamento. Sem entrar no detalhe do dossier, este caso, pelo menos, relançou dois debates: o dos métodos brutais e do sentimento de impunidade das forças da ordem, e o do tratamento diferenciado das pessoas não brancas por essas mesmas forças da ordem.
Os casos multiplicaram-se nos últimos anos: o de Théodore Luhaka, educador de bairro, vítimo de um controlo em Aulnay-sous-Bois (Seine-Saint-Denis) que acabou com a sua agressão (verbal, em particular com palavras racistas, e física) pelos policiais, inclusive a sua agressão sexual (com um bastão enfiado no seu ânus), em 2 de Fevereiro de 2017; o de Lamine Ba, mediador municipal em Sevran (Seine-Saint-Denis), agredido por um policial que tentou, sem nenhuma razão válida, dar-lhe socos, no âmbito de uma discussão na rua, em 11 de Novembro de 2019 (depois, os policiais presentes trouxeram testemunhas falsas, desmentidas por um vídeo amador); a agressão violente e acompanhada de muitos insultos racistas, do produtor de rap Michel Zecler, na entrada do seu estúdio de gravação, em Paris, por três policiais, em 21 de Novembro de 2020 (demorou uns quinze minutos, imagens gravadas pelas câmeras de vigilância do estúdio e vídeos amadores da vizinhança), os quais, ai também, fizeram testemunhas falsas para cobrar a vítima.
Uma outra história vei questionar mais uma vez a honestidade da polícia, a de Viry-Châtillon (Essonne), onde, em Outubro de 2016, policiais em posição estatica foram atacados com cocktails Molotov por dezasseis pessoas da Cité da Grande Borne. Balanço: quatro policiais queimados, um gravamente. Após o drama, governo e sindicatos de polícia pressionaram ativamente a instituição judiciária para haver penas exemplares contra treze jovens, identificados e acusados após uma investigação laborioso. Problema, o objetivo de « achar culpados » foi privilegiado à transparência e à honestidade da pesquisa: relatórios modificados, denegações dos suspeitos não registradas, retranscripções de testeminhas troncadas... Em 17 de Abril de 2021, o Tribunal criminal (Cour d'assise) dos menores de Paris condenou cinco dos treze acusados a penas entre seis e dezoito anos de prisão, ou seja, um julgamentomenos severo do que o primeiro dado em Dezembro de 2019, provocando assim a indignação de muitos policiais. Pode-se notar que, com raras excepções, as mídias e uma grande parte da classe política preferirem então insistir sobre o « laxismo da justiça », em vez de lembrar que certos jovens absolvidos passaram meses, e às vezes anos, em prisão, com base a manipulação da pesquisa dos policiais. Mas quem preocupa-se pelo fato que o jovem Foued perdeu mais de quatro anos da sua vida na cadeia? Em Abril de 2021, a Inspecção geral da Polícia nacional (IGPN) fez conhecer que ela se recusava a abrir uma pesquisa sobre o procedimento de investigação neste caso...
Esses fatos afectam obviamente toda a instituição da polícia, ao custo das e dos que trabalham de forma sincera e que querem ver essas práticas acabar. Contudo, a regularidade das violências, dos abusos, e a falta de condenação que segue, impedem de os interpretar apenas como anecdotas. Traduzem um racismo bem real, partilhado por muitos policiais, dobrado de um sentimento de impunidade, o qual base-se claramente no forte corporatismo da instituição. Aliás, casos multiplicaram-se nos últimos anos, ilustrando o racismo presente na polícia: em Dezembro de 2019, quando um sub-brigadeiro (negro) em Rouen descobriu uma conversa WhatsApp de colegas com messagens racistas e sexistas, algumas frases até conspiracionistas e supremacistas brancas (o caso foi tornado público em Junho de 2020 por Mediapart e Arte Radio); em Abril de 2020, quando foi chamado a atenção da Inspecção geral da polícia nacional (IGPN) sobre o caso, revelado com um vídeo amador, de policiais comentando um homem identificado como árabe com palavras racistas com conotação colonial; ou ainda a revelação, em Junho de 2020 em StreetPress, da existência de um grupo privado Facebook, criado em Dezembro de 2015, contando mais de 8 000 membros (policiais, gendarmes, funcionários...), e onde se multiplicaram as declarações racistas e sexistas.
Esse tipo de polémicas (justificadas) afecta a instituição policial, pois ela coloca por trás da cortina os verdadeiros problemas dos policiais, ligados à falta de meios e de apoio do Estado. Porém, o problema sistémico do racismo na polícia deve ser tratado, e não é incompatível com o fato de responder também aos problemas que a instituição encontra para atender as questões de segurança. É a postura de negação que desvaloriza a polícia, porque obriga muitos policiais a ficar silencioso sobre os atos e as palavras racistas dos seus colegas, os abusos de poder, etc. A França foi condenada pela primeira vez pelo Tribunal europeu dos direitos humanos por violências policiais com caráter racista em 1999, e o foi de novo várias vezes desde então. Em 9 de Novembro de 2016, até o Tribunal de cassação condenou o Estado por controlos com base a cor da pele (contrôles au faciès). Mais recentemente, em 28 de Outubro de 2020, o Estado foi condenado de novo, desta fez para « falta pesada » por causa de violências policiais, controlos de identidade injustificados, e interpelações de menores entre 2014 e 2016 em Paris; o processo tinha sido levado ao civil por dezessete adolescenes e jovens adultos, e tinha a ver com violências e discriminações cometidas por onze policiais numa brigada em Paris. No entanto, se o « motivo irregular » dos controlos foi confirmado, « nenhuma presunção de discriminação » foi reconhecido, recusando assim o caráter sistémico do problema.
Poderá dizer-se que não é a polícia mas policiais que são em questão. Mas quando policiais dizem algo racista, abusam do seu poder, são violentes gratuitamente, eles o fazem com o uniforme no ombro, a bandeira francesa na dragona, e sobretudo o sentimento de impunidade que lhes dão a lei do silêncio a cerca de muitos casos, a inação geral do ministério do Interior e o espírito de corpo da polícia. E quando o Tribunal europeu dos direitos humanos condena, é bem o Estado e não os indivíduos que estão questionados, nos lembrando que esses mesmos não falam em seu próprio nome, mas sim, em nome de uma instituição. Acrescente-se a reação da hierarquia, quase sistematicamente solidária dos que abusam, o que pode deixar perplexo. Pior, os policiais que denunciam os abusos dos seus colegas são muitas vezes, como o ilustraram vários exemplos nos casos até então mencionados, castigados ou penalizados, de uma forma ou de uma outra, pela hierarquia.
O pelotão de « voltigeurs » motolevados (PVM), brigada de policiais de moto, foi implementado em 1969 em reação ao movimento de Maio de 1968. Era encarregado de resolver os problemas de « finais » de protestos nas ruas estreitas. Dissolvido em 1986 após o caso Malik Oussekine, nome de um estudante de 22 anos matado por policiais « voltigeurs », foi ressuscitado em urgência em Dezembro de 2018 diante do movimento dos Coletos amarelos com os destacamentos destacamentos de ação rápida (DAR), e em Março de 2019 com as Brigadas de repressão da ação violente motorizadas (BRAV-M). São regularmente acusados de violência disproporcionada. Aqui, uma unidade em margem de um protesto contra o racismo e as violências policiais, organizado em 13 de Junho de 2020 em Paris pelo comité Adama Traoré.
Uma palavra sobre o lugar do complexo judiciaro-policial na relação entre o Estado e as periferias metropolitanas. As leis preparadas pelo ministério do Interior, adoptadas à medida das crises, das anecdotas e dos eventos políticos e securitários, revelaram-se cada vez mais autoritárias esses últimos anos. Após os atentados de 2015 por exemplo, os parlamentares aprovaram um conjunto de leis repressivas, integrado ao direito comum após a eleição de Emmanuel Macron em 2017. Mas já antes disso, uma proposta de lei adoptada em Março de 2010 criou um « delito de participação a um agrupamento violente » – oficialmente, com o objetivo de cometer violências, destruições ou desgradações. Esta lei « anti-bando » respondeu, para o governo da altura, aos desafios securitários induzidos pelos motins de subúrbio de 2005 e de 2007, em particular porque fora do flagrante delito, era até então difícil condenar os amotinados para outra coisa do que um « delito de aglomeração », ou seja, um delito político. Mas o governo certamente não queria conceder uma dimensão política aos motins de subúrbio (entre outras razões, por isso teria induzido um certo número de proteções em termos jurídico). Dai, a criação desta infracção, que não necessita de cataterizar, nem um resultado prejudicial, nem uma tentativa de cometer uma infracção, para poder ser constatada. A caracterização de muitos fatos materiais permitindo desmostrar a vontade de um grupo de pessoas de provocar desgradações ou de cometer violências basta, portanto, a permitir a sua interpelação e a intentar uma acção contra elas.
Apesar do seu conteúdo contestável, esta lei foi validade pelo Conselho constitucional em Fevereiro de 2010. Ela foi pouco usada depois, mas permitiu pelo menos às forças da ordem, em caso de novos motins, ter as mãos livres para interpelar livremente os jovens achados em lugares de violências. É só na ocasião dos protestos dos Coletos amarelos, em 2018-2019, que o resto da França realmente « descobriu » a existência desta lei. De fato, ela permitiu então guardar pessoas em postos de polícia de maneira « preventiva » e um tratamento expeditivo dos dossiers; três Coletos amarelos foram condenados nesse âmbito, em Janvieor de 2019, pelo tribunal correccional de Marseille, e penas entre dois e quatro meses de cadeia firma. Desde então, vários coletivos, como o Movimento imigração subúrbio, o coletivo Vidas roubadas, ou ainda, mais recentemente, o coletivo Adama, mobilizaram-se, na indiferença geral, para denunciar as violências policiais e as violências que provocaram a morte de jovens de subúrbio – por lembrança, por exemplo, os « motins de 2005 » começaram em Clichy-sous-Bois (Seine-Saint-Denis) após a morte de dois adolescentes, Zyed Benna e Bouna Traoré, com idade de 17 e 15 anos, em Outubro de 2005, electrocutados num posto elétrico enquanto tentavam escapar a um controlo de polícia.
À lei de 2010 e ao quadro repressivo que o acompanha, acrescenta-se ainda os controlos baseados na cor da pele (contrôles aux faciès), já mencionados acima. As leis são profundamente classistas, e num mundo onde origens étnicas e sociais cruzem-se muitas vezes, elas são igualmente vistas como racistas. O antropólogo e historiador francês Emmanuel Todd o explicou no seu ensaio Onde estamos? (2017) para os Estados Unidos, mas vale também para a França: até a luta contra a droga condiz, não na lei mas de fato, realidades geográficas e sociais arbitrárias, na escolha de focalizar-se na maconha ou no crack em vez da coca, por exemplo, e mais em certos subúrbios do que em bairros dos centros urbanos.
Em Uma teoria feminista da violência (2020), Françoise Vergès lembra: « Em 1975, Michel Foucault mostra em Vigiar e punir porqué a prisão é indispensável ao funcionamento do Estado, e como ela imprime na sociedade a ideia que, para a proteger, é preciso prender e punir. A noção de dangerosidade, escreve ele, contribui a fortalecer um sentimento de insegurança, o qual justifica pela sua vez uma ideologia securitária, a qual, depois, exacerba a percepção do perigo. Esta noção marca duravelmente a ideologia estatal e securitária da proteção, e justificou toda uma série de eis repressivas, esse sentimento de insegurança sendo "inversamente proporcional à insegurança real". » A ensaista de La Réunion insista na diabolização das pessoas racisadas, e em particular dos homens racisados, por exemplo com uma instrumentalização das questões feministas, que deve justificar a presença crescente das forças da ordem e a sua omnipotência nos subúrbios. Tal como os colonos franceses o fizeram durante a aventura colonial em áfrica, a sociedade enfeita-se de um feminismo « civilizador » para ir libertar as mulheres desses bairros. A questão do véu, símbolo da submissão desde 1989 (ano do primeiro caso polémico de uso de um véu numa escola francesa), e o escândalo das tournantes (palavra designando estupros/violações coletivas), mais ou menos en 2000-2002, foram e permanecem centrais deste duplo fenômeno de animalização dos (jovens) homens racisados, e da vitimização (ou vulnerabilização) das mulheres racisadas – as que é preciso libertar, às vezes contra elas mesmas. « A cité torna-se a antitesa da sociedade, escreve ela ainda, a primeira sendo solidária dos criminais, impondo o silêncio às vítimas, os ameaçando de represálias e protegendo os violadores, a segunda desejando a libertação das mulheres. Com a associação Nem putas nem submetidas, o feminismo civilizador criou em França uma força supletiva de mulheres racisadas que apresentam atributos associados à "mulher oriental" mas com uma dimensão moderna, pois ela denunciam o machismo da sua comunidade e aderem à ideologia da integração. »
Sobre todas essas questões de repressão penal, pode-se dizer que não são « os jovens de subúrbio », mas apenas os criminosos. E claro, é necessário implementar dispositivos permitindo a segurança para os habitantes dos bairros periféricos, e lutar contra os atos criminosos como o tráfico de droga. Porém sabemos que o crime, e a ilegalidade em geral, prosperam ao custo dos próprios habitantes am áreas de grande pobreza, de isolamento geográfico, de ausência de serviços públicos de qualidade... Responder a uma situação social e securitária problemática pelo único fato penal (ou instrumentalizando a repressão, nos casos onde os ministros do Interior sucessivos querem fazer desmostrações de força com fins oportunistas) 1) permite desconectar a questão securitária daos assuntos políticos e sociais que no entanto a alimentam, e 2) diz algo da relação colonial que o Estado perpetua em relação aos subúrbios, considerados como lugares particulares onde os cidadãos não são « como toda a gente ». Aliás, a vertente social da resposta à situação dos bairros em dificuldade não se traduziu por um fortalecimento das políticas de direito comum, ou seja, mais serviços públicos de qualidade, em particular as escolas públicas (onde a questão da mistura social foi totalmente esquecida). Para esses territórios, foi criada uma política em particular, a politique de la Ville, dobrada desde 2004 com um orçamento significativo para a renovação urbana. Isso permite à classe política de erguer montantes e despesas destinados aos chamados « bairros prioritários » (quartiers prioritaires), enquanto nunca se age desta forma para as despesas de direito comum nos outros territórios da República – além disso, esquece-se muitas vezes de lembrar que esses valores gastas nos subúrbios não é um « presente », e vem apenas compensar carências e desequilíbrios óbvios.
Os subúrbios das grandes metrópoles, onde se concentram populações racisadas, não são considerados pelas centralidades do poder como territórios « como os outros ». A relação permanece profundamente colonial, e animaliza os seus habitantes, lhes nega a sua humanidade e a sua dignidade. No seu ensaio de 2020, a politóloga Fatima Ouassak dá um exemplo muito emblemático deste fenômeno: a descriancização (désenfantisation) dos jovens de subúrbio. « Quando o sistema dominante olha as nossas crianças, explica ela, ele não vê crianças, vê ameaças para a sua sobrevivência, milhões de pobres, de muçulmanos, de Negros de Árabes que formigam nas escolas e nos colégios de cité. Ele as "descrianciza". » Ela descreve esse processo, o qual « consiste a não conceder nenhuma indulgência particular às crianças pertencendo a um grupo discriminado, a as tratar com tanta violência como faz-se com os adultos deste grupo. São apenas adultos problemáticos em formação, simples problemas a resolver. » Anecdóta muito reveladora deste fenômeno, por lembrança, em 2005, o então ministro do Interior – um chamado Nicolas Sarkozy – propôs num anteprojeto de lei sobre a prevenção da delinquência uma « despitagem precoce das crianças apresentando distúrbios de comportamento », abandonado (diante dos protestos) no texto definitivo adoptado em Fevereiro de 2007. Este anteprojeto mencionava em particular a criação de uma « caderneta de comportamento » suposto identificar e guardar em memória desses signos precoces desde o nascimento até a vida adulta... Num relatório devolvido a Sarkozy em Novembro do mesmo ano, o deputado de direita Jacques-Alain Benisti propunha também « identificar o mais cedo possível as dificuldades dos jovens através da Proteção Materna e Infantil (PMI) e isso, logo a partir da escolinha » e « em ligação com a medicina escolar, além de 6 anos e até a maioria ». Entender: os serviços públicos básicos colocados ao serviço do controlo social da população, inclusive das crianças – um fenômeno que encontra-se regularmente na história contemporânea, no Hexágono como no além-mar.
Nos últimos anos, a repressão do movimento dos Coletos amarelos em 2018-2019, das ações de desobediência civil conduzidas por ativistas ecologistas, ou ainda da marcha feminista do 8 de Março de 2020 em Paris, foram ocasiões, para milhões de cidadãos brancos, de descobrir a existência das violências policiais e a impunidade que as acompanha muitas vezes. Mas para milhões de outras pessoas, não brancas, « racisadas », as « minorias visíveis », essas violências não são novas, tal como o sentimento de um racismo estrutural na sociedade francesa. Esta situação combinando marginalização, controlo e repressão das populações com origens estrangeiras, vem de longe. É o resultado de um assimilacionismo francês que forjou a identidade nacional, desprezando e aniquilando a expressão de qualquer diversidade, de qualquer diferença; assimilacionismo que foi poderosamente fortalecido a partir do século XIX por uma aventura colonial que tinha por alvo impor a supremacia da « civilização francesa ». A postura assimilacionista, em tudo o que ela pode induzir de violência simbólica e de invizibilização da alteridade, parece resforçar a ideia de póscolonialidade na relação do Estado francês às populações imigrantes e ultramarinas. (De uma certa forma, o tratamento dos além-mar franceses, que constituem uma herança do império colonial, prefigura o que se observa há décadas em subúrbios no Hexágono.) Esta situação, globalmente, torna-se possível pela apatia de toda a sociedade, indiferente à miséria de outrem, incapaz de mostrar empatia suficiente para coletivamente questionar as suas certezas e o seu conforto material. É disso tudo que falaremos no próximo capítulo deste artigo.
Para aceder à segunda parte deste artigo: Será a França um país racista? (2/2) As sequelas de uma memória selectiva e de uma cartografia francesa « mutilada »
A Abolição da escravidão nas colónias francesas em 1848, obra do pintor francês François-Auguste Biard realizado em 1848. Dois outros nomes lhe são conhecidos: A Emancipação dos Negros, e Proclamação da liberdade dos Negros nas colónias. Uma análisa, nem que seja breve, deste quadro, basta para entender que a representação daquela altura queria dar aos republicano brancos o lindo papel de « libertadores » dos escravos negros.
O trecho seguinte é extrato de Uma teoria feminista da violência, ensaio de Françoise Vergès publicado em 2020. Ela descreve ai a dificuldade da sociedade francesa a abordar as questões de política pública (em particular as de proteção e segurança) sob o prismo racial – dificuldade que conduz a uma negação do racismo sistémico em geral.
Se diferenças existêm em qualquer sociedade na gestão da proteção, podemos afirmar que o Estado patriarcal e capitalista resforçou as disparidades, as quais foram notavelmente racialisadas. Contudo, em França, é ainda muito difícil estudar e debater publicamente deste impacto em função da raça. Enquanto pesquisas sobre as diferenciações em função da classe são muitas e produziram resultados sólidos, as abordagens baseadas na raça foram negligenciadas. Nesse assunto, só podemos ficar surpreendido com o amplor com o qual as realidades da escravatura são minoradas, reduzidas a um simples ritual de memória, e a colonização considerada sob o prismo exclusivo das representações – enquanto escravatura e colonização são as matrizes da modernidade. Há ai uma negação profunda da maneira como séculos de império colonial, escravista e postescravista, marcaram a sociedade francesa, as suas artes, a sua literatura, as suas leis, as suas organizações políticas, os seus movimentos sindicais, os seus feminismos.
Françoise Vergès, Uma teoria feminista da violência. Para uma política antiracista da proteção (2020).