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O acendedor de lampiões

Será a França um país racista? (2/2) As sequelas de uma memória selectiva e de uma cartografia francesa « mutilada »

2 Février 2022 , Rédigé par David Brites Publié dans #Europa, #História, #Identidade, #Sociedade

Em França, o ano 2020 foi marcado por discussões identitárias inéditas, a cerca das questões memoriais. Após a morte de George Floyd nos Estados Unidos de América, em 25 de Maio de 2020, e na altura de mobilizações antiracistas organizadas em Paris durante o verão pelo coletivo Adama, debates abriam-se para saber se, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, era possível em França pensar o desaparecimento, no espaço público, das estátuas e placas comemorando figuras que participaram, diretamente ou indiretamente, à escravidão e à colonização. Bem longe de levar uma renovação nesse assunto, o presidente da República inscreveu-se então na continuidade de uma ideologia assimilacionista que confunda voluntariamente memória e homenagem, e que associa qualquer perspetiva crítica da história, da narração nacional, ao « separatismo », ao « indigenismo », a uma forma de desconstrução antinacional. Em 14 de Junho de 2020, Emmanuel Macron declarou, numa intervenção pública: « A República não apagará nem um rasto nem um nome da sua história. » E em 4 de Setembro do mesmo ano (dia aniversário da proclamação da Terceira República em 1870) no Panthéon, em Paris, ele acrescentou assim: « A República não desaparafusa estátuas. » Parece que o « romance nacional » herdado do século XIX é um livro sagrado intocável.

Já o tratamos amplamente no primeiro capítulo deste artigo (Será a França um país racista? (1/2) A realidade de um racismo institucional no país dos direitos humanos): as instituições francesas são portadores de uma herança escravagista, colonial e racista, que ainda sente-se com dor. O mito de uma República que teria concedido gradualmente direitos a todos os seus cidadãos, e que, pelo menos desde 1962 e o fim das independências africanas, teria as « mãos limpas », é contradita pelo real. Pelo real da ação dos aparelhos policial, judiciário, carceral. Pelo real dos discursos políticos e da instrumentalização da legislação. Enfim, o mito de uma República « uma e indivisível », reunida a cerca dos valores de liberdade e de progresso, que negaria o racismo e as discriminações, é igualmente contradita pela realidade de uma abordagem assimilacionista da nacionalidade francesa, da educação e da memória, com alvo apagar a diversidade e e tornar o homem branco, adulto, válido e de cultura judeo-cristã, a figura mesma do universalismo francês – um oximoro persistente.

Quem se lembra ainda da marcha do 23 de Maio de 1998, organizada em Paris para virar a luz das comemorações ligadas à abolição da escravidão de 1848 a figura das vítimas do tráfico? Reuniu pelo menos 40 000 pessoas, e teve um papel decisivo no processo que concluiu-se, em Maio de 2001, com a adopção da lei Taubira « tendando ao reconhecimento do tráfico e da escravidão como crime contra a humanidade ». O assunto não era pequeno, pois a República produziu regularmente, desde a revolução de 1789, uma narrativa nacional que esquece a história das lutas antiracistas e antricoloniais, para valorizar unicamente as « grandes datas » nas quais a República permitiu aos povos colonizados de emancipar-se. Contudo, insistindo apenas sobre as grandes datas de abolição, de libertação, de avanço político e social, encena-se uma República « libertadora », neutra de uma certa forma, obviamente bondosa, que teria sempre ido (sozinha, sem ter sido obrigada a o fazer, pelas lutas) no sentido do progresso, que nunca conheceu contradições. Enfim, uma República que rompeu com os seus antigos demoónios escravagistas, colonialistas, e portanto racistas. Esta narrativa ignora voluntariamente a realidade de um racismo institucional, e a dimensão colonial do poder.

Protesto em 13-06-2020 em Paris.

É preciso desconstruir a ideia de ruptura entre a França antes de 1960 (ano das independências de África subsaariana), e a pós-indépendência argelina de 1962. O Estado francês nunca fez um trabalho de desconstrução dos argumentos que servirem a justificar a colonização – pelo contrário, discursos como o de Nicolas Sarkozy em Dakar em Julho de 2007 parecem mais indicar a vitalidade desses argumentos. Quanto à condenação dos crimes da conquista nas Antilhas, na África, em Madagascar, na Indochina, no Pacífico? Quanto à missão civilizadora da França, à aculturação das sociedades africanas, à destruturação dos reinos e fronteiras, das economias locais, dos sistemas de crença indígenas? Quanto, desde 1960, à Françáfrica e ao apoio a ditaduras que preservem os interesses franceses? De fato, após a libertação do território hexagonal em 1944, de Gaulle, e a seguir, os dirigentes da Quarta República, preocupados pelo fato de conservar um império cuja própria existência permitiu de fazer « viver » a França livre, e resistante apesar do fracasso militar de 1940, decidem um reorganização do espaço imperial francês, sem considerar primeiramente a possibilidade da independência oficial das colónias. Essa só será possível após compromissões políticas e económicas com a França – figuras de oposição aos interesses hexagonais, como Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso entre 1983 e 1987, sabem bem disso, e o pagaram às vezes com a vida.

A questão da memória, cuja importância é sublinhada por iniciativas como a marcha do 23 de Maio de 1998, supõe portanto recusar o mito de uma República « libertadora ». No caso do tráfico e da escravidão, consiste em recusar em falar de uma República que libertou os escravos negros, os quais foram supostamente passivos, atentistas. Pelo contrário, a história da luta anti-escravagista revelou-se determinante no processo de abolição. Podemos em particular mencionar a insurreção de Haiti a partir de 1791 (em eco da qual a República revolucionária aboliu uma primeira vez a escravidão, em 1794), central na longa história da luta para a libertação dos povos afrodescendentes, mas também a revoltas dos marrons, os escravos em fuga – um fenômeno que tomou um certo amplor considerável em várias colónias europeias nas Américas, em particular no Brasil com os Quilombos (Brasil: crônicas das resistências negras). De uma certa maneira, a estratégia da marcha de 1998, levada por muitas associações memoriais ou aitracistas, tem pouco a pouco resultados, como pude o ilustrar, em Setembro de 2020, a decisão da presidente da Câmara municipal de Paris, Anne Hidalgo, de instalar, no centro da cidade, pela primeira vez, a estátua de uma mulher negra, representando a Guadelupeana Solitude, figure das resistência dos escravos, falecida em 1802. Mas esse tipo de iniciativa, por forte e simbólico que seja, ilustra pela sua raridade o atraso a recuperar em termos de memória das lutas e dos sofrimentos, de reabilitação dos grandes nomes da resistência ao racismo e à opressão.

Esta realidade – uma história seletiva, concentrada nas grandes datas « institucionais » – não é, obviamente, por acaso: a nenhum momento, os potentes escolherem, sem serem obrigados, pela sua própria iniciativa, de reduzir o seu poder ou as suas riquezas. A maioria das vezes, eles acomodam-se com arranjos marginais, reorganizando simplesmente o seu sistema de dominação. Destacar datas que encarneriam « rupturas » tem portanto como alvo negar a continuidade entre a situação colonial e o presente. Porém, o sistema da escravidão e a colonização formataram totalmente o nosso imaginário coletivo e impactaram as relações económicas e sociais capitalistas contemporâneas: desde a militarização dos mares até a predominância das línguas europeias (francês, inglês, espanhol, português...) em quase todos os países do planeta, passando pelo direito internacional moderno de propriedade das terras e dos recursos naturais, a influência desta história foi determinante e permanece viva.

Datas que podem parecer rupturas históricas devem portanto ser objeto de uma leitura crítica. A questão da abolição da escravidão é um bom exemplo disso. A de 1848, definitiva, proclamada pela Segunda República, serviu de base argumentativa para justificar a aventura colonial. A França proclamava-se desde então, na segunda metade do século XIX, defendedora da libertação dos povos africanos, onde reinavam, dizia-se, o obscurantismo e a barbárie. Quantos aos interesses económicos ligados ao tráfico e à escravidão, nas colónias francesas como nas Américas, toda a gente saiu proveitoso, do lado dos grandes proprietários terrianos. No seu ensaio A barriga das mulheres, publicado em 2017, a politóloga e feminista Françoise Vergès voltou assim a proposta do sistema dos engagés, Indianos, Africanos, Chineses e Malgaxes contratados pelo Estado francês no século XIX (o império colonial britânico teve um mecanismo similar) para substituir a mão de obra escrava em La Réunion; esse sistema cresceu consideravelmente após a segunda abolição de 1848. « O engagement, escreve Vergès, é uma das etapas da organização ao nível mundial de uma mão de obra móvel, de género e racializada ao serviço dos interesses coloniais e imperialistas. » Enfim, substitui-se aos escravos libertos uma mão de obra móvel e explorável, a maioria das vezes reduzida à miséria. Um cenário que prefigurava a transição entre era colonial e globalização livre-cambista.

Os territórios ultramarinos são os grandes esquecidos da narrativa nacional francesa, a qual cria esse mito de uma República libertadora. Num ensaio desta vez publicado em 2020, Uma teoria feminista da violência, Françoise Vergès tenta a explicação seguinte: « As reconfigurações realizadas pelo Estado para preservar os seus interesses e os do capital produzirem inevitavelmente uma história mutilada e uma cartografia mutilada; em outras palavras, uma história que não toma em conta as interações e os cruzamentos, que apaga ou ignora momentos inteiros e desenha espaços onde o tempo parece passar de maneira imutável, onde reinaria a tradição e viveriam comunidades fechadas nelas mesmas, e cujos habitantes seriam à espera da modernidade. Esta história é amputada das vidas de milhares de mulheres e de homens, e esta cartografia mutilada é que legitima a retirada do espaço republicano no Hexágono. » Há muito tempo, em França, constrói-se uma forma de vedação entre as narrativas históricas dos além-mar e o Hexágono, como se os abusos racistas e colonialistas nos primeiros eram totalmente desconectados do que se passava na Europa. Como se os dois não constituíam as duas faces de uma mesma moeda, como se não fossem constitutivos da mesma narrativa.

Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.
Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.

Praça do Général Catroux, no XVII° arrondissement em Paris. Ao lado da estátua de Alexandre Dumas, escritor francês mulato (nascido de um pai originário de Santo Domingo, general durante a Revolução francês), o jardim Solitude foi inaugurado pela presidente da Câmara municipal de Paris Anne Hidalgo em 26 de Setembro de 2020, num lugar que simboliza o fim da escravidão. O nome refere-se à Mulâtresse Solitude, figura da resistência na Guadeloupe quando foi restaurada a escravidão em 1802. Um monumento a representando é suposto ser erguido ai desde então, para tornar-se a primeira estátua de mulher negra na capital francesa.

Os territórios ultramarinos, ao mesmo tempo ferramentas de potência e grandes esquecidos da narrativa nacional

Ficamos no caso dos territórios ultramarinos, emblemático, em muitos aspetos, da pegada do racismo até nas instituições da República. De fato, apesar a maioria são hoje em dia organizados em départements ou autarquias, convem lembrar a herança colonial que representam (em si) esses territórios, como a Guyane, a Guadeloupe, Mayotte, ou ainda a Polynésie francesa – para a qual, aliás, a ONU adoptou em 2013 uma resolução sobre a sua « descolonização ». O paradoxo dos além-mar é que são ao mesmo tempo negligenciados pelos dirigentes de uma República « uma e indivisível », e parte integrante do sistema de influência e de potência da França no mundo.

No seu ensaio de 2017, Françoise Vergès, ainda ela, explica porqué, após a Segunda Guerra mundial, apareceu determinante aos olhos dos dirigentes da Quarta República, e depois ao presidente Charles de Gaulle e ao seu Primeiro ministro (até 1962) Michel Debré, conservar os além-mar. Esses territórios constituirem para a França uma peça chave, a sua garantia de manter-se em todos os oceanos e em espaços estratégicos: « Quando os movimentos de independência reduzem o espaço imperial, a República reencarna-se em potência mundial. » De uma certa forma, a aquisição da arma nuclear pela França seguirá o mesmo objetivo. « Os além-mar iam portanto, ela continua, permitir ao Estado de beneficiar de portos de relé, de manter uma potência militar em todos os oceanos, de sentar-se em todas as instituições regionais, de continuar a beneficiar de terras de emprego para funcionários, científicos e militares franceses, e de assegurar mercados captivos para as grandes companhias francesas de distribuição, de transporte e de construção. Para fortalecer a sua dependência em relação à França, o Estado bloqueia as relações que o além-mar entretêm ainda com os seus países vizinhos. Uma grande parte da classe política francesa partilha esta visão de uma "grande França" e adere à forma como o espaço republicano reconfigura-se. » Aplica-se logo uma política já tentada na Argélia até então: « assimilação, modernização tecnocrática, paternalismo e economia ao serviço da França », isso tudo dobrado durante muito tempo com uma censura local em relação a qualquer obra, livre como filme, denunciando o imperialismo da metrópole. O lugar da França é transtornado: os além-mar oferecem-lhe o segundo espaço marítimo do mundo pela sur superfície – quase 11 milhões de km² (fora da extensão jurídica da plataforma continental) –, e fronteiras marítimas com uns trinta paises. A mais longa fronteira terrestra da França não deixa de ser a que separa a Guyane do Brasil!

Apesar da sua importância, os além-mar são longe, ainda hoje, de beneficiar de uma situação vantajoso na República. O seu modelo económico (herdado de uma economia de plantação virada em direção da metrópole), a precaridade das infra-estruturas, de certos serviços públicos, e sobretudo dos seus habitantes (que a crise de COVID-19 vei ilustrar, com a impossibilidade de muitos de respeitar as regras de confinamento, em particular na Mayotte onde o nível de pobreza e a ausência se serviços públicos básicos são preocupantes), o seu lugar na narrativa nacional francesa... tudo contribui à sua marginalização política, económica e cultural, perpetuando uma realidade colonial marcada pela predação dos recursos ao benefício da França hexagonal. Fora de eleições ou referendos pontuais sobre o seu estatuto administrativo, o peso eleitoral desses territórios à escala da França é marginal, e aliás, poucos candidatos à eleição presidencial insteressam-se realmente neles e vão lá; a sua história não aparece nos programas escolares; as línguas crioulas não são em nada reconhecidas; e os seus recursos são explorados sem consideração dos desejos das comunidades indígenas. Os exemplos são muitos e a maioria das vezes permanecem ausentes das mídias. Entre Junho de 1995 e Março de 1996, é na Polynésie que a França recomeçou os seus testes nucleares – após ter feito no deserto argelino um lugar de experimentação entre 1960 e 1966. Mais recentemente, o uso massivo de clordecona nas bananais de Guadeloupe e de Martinique entre 1972 e 1993, foi revelado e indignou as populações locais, este insecticida sendo acusado de provocar muitos cancros da próstata ao custo dos habitantes desses dois départements. Cereja no bolo, no escândalo do clordecona, em Janeiro de 2021, o tribubal de grande instância de Paris, tratando uma queixa para « posta em perigo da vida de outrém » depositada em 2006(!), anunciou que o caso tinha potencialmente ultrapassado o prazo de prescripção, e não podia, portanto, ser julgado... Porém é por causa, unicamente, da lentidão dos tribunais que se explica este intervalo entre o depósito da queixa e o seu tratamento.

Protestos em 2020-2021 em Nouvelle-Calédonie à volta das questões de controlo local da exploração mineira de níquel, exploração ilegal das minas de ouro por garimpeiros em Guyane, e exploração legal que cria também poluição, etc. Vemos bem, com todos esses exemplos, que, nos além-mar, o desafio do açambarcamento das riquezas (mineiras, agrícolas, piscícolas...) por interesses privados, das elites brancas locais, hexagonais ou estrangeiras, consagra a continuidade das relações de poder herdadas da colonização. Localmente, as comunidades não têm outra escolha que organizar-se para conduzir as lutas e vencer. Longe de inscrever esses países no seu ambiente regional, até o seu modelo económico permanece totalmente integrado à metrópole, numa relação que marca uma clara continuidade com o sistema colonial. Enfim, logo que é admitida a configuração colonial das relações entre o Estado e os além-mar, parece complicado recusar a dimensão racista da organização territorial francesa, e do olhar hexagonal sobre as populações ultramarinas.

Certamente, graças a um sistema de perequação com alvo reduzir as desigualdades territoriais, eles são numa situação menos pior do que os seus vizinhos das Antilhas, polinésios e do oceano Índico. Além disso, a metrópole pode não ser a única em causa nos disfuncionamentos das suas economias. Mas o princípio de igualdade, no âmbito da República, não pode satisfazer-se do « mal menor », ou de uma comparação com os países vizinhos do Sul: é a comparação com os territórios de França continental que prevalece, e deste ponto de vista, há muito para dizer. Aliás, a dependência dos ultramarinos em relação à metrópole não é por acaso, pois ela foi pensada logo após a Segunda Guerra mundial para assegurar a continuidade do sistema colonial. Sim, esses territórios custam muito dinheiro à República, mas ela paga assim, de uma certa maneira, o custo do suplemento de poder que eles lhe trazem  de fato – e nem é seguro se, a final, eles é que ganham nesta troca.

Esta dependência, esta vulnerabilidade, serve os interesses do Hexágono, assegurando um modo de controlo sobre as populações em questão. No seu ensaio de 2017, Françoise Vergès dá uma exemplo muito ilustrativo: o da lei de Julho de 1893 que criou a Assistência médica gratuita (AMG) permitindo aos doentes os mais pobres de beneficiar de um acesso gratuito à saúde. Só foi aplicada nos além mar apó uma lei de Março de 1946, e lá, tornou-se finalmente « um instrumento de governamentalidade »: « distribuida pelos municípios, pelos médicos, ela [contribuiu] recompensar ou punir as famílias ou a assegurar a sua dependência ». Ainda recentemente, no início de 2021, fotos circularam nas redes sociais virtuais, provocando debates, porque mostravam dirigentes de administração pública e altos-funcionários Guadeloupe, Martinique, Guyane, La Réunion e Nouvelle-Calédonie, todos brancos e originários do Hexágono. Uma situação voluntariamente orquestrada e desejada pelo Estado francês, o qual quer impedir qualquer subida de um soberanismo local e de uma capacidade de gestão indígena – uma doutrina pensada em 1946, e que vem confortar a dimensão colonial da relação entre Hexágono e além-mar, a qual não foi apagado pelo princípio de départementalisation. Aliás, constata-se com os metropolitanos que instalam-se nos além-mar comportamentos de « expatriados » morendo de maneira isolada, tal como isso se observa com os expatriados ocidentais na África. Enfim, fenômeno muitíssimo ilustrativo também, a polémica das fotos, que deu luz à ausência de indígenas na alta função pública local, não foi em nada mencionada nas grandes mídias hexagonais.

Monumento erigido em Drancy, em Seine-Saint-Denis, perto de Paris, em memória da abolição da escravidão. Inaugurada em 23 de Maio de 2006, esta estátua, réplica daquela da ilha de Gorée, no Senegal, é a obra de Jean e Christian Moisa.
Monumento erigido em Drancy, em Seine-Saint-Denis, perto de Paris, em memória da abolição da escravidão. Inaugurada em 23 de Maio de 2006, esta estátua, réplica daquela da ilha de Gorée, no Senegal, é a obra de Jean e Christian Moisa.
Monumento erigido em Drancy, em Seine-Saint-Denis, perto de Paris, em memória da abolição da escravidão. Inaugurada em 23 de Maio de 2006, esta estátua, réplica daquela da ilha de Gorée, no Senegal, é a obra de Jean e Christian Moisa.
Monumento erigido em Drancy, em Seine-Saint-Denis, perto de Paris, em memória da abolição da escravidão. Inaugurada em 23 de Maio de 2006, esta estátua, réplica daquela da ilha de Gorée, no Senegal, é a obra de Jean e Christian Moisa.

Monumento erigido em Drancy, em Seine-Saint-Denis, perto de Paris, em memória da abolição da escravidão. Inaugurada em 23 de Maio de 2006, esta estátua, réplica daquela da ilha de Gorée, no Senegal, é a obra de Jean e Christian Moisa.

Um imaginário coletivo etnocentrado e profundamente racista

A questão da memória coletiva, a qual volta regularmente no debate político, revela uma herança colonial com a qual a nossa sociedade não rompeu totalmente – e diante daquela ela prefire negar, tentando justificar o que não se pode justificar... Um projeto de lei, adoptado pela Assembleia nacional em 23 de Fevereiro de 2005 e « levando conhecimento da Nação e contribuição nacional dos Franceses retornados », indignou, porque consistiu em uma tentative de valorizar aspetos positivos à aventura colonial. Detelhava no seu artigo 4 que « os programas escolares reconhecem em particular o papel positivo da presença além-mar, em particular na África do Norte, e concedem à história e aos sacrifícios dos combatantes do exército francês vindo desses territórios o lugar eminente ao qual eles têm direito ». A própria existência deste projeto de lei, considerando possível um a leitura « positiva » da colonização (uma iniciativa imperialista, intrinsecamente racista, e que significou um colapso sistémico para sociedades inteiras), é ilustrativo do preconceito racista adoptado por muitos políticos. A ideia que a construção de infra-estruturas, de hospitais e de escolas, constitui um cocktail de elementos positivos ligados à colonização, retoma a lógica argumentativa pró-colonial do século XIX: ela é baseada na noção de « atraso » das sociedades africanas, asiáticas e oceánicas, e portanto numa abordagem linear da História da humanidade – na qual, obviamente, o Ocidente seria « à frente » em relação às outras civilizações, pois ele domina o progresso técnico (embora ele destroi o seu ambiente e deestrutura os tecidos económicos e sociais tradicionais). O postulado é que as sociedades colonizadas, longe de terem visto as suas culturas, os seus saberes, as suas línguas, a sua dignidade pisados, nem tinham isso tudo. E que de uma certa forma, para retomar as palavras do presidente Nicolas Sarkozy em Julho de 2007 em Dakar, os povos indígenas não « entraram na História ». A ajuda pública ao desenvolvimento, a qual provoca tão poucas críticas fora de certos microcosmos, responda, hoje em dia, à mesma lógica, segundo a qual os paises europeus, já « desenvolvidos », devem apoiar os paises dos Sul numa busca (provavelmente eterna, pois ninguém nunca fala da sua conclusão) do desenvolvimento (Frente ao fiasco da ajuda pública ao desenvolvimento, para quando a sua desprogramação?).

Esta leitura linear da História não é por acaso. Tem necessariamente consequências sobre a percepção que a sociedade francesa tem, no seu conjunto, dos Franceses afrodescendentes e das suas sociedades de origem, que a colonização destrusturou. A postura a mais frequentemente observada sendo a do desprezo. Desprezo que permite a uma maioria de cidadãs e de cidadãos (brancos), há décadas e ainda hoje, tolerar a situação de muitos subúrbios metropolitanas onde foram concentradas populações imigrantes, onde as conexões em termos de transportes públicas são às vezes catastróficas, onde os serviços públicos faltam, onde isolamento e pauperização rimam com ausência de perspetivas, e onde, com um terreno tão fértil, a questão da insegurança é significativa. A ideia que as pessoas já deveriam satisfazer-se da sua situação e da generosidade da República é forte, e diz muito do olhar que é levado sobre eles.

Esta leitura da História tem também, claro, consequências sobre a percepção que os cidadãos e cidadãs de origem extra-europeia têm deles mesmos, das sociedades de origem dos seus pais, e da sociedade francesa. Em particular para cidadãs e cidadãos negros, de origem africana ou das Antilhas, dado o imaginário particularmente negativo à volta da condição negra desde os choques históricos que constituirem a partir do século XVI o tráfico negreiro transatlântico, e a colonização. Pois a narrativa memorial levada pelas mídias, a classe política, as artes, ou ainda a escola, conforta ainda amplamente uma visão racista da nação francesa. Visão confortada também por fatos muitos concretos, como o controlo policial baseado na cor da pele (contrôles au faciès), as estratégias de evitamento das escolas públicas de subúrbio pelas classes médias que moram lá, ou ainda a falta de serviços públicos em certos bairros. No seu livro A potências das mães (2020), Fatima Ouassak lembra: qualquer iniciativa, qualquer postura dos habitantes racisados dos subúrbios é visto com receios, suspeitada de servir formas de separatismo, indigenista ou islamista... Qualquer revolta dos subúrbios é vista como « motins », necessariamente injustificados, participando de uma suposta « enselvagização » (ensauvagement) da sociedade. Não se quer Negros ou Árabes visíveis, devem ser assimilados, e portanto invisíveis. De fato, evoluimos numa sociedade onde o Branco é a figura do « universal » – o que o ensaio coletivo Negra não é o meu emprego, publicado em 2018 à iniciativa da atora Aïssa Maïga, descreveu muito bem, em relação à atribuição dos papéis. Uma sociedade onde amadores de Harry Potter chocam-se nas redes sociais virtuais quando vêem uma jovem Britânica negra interpretar a personagem de Hermione no teatro. Onde amadores de James Bond indignam-se com a perspetiva de uma atriz ou um ator negro como agente segredo 007, mas onde ninguém fica surpreendido pelo fato que o autor Gérard Depardieu pode, no filme O Outro Dumas em 2010, assumir o papel do  escritor Alexandre Dumas cujo pai era, porém, mulato.

Até o conteudo pedagógico dos promramas escolares são marcados por uma leitura etnocentrada: da África, o ensino de História trata quase só, uma vez estudado o declínio o Império romano e a expansão muçulmana, do tráfico negreiro transatlântico a partir do século XVII e da colonização a partir do século XIX – os continentes asiáticos e americanos não são longes de ser abordados de maneira tão redutora. Um cidadão de origem africana ou das Antilhas esteudará portanto a história da África pelo único prismo desses dois mecanismos de desumanização e de dominação, ou seja, a escravidão e a colonização. Dois mecanismos que personalidades políticas « inteletuais » omnipresentes nas mídias tentam regularmente, ou de relativizar (lembrando que existiu também um tráfico intra-africano e arabo-muçulmano... um fato que ninguém nunca negou), ou de desculpar (identificando aspetos « positivoss » à colonização). Até autores das Antilhas e africanas, contudo numerosos, de qualidade e levadores de inovação na âmbito da francofonia e da reflexão política, nem são abordados em literatura, desde a escola primária até o décimo segundo.

Pode-se responder que qualquer cidadão, antes de aprofundir reflexões introspetivas sobre a da terra de origem dos seus ancestrais, deveria primeiramente apropriar-se a história de França e os seus « heróis ». Mas esta exigência traduz uma ausência de qualquer recuo em relação à leitura da própria história de França, a qual não foi objeto de um trabalho de « descolonização ». O tempo histórico da colonização é oficialmente acabado. Porém, nas mentalidades, no inconsciente coletivo, ainda não descolonizamos totalmente os nossos imaginários, as nossas maneiras de olhar o outro, e a maneira de pensar-se francês em reação ao mundo. Por isso, esse trabalho ainda fica para fazer no tempo pós-colonial, e é preciso o continuar para sair do que foi o imaginário dominante na sociedade francesa desde séculos. Deve-se elogiar os sucessos militares ou as realizações políticas de um Napoléon Ieiro, o qual restabeleceu a escravidão em 1802 na Guadeloupe e em Saint-Domingue? Deve-se identificar aos grandes homans da Terceira República, os quais lançaram o país na aventura colonial, ou aos da Quarta República que assumirem uma guerra contra as indenpendências em Indochina ou na Argélia? Sobretudo, será que podemos desculpar ou valorizar um Estado que mantém relações assimétricas e de dominação (política, económica e cultural) com o seu antigo espaço colonial? Entende-se bem que é uma postura difícil, cheia de contradições, ainda mais para uma cidadã ou um cidadão com origens africanas ou das Antilhas. Claro, ser francês, é reapropriar-se toda a história de França, as suas páginas sombras como as gloriosas. Mas por isso, é preciso definir o que entede-se por « sombro » e por « glorioso ». Em nenhum caso, trata-se de glorificar o passado nacional sem nenhuma leitura crítica. Pelo contrário, é a honra de França, poder levar um tal olhar sobre o seu passado escravagista e colonial, e poder ainda progredir em termos de tolerância e de igualdade, oferecendo um âmbito de reflexão e uma liberdade de expressão que permitem o fazer – inclusive para questionar páginas muito tempo descritas como gloriosas, por exemplo a inteligência colocada ao serviço da guerra e do imperialismo.

O paradoxo, que constitui de fato uma oportunidade para o futuro, reside na concepção republicana da nacionalidade francesa, na qual a pertença étnico ou cultural, teoricamente, não entra en conta para o acesso à nacionalidade, aos direitos e aos serviços públicos. A base ideológica herdada do pensamento revolucionário deve permitir construir uma cultura antiracista sólida e maioritária, mas é desviado pelo defendedores de uma leitura identitária da nação. Para esses, a herança judeo-cristã e a preeminência de uma população branca maioritária são caraterísticas imutáveis do Hexágono (a polémica recente sobre os nomes de origem estrangeira, que prevalece pouca a pouca sobre os do calendário cristão, é uma perfeita ilustração), e servem-se disso para justificar o tabu a cerca da questão racial – seguindo uma lógica muito kafkeana, segundo a qual o racismo não existe num país que não reconhece oficialmente as identidades raciais, embora o dia a dia de milhões de cidadãs e cidadãos lhes faz lembrar regularmente a sua origem e a cor da sua pele. De uma certa maneira, a injunção feita aos jovens Franceses com uma filiação imigrante, porém nascidos em França, a vergar-se ao princípio de assimilação, constitui uma negação de qualquer diversidade. Ela inverte as responsabilidades, sub-entendendo que são os habitantes dos subúrbios que, no fundo, não querem integrar-se.

Será a França um país racista? (2/2) As sequelas de uma memória selectiva e de uma cartografia francesa « mutilada »

O modelo assimilacionista republicano: apagar a diversidade, entreter o mito de uma nação culturalmente homogénea

Além do racismo, é a questão de empatia que temos que formular, a da solidaridade. Como qualificar uma sociedade que tolera o falecimento de centenas de pessoas na rua cada ano, em maioria estrangeiros (segundo o coletivo Mortos na Rua)? Como qualificar uma sociedade na qual um cidadão francês ajudando um migrante clandestino expõe-se, em certos casos, a uma condenação de justiça? Como qualificar ma sociedade cuja grande maioria dos cidadãos desinteressem-se de saber que milhares de migrantes morrem cada ano no Mediterrâneo? Uma socieda onde prosperam os tráficos de mulheres migrantes? Uma sociedade cujas empresas privadas (e é considerado como uma honra, um orgulho, um sinal de potência!) vão explorar povos através o planeta, destruindo os modos de vida, o meio ambiente, as estruturas de organização social? Em 23 de Novembro de 2020, as forças da ordem explusaram manu militari da praça da República, no centro de Paris, migrantes ilegais instalados lá para alertar sobre a sua situação dramática. Pois eles estavam sem solução de alojamento após a evacuação, uns dias antes, da acapamento onde muitos deles dormiam, em Saint-Denis (Seine-Saint-Denis). As imagens de tendas abaladas, de migrantes perseguidos (gás lacrimogênio à mão), de brutalidade gratuita, chocaram muita gente. Porém é bem a falta de empatia, a desumanização dos migrantes, é que estão em causa aqui. Pois vidéos amadores mostraram depois como grupos desses infelizes foram « acompanhados », de noite e no frio, até a Seine-Saint-Denis, sem lugar ficar em particular. Enfim, a miséria e o desespero de pessoas racisados e desumanizadas não incomadem enquanto esses permanecem invisíveis, zenviados do outro lado do periférico de Paris, longe dos lugares de poder e o centro abastado da capital. Como qualificar uma sociedade que torna isso possível?

Como qualificar, ainda,uma sociedade onde tantos empregos ingratos e mal remunerados são ocupados por migrantes, o que apareceu óbvio durante a crise do COVID (A crise do COVID-19 será a ocasião de reconsiderar os empregos invisíveis à luz de sua verdadeira utilidade?)? Uma sociedade na qual não há pessoas racidasas, ou tão poucas, nas áreas de poder (político, económico)? Uma sociedade qua denuncia o comunautarismo de um grupo de pessoas de origem norte africana, ou subsaariana, mas não um grupo composto exclusivamente de pessoas brancas? Uma sociedade onde o véu provoca mais indignação do que a condição de milhões de trabalhadores pobres e a persistência de uma desemprego de massa? Um país onde a proibição penal das discriminações ao recrutamento ou ao alojamento não basta a acabar com esses fenômenos? No qual um jovem pode morrer numa interpelação policial, sem que ninguém assuma a responsabilidade do drama? Um país no qual são cometidos todos os anos centenas de atos contra os Judéus, contra os muçulmanos, contra os cristãos, e racistas ou xenofóbicos?

À questão do racismo e à herança colonial, acrescenta-se uma indiferença generalizada à miséria de outrém, numa sociedade apática cujo substrato burguês não pretende questionar as suas certezas e ainda menos o seu conforto material – um conforto por parte tributário da exploração de recursos naturais no continente africano. Os protestos antiracistas, ou os atos de solidaridade ativa com as pessoas vítimas do racismo ou com estrangeiras em necessidade, permitem relativizar as coisas, mas a sua própria existência confirma a existência de um racismo ordinário dominante. Por lembrança, segundo o relatório da Comissão nacional consultativa dos direitos humanos para o ano 2017, um terço (33%) das pessoas interrogadas no âmbito do seu barómetro anual afirmava ter sido vítima de comportamentos racistas nos cinco últimos anos. Além disso, 60% dos pesquizados estimavam que todas as raças humanas valem-se, e uns 9% que existe raças superiores às outras – apenas 30% reconheciam que as raças humanas não existêm, embora é uma realidade biológico reconhecida atualmente. Igualmente, 47% estimavam que « hoje em França, não se sinte mais no seu país como antes », e 54% que « há demasiado imigrantes em França ».Este sentimento, embora deve ser ouvido para entender o constrangimento de muitos cidadãos, deve também ser analizado à luz do princípio de assimilação que impôs-se desde a Terceira República como o pilar do modelo de integração francês – e que é muitas vezes oposto ao sistema comunautarista. A ideia por trás: os imigrantes devem « assimilar-se » à cultura francesa, ou seja, abraçar os códigos e os modos de vida « à francesa ». Exprimir-se em francês, apropriar-se a história de França e os seus « heróis », consumir e promover a culture, a comida, a literatura, a mósica francesas, vestir-se à moda ocidental, dar um nome francês (entender: presente no calendário cristão), etc.. A teoria da « Grande substituição » nasce precisamente do sentimento que os imigrantes e as suas crianças, tornando pouco a pouco maioritários pelo fato dos fluxos entrandos e de uma demografia galopante, recusam-se agora a simplemente assimilar-se, e perpetuam práticas culturais estrangeiras à França – e primeiramente a prática do islão.

O pincípio de assimilação é problemático por pelo menos duas razões. Primeiro, baseia-se numa visão estática da sociedade francesa, e em particular da sua herança judeo-cristã. Segundo, é pedido aos migrantes e aos seus descendentes de esquecer a bagagem cultural do seu país de origem, como se as pessoas fossem cascas vazias. Esta abordagem contribui ao mal-estar identitário de muitos cidadãos com filiação imigrante, desvalorizando ou ocultando a sua cultura de origem – enquanto esta poderia ser identificada positivamente, como o enriquecimento de uma cultura francesa com raizes diversas. As Turmas de Initiação para Não Francófonos, implementadas a partir de 1968 para acolher as crianças recém-chegados em escolas primárias – e tornadas desde 2012 as « Unidades pedagógicas para alunos alófonos chegantes » – foram particularmente emblemática deste mal-estar, pois os alunos eram convidados e não mencionar a sua cultura ou país de origem, como descreve a autora Maryam Madjid, de origem iraniana, na sua obra autobiográfica Marx e a boneca, publicado em 2017. E além disso tudo, pode-se notar que, ironicamente, e bem longe da lógica assimilacionista, as comunidades francesas morando no estrangeiro, em particular em países africanos e asiáticos, não são conhecidos pelo seu esforço de integração e de assimilação às culturas locais. Até durante a colonização, os cidadãos franceses, longe de adaptar-se às sociedades onde instalavam-se, procuraram sobretudo impor os seus códigos culturais, evitando misturar-se demais com os indígenas.

A França faltou a oportunidade de construir o seu projeto republicano com base a diversidade. Faltou a oportunidade de dotar-se de (ou pelo menos de valorizar) gerações bilínguas francês-árabe, francês-português, francês-russo, ou ainda francês-chinês, capazes de ir conquistar mercados no estrangeiro, de criar pontes entre as sociedades, de servir mais eficientemente a diplomacia francesa e de mostrar uma imagem mais aberta da nação. Em vez disso, constate-se uma imagem de sociedade esclerosada, crispada, onde as polémicas são regulares: contra os Roma, contra as pessoas de origem subsaariana ou norte-africana, e sobretudo contra os muçulmanos (perpetualmente suspeitados de proximidade com os terroristas islamistas). Isso, numa França vista (legitimamente) como uma potência neocolonial, acusada de ingerência política e económica nas suas antigas colónias, e nas quais ela entretem a maioria das vezes bases militares e intervem às vezes ativamente para apoiar regimes corruptos e autoritários – conta-se pelo menos dez intervenções francesas (sob diversas formas) em África e no Médio-Oriente, apenas na década de 2010: Afganistão, Costa de Marfim, Líbia, Mali, Centráfrica, Síria, Níger...

Protesto em 13-06-2020, em Paris.

Polémicas a cerca das « reuniões não mistas »: o arte de inverter o sentido das discriminações

Em França, a realidade do racismo é muitas vezes reduzida a atos individuais, malévolos e odiosos, mas, pior, é dito aos que denunciam o racismo ou o analizam, que eles é que o alimentam, adoptando um prismo racial na sua grelha de análise. Inverte-se portanto o sentido das discriminações. As reações às polémicas ligadas ao racismo ou às discriminações são frequentemente hóstis, conservadores, crispadas.

Um outro assunto, bastante sintomático deste fenômeno, e que, além disso, ilustra bem a falta de empatia em relação aos cidadãos e cidadãs racisadas, é o das reuniões não-mistas, qualificadas de « racistas » por muitas pessoas, porque elas excluiriam as pessoas brancas. Primeiro, é estranho não entender que, na Europa, esses tempos são tornados necessários, justamente, por um sistema de representações coletivas e de poder que inibe demasiadas vezes a palavra das pessoas vítimas de discriminações. O espaço público já tem como efeito excluir amplamente as pessoas racisadas, as mulheres, as pessoas deficientes... A ideia dos espaços não mistas não é « excluir » as pessoas não minorizadas, os homens ou as mulheres, mas criar contra-espaços públicos nos quais as pessoas minorizadas teriam o monopólio da palavra, partilhariam em toda liberdade a sua experiência de discriminação e entenderiem-se sobre estratégias ativistas nas quais seriam líderes. Para entender esta importância das reuniões não mistas, é preciso admitir que a simples presença de pessoas que não partilham as discriminações abordadas (ou que as praticam às vezes, conscientemente ou não), pode inibir a palavra. Esse tipo de reuniões pode ter virtudes psicológicas que cada um pode entender. Já se conta reuniões exclusivas, como os grupos de antigos alcoolicos anónimos, ou de mulheres vítimas de violências. Cada um pode entender o interesse de tais reuniões e ninguém as descreve como reuniões « proibidos aos outros ». Da mesma forma, entende-se que pessoas deficientes querem trocar juntas sobre o seu sentimento paritlhado de marginalização, ou sobre as restrições do dia a dia de uma sociedade com normas e representações ainda amplamente validistas – sobretudo se elas estimam que pessoas validas não entendem as suas trocas e que a sua simpatia seria vista como piedade, inibindo assim a palavra.

Isso tudo, guardando em memória que esses tempos exclusivos acompanham-se sempre de trocas e de lutas mistas. Os dois, espaços mistas e não mistas, não opõem-se. Ninguém diz que os problemas de discriminação ou as desigualdades podem resolver-se sem associar os que não sofrem. Mas os dois não têm o mesmo objetivo. E fazer-se o aliado dos publicos minoritários e discriminados, é também « aguentar » para lhes permitir ter esses espaços se eles precisam (e por lembrança, todos não precisam).

Outro fenômeno com uma tentativa de inverter o sentido das discriminações: a existência suposta de um racismo anti-Brancos. O próprio princípio considerar como iguais preconceitos e palavras odiosos ou estimatizantes em relação aos Brancos e aos não-Brancos, num sistema global onde o poder político, económico e cultural está nas mãos de Brancos (e sobretudo de uns homens brancos), questiona. Mesmo se um cidadão identificado como Branco receve insultos num bairro onde ele é minoritário, por exemplo em Seine-Saint-Denis, essas comparações não deixam de ser irrelevantes, totalmente assimétricas. Dado o nível de pobreza, de marginalização, de sub-emprego, que conhece um território como a Seine-Saint-Denis, ficamos perplexo diante deste argumento que considera como um privilégio das pessoas racisadas o fato de poder morar e trabalhar num território comum perfil tão pouco atraente. Além disso, os atos ou os sentimentos de ódio que podem às vezes afectar as pessoas brancas não são alimentados por preconceitos que os colocam em posição humiliante. Longe de ser considerados como preguiçosos, violentes, estupidos ou ignorandos, os Brancos podem ser detestados em meios não-brancos e pauperizados porque são identificados (não sempre legitimamente) como os representantes do poder, ricos, instruidos e beneficiando de facilidades escolares e profissionais.

As pessoas que falam de racismo anti-Brancos usam esta expressão no seu sentido o mais restrito, ou seja, como o ódio das pessoas brancas; contudo, o racismo constitui um sistema de dominação e de discriminações que exclui as pessoas racisadas da universalidade, pedindo a ela um esforço redobrado para assimilar-se à maioria branca de cultura judeo-cristã – e portanto, de uma certa maneira, para apagar-se. A lógica pode comparar-se no contexto da luta contra o sexismo. Na luta feminista, muitos estimam que não é correto falar de discriminações feitas aos homens, porque as coloca no mesmo plano do que as feitas às mulheres, enquanto o sistema patriarcal serve, globalmente, um poder masculino. Porém os homens sofrem também de preconceitos, de expectativas em termos de masculinidade e de performances, e vêem-se limitados no acesso a certos empregos (na área da infância e do cuidado por exemplo). Ativistas feministas prefirem portanto a noção de « efeitos da dominação masculina ». Da mesma forma, é provavelmente mais justo de falar de « efeitos da dominação branca » quando pessoas brancas são vítimas de preconceitos anti-Brancos.

Desenhas supostos representar dois inteletuais, Rokhaya Diallo e Jean-Loup Amselle, no jornal francês Le Monde em 11 de Julho de 2014. O diário, conhecido pela sua linha editorial de centro-esquerda, publicou naquele dia uma conversa, um debate entre os dois mesmos; contudo, a representação de Sra Diallo é claramente assimilável a uma caricatura com conotação colonial. Ela exprimou naquela altura o seu mal-estar em relação ao desenho, foi-lhe respondido, nas redes sociais no Internet, que a sua reação era pura paranoia.…

Desenhas supostos representar dois inteletuais, Rokhaya Diallo e Jean-Loup Amselle, no jornal francês Le Monde em 11 de Julho de 2014. O diário, conhecido pela sua linha editorial de centro-esquerda, publicou naquele dia uma conversa, um debate entre os dois mesmos; contudo, a representação de Sra Diallo é claramente assimilável a uma caricatura com conotação colonial. Ela exprimou naquela altura o seu mal-estar em relação ao desenho, foi-lhe respondido, nas redes sociais no Internet, que a sua reação era pura paranoia.…

A necessidade de uma postura antiracista empenhada

A luta para uma sociedade sem racismo ou outras formas de discriminações supõe um questionamento permanente, não só dos nossos próprios preconceitos, como também dos nossos privilégios – sejam o que foram, como homens, brancos, válidos, etc. A desconstrução dos preconceitos induz questionar pilares do modelo republicano, por exemplo a instrução pública, a qual teve, desde o século XIX, aspetos claramente positivos, mas também formatou as mentes, ao serviço do conceito de Estado-nação, e ao custo da diversidade. Neste âmbito, o desaparecimento das línguas regionais é um exemplo de apobrecimento do património nacional. Os defendedores do assimilacionismo exigem que as crianças com filiação imigrante apropriam-se os códigos culturais indígenas franceses, mas sem questionar esses códigos. Por exemplo, é perido às crianças, filhas e filhos de imigrantes, que se apropriam a história de França, mas qual versão? A que esquece-se do papel das mulheres, as lutas independentistas regionais, os movimentosde resistência à escravidão ou à colonização, as opiniões racistas de Voltaire, as origens mmestizas de Alexandre Dumas, o discurso nacionalista de Victor Hugo, os discursos anticolonialistas de Georges Clemenceau e de Jean Jaurès, ou ainda o massacre de populações indígenas que revoltaram-se contra a ocupação francesa nas colónias?

Muitos cidadãos, sinceros, estimam que não podem ser qualificados de racistas, pois não cometem atos nem dizem coisas abertamente racistas (ou que eles consideram racistas); nem a sociedade na qual eles evoluem, pois a lei castiga os discursos e os atos abertamente racistos. Contudo, num contexto onde alguns sofrem de discriminações, não sofrer disso torna-se de uma certa maneira um privilégio, pois facilita o acesso ao alojamento, ao emprego, etc. Uma sociedade que tolera as discriminações raciais porque não afectam a maioria, é uma sociedade que considera o racismo como o problema, unicamente, das pessoas racisadas, e pode legitimamente ser vista por estas como uma sociedade racista – pois ela oferece às pessoas brancas o privilégio de não sofrir de discriminaçéoes raciais. A autora e bloguista britânica Reni Eddo-Lodge levava esta questão no seu blog em 2014, num bilhete chamado Why I’m No Longer Talking to White People About Race (« Porqué não falo mais com pessoas brancas sobre a raça »): uma sociedade não pode lutar eficientemente contra o racismo se as pessoas (brancas) beneficiando das vantajens ligadas ao sistema de discriminação não se mostram ativamente solidárias e empáticas em relação aos que sofrem de racismo. E se o uso de « privilégio » incomoda alguns (sejam os privilégios brancos, mas também masculinos ou de classe), que preferem focalisar-se sobre a relevência da palavra (mas sem propor uma outra que seria mais aceitável), pelo menos podem entender a problemática que ela leva, a sua essência. O privilégio de uma pessoa branca, numa sociedade desigualitária e marcada por discriminações raciais, não induz necessariamente de dispor de direitos superiores gravados na lei, que seriam fechados às pessoas racisadas. Começa pela ausência de consciência da própria possibilidade de discriminação contra si mesmo. O privilégio, numa sociedade marcada por discriminações racistas, baseaia-se na ausência de carga mental relativa às discriminações. O privilégio é de não pensar-se como uma « raça » mas como a encarnação da universalidade.

Portanto, para construir uma sociedade libertada dos preconceitos e das discriminações, a postura consistindo em « não ser racista » não basta; os cidadãos sinceros devem adoptar uma postura antiracista ativa. Tanto como limitar-se a « não ser misógino » e ão cometer violências sexuais contra mulheres não poderá ser suficiente para libertar a sociedade do patriarcado. É preciso analisar as representações coletivas, adoptar um olhar crítico sobre o discurso político e sobre o tratamento das mídias, sobre o mundo da publicidade, sobre a produção cultural, à luz da luta féminista e antiracista, à qual pode-se acrescentar a questão validista – relativa às pessoas deficientes – e à da questão etária (idadismo). A autora brasileira Djamila Ribeiro, no seu livro Pequeno manual antiracista e feminista (2019), ia no mesmo sentido: « O silêncio torna o indivíduo eticamente e politicamente responsável da perpetuação do racismo. A mudança da sociedade não se fará unicamente com denunciações, ou com a repudiação moral do racismo: depende, antes de tudo, de posturas a tomar e da adopção de práticas antiracistas. » De fato, a lógica é muito simples, e aplica-se a outras áreas: se apenas as pessoas deficientes preocupam-se da sua representação no mundo da cultura, e do seu acesso aos direitos e aos serviços públicos, entende-se facilmente que a sua causa estagnaria bastante, e a luta contra os preconceitos que os afectam igualmente. É preciso empatia, é preciso mudar de ponto de vista, mas sobretudo dar a palavra e ouvir as pessoas em questão, porque não se pode adivinhar sofrimentos que nos escapam.

Notamos que a questão de saber se a França é « um país racista » não supõe uma resposta binária – e isso vale provavelmente para quase todos os países no planeta. Um país, uma sociedade, é um tudo complexo, e a França em toda a sua diversidade apresenta muitas contradições. O que conta, é tanto a percepção que cada uma e um tem da sociedade à sua volta, e o papel e a postura das instituições (e dos políticos que lhes fazem viver) na luta contra o racismo. A importância, é também o caminho desenhado em termos de memória, de questionamentos, de democracia e de justiça. E ainda ai, a atualidade desses últimos anos é encarregada de sinais contraditórias, com apesar de tudo tendências preocupantes, em particular uma libertação crescente da palavra racista e xenofóbico, uma crispação identitária em todos os lados, e uma histerização dos debates, da qual os defendedores do assimilacionismo à francesa – os quais têm um lugar de honra nas grandes mídias – são amplamente responsáveis.

Praça do coronel Fabien, no município de Stains, na Seine-Saint-Denis (subúrbios de Paris). Este espaço está à disposição do Coletivo Arte, composto em particular por grafistas locais, e que tornou-se famoso por ter, neste mesmo lugar em 2020, homenageado George Floyd e Adama Traoré (dois Negros, norte-americano e francês, falecido no contexto de violências policiais), e a seguir por ter representado a deputada de esquerda radical Danièle Obono travestida em uma Marianne revolucionária – por ser negra e por criticar o universalismo assimilacionista francês, a mesma Danièle Obono é regularmente atacada pela imprensa e os partidos de extrema direita. Aqui, este novo mural homenageia, 60 anos depois, as vítimas argelinas da repressão policial do 17 de Outubro de 1961 em Paris.

Praça do coronel Fabien, no município de Stains, na Seine-Saint-Denis (subúrbios de Paris). Este espaço está à disposição do Coletivo Arte, composto em particular por grafistas locais, e que tornou-se famoso por ter, neste mesmo lugar em 2020, homenageado George Floyd e Adama Traoré (dois Negros, norte-americano e francês, falecido no contexto de violências policiais), e a seguir por ter representado a deputada de esquerda radical Danièle Obono travestida em uma Marianne revolucionária – por ser negra e por criticar o universalismo assimilacionista francês, a mesma Danièle Obono é regularmente atacada pela imprensa e os partidos de extrema direita. Aqui, este novo mural homenageia, 60 anos depois, as vítimas argelinas da repressão policial do 17 de Outubro de 1961 em Paris.

O trecho seguinte é extrato da obra Marx e a boneca, onde a autora, filha de imigrantes iranianos em França, descreve a sua passagem em Turmas de Iniciação para Não-francófonos (abreviado em francês: CLIN):

Aqui, sente-se a miséria e a exclusão, é como um quintal, uma corrediça, um lugar onde esconde-se o que não é lindo a ver, o que não se deve mostrar. [...] Turma estranha: perdidos em falta de amor que jogamos no solo francês, assim, um dia. Cada vez que um novo aluno chegava, ele devia apresentar-se e dizer a sua nacionalidade. No total, antes de eu deixar esta turma, vi passar lá Pakistaneses, Argelinos, Poloneses, Senegaleses, Turcos, Cabilas, Chineses, Vietnamitas, Indianos, Tunisianos, Bengalis, Romenos, Russos, Portugueses, Cameroneses, Egípcios, Iraquianos, Afegãos, e eu, a Iraniana.

Eu sabia que éramos parecidos. Contra a minha vontade, apesar da minha negação, o meu recuso de os aceitar como irmãos. Meus irmãos de miséria, de exílio, de nostalgia, de tudo o que levavamos nos nossos pequenos ombros de alunos, e este peso o tínhamos em partilha e tínhamos que avançar com isso. Às vezes, eu tinh a impressão que nas nossas mochilas, não eram canetas, lápis, livros e cadernos que levavamos mas um monte de histórias não muito engraçadas e muitos rostos desaparecidos.

E depois tínhamas uma maneira estrenha de andar no caminho da vida: um pé em França e um pé á. Pequenas bonecas desarticuladas. Parecíamos crianças que tinham crescido depressa demais, velhas antes da hora. Eles ofereciam-me um espelho no qual eu não queria ver-me. Eu não queria ser diferente. Eu via uma cicatriz no seu rostro. A cicatriz que aqueles que o exílio cortou em dois. Eu queria apagar e reescrever a minha história com grandes golpes de normalidade, de unidade, de francisação.

Anos depois, estudante em master de didáctica do francês língua estrangeira, tínhamos uma aula sobre as estruturas de « acolhimento » para os que chamamos os « ANC »: crianças novamente chegadas. Era questão dessas CLIN [Turmas de Iniciação para Néao Francófonos] supostos iniciar em vista de « integrar » o aluno não francófono no espaço francófono e por sorte a nossa ensinante era muito crítica. Ela denunciava a ausência de abertura cultural, os perigos da assimilação, o recuso de acolher realmente o outro, ou seja, a sua cultura, a sua terra, a sua identidade, a sua língua. Ela esperava que essas estruturas tornam-se um dia verdadeiros lugares de acolhimento e de intercâmbio cultural no futuro.

Foi ai, lendo as suas aulas, que eu entendi que tinha subidan uma ampla empresa de limpeza. Como se tinha-se que esconder a nossa diferença e depois proceder a uma apagamento total. Cinco minutos consagradas à presentação do não-francófono, onde pela única vez as suas « origens » são evocadas, fora disso, mais nada. A seguir, uma vez que o trabalho de « cleaning » tem sido bem realizado, lhe enviamos numa « verdadeira » turma. CLIN ou CLEAN, é igual. Apaga-se, limpa-se, quando é tudo limpo, tudo claro, o interior bem esvaziado, a recompensa é concedida: és agora entre os Franceses, faz já o favor de estar à altura do favor que te é feito. Estrenha maneira de acolher o outro na sua casa. Um contrato é celebrado muito depressa entre o que chege e aquele que « acolhe »; eu aceito que estejas na minha casa, mas a condição que te esforças a ser como eu. Esqueça donde vens, aqui, já não interessa.

Maryam Madjid, Marx e a boneca (2017).

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