Raças, etnias, nacionalidades (1/2): As divisões imaginárias da espécie humana
No Brasil, Jair Bolsonaro, tal como outros líderes de extrema-direita no mundo ocidental, encarnam nacionalismos que supõem que o seu país é uma nação branca e cristã. Na Europa de Leste, figuras populares e autoritárias, por exemplo na Polônia e na Hungria, tratam das ondas de migração recentes como de ameaças para a identidade nacional. Em França, onde se fala de insegurança cultural, ou às vezes da Grande substituição de populações (Grand remplacement em francês), para tratar da imigração e dos problemas comunitários induzidos, essa visão já provocou polémicas, por exemplo em 2015 quando uma deputada de direita declarou na TV: « A França é um país judeo-cristão, de raça branca ». A questão das « raças » existe de maneira polémica em países onde o racismo foi particularmente destructor e fator de divisões; no entanto, o princípio de uma espécie humana sub-dividida em raças permanece uma crença partilhada por muitos.
É ainda mais preocupante porque outros conceitos adicionam-se: étnias, comunidades, tribus, etc. Testemunham de uma visão fragmentada da humanidade, numa base bastante fraca, misturando o nascimento e a pertença linguística e cultural. O uso desse vocabulário na linguagem do dia a dia não constrange, ainda menos porque é observado para falar de povos desprezados (no inconsciente coletivo), ou seja os de países do Sul, ou do Mediterrâneo e da Europa de Leste. Por exemplo, falaremos mais facilmente de « conflitos interétnicos » na África ou nos Bálcãs, mas quem apresentará os Catalães ou os Bascos como « étnias » espanhois? No máximo, falaremos de
nacionalidades .A
, tal como a raça , não baseia-se simplesmente em vetores culturais comuns, mas primeiro e antes de tudo sobre uma ancestralidade comum. Em outras palavras, a espécie humana seria dividida em raças: branca, preta, amarela, etc. E essas raças seriam elas mesmas sub-divididas em grupos étnicos e em comunidades, às vezes com sub-sub-divisões bastante obscuras e ainda mais subjetivas. Por exemplo, os Brancos seriam sub-divididos em Esclavos, Germanos, Celtas, Semitas, etc. nos quais se acha os Búlgaros, os Sérvios, os Bávaros, os Judeus asquenazes, etc. Qual é a realidade?Vamos começar lembrando que as separações baseadas sobre a cor de pele não foi sempre a regra no Homem. Nos tempos mais antigos da humanidade, os indivíduos andaram pelo mundo, e o que mais importante era os interesses das cidades, dos comerciantes, dos indivíduos. A escravidão, na Antiguidade, aintigiu os Brancos como os Negros sem distinção, e o Egito antigo conheceu faraós e rainhas « negros ». Uma dinastia dita de faraós negros (a XXV° dinastia, de origem núbia) até foi imposta no final do Novo Império, com o Impréio kushita. Havia, claro, racismo – embora ele era bem diferente, em vários aspetos, do que exprimiu-se nos séculos XIX e XX. Gregos e Romanos já qualificavam aqueles que não falavam a sua língua de « bárbaros », e não escondiam o seu sentimento de superioridade sobre os outros povos. Aliás, é por isso, no século III antes de J.-C., Alexandre o Grande teve grandes dificuldades em obrigar os seus generais macedônios a aceitar o princípio de casamentos mistos com mulheres persas, com objetivos políticos e culturais – o próprio casou-se com a filha do antigo imperador persa aquemênida Dario III. Mas não teria sido imaginável o imperador persa Xerxes Ieiro, Hannibal o Cartago, ou ou ainda Júlio César em Roma, recusando negros nas suas tropas por causa da sua cor de pele ou de uma suposta raça.
Tanto pela atitude dos homens e pelo conteúdo dos textos. Já com os judeus, o episódio bíblico Gênesis 9:18-29) – suppostamente descendentes de Cam – e na sua escravizão. Essa leitura pode ter tido consequências importantes para todas as religiões do Livro.
Mais tarde, e na origem do comércio transaltântico de escravos, a escravidão praticada pelas potências europeias (com a aprovação da Igreja) terá uma dimensão intrinsecamente racista voltada particularmente contra os negros, principalmente após o fim oficial do trabalho forçado dos Ameríndios, depois da controvérsia de Valladolid sob o pontificado do papa Júlios III (1550-1555). Logo em 1455, em sua bula papal do 8 de Janeiro (Romanus pontifex), o papa Nicolas V atacou especialmente os Sarracenos, ou seja, os muçulmanos, justificando até a sua escravização: « […] favores e graças especiais sendo conferidos aos príncipos e reis católicos, que […] nem só restringem os excessos selvagens de Sarracenos e outros infiéis, […] mas também para a defesa e o amento da fé, eles devem perseguir e fazer desaparecer os mesmos, tal como os seus reinados e as suas habitações, embora os mesmos são localizados em regiões distantes que ainda nos são desconhecidas ». Mais longe nos texto, o mesmo papa dava ao rei português da época « a livre e ampla faculdade de invadir, buscar, capturar, deportar e submeter os Sarracenos, e outros inimigos do Cristo seja onde for, de tomar possessão dos seus reinados, principados, e das suas possessões, e de todos os seus bens móveis e imóveis, e de reduzir a sua pessoa à escravidão perpétua, e tomar a soberania dos seus reinados, principados, e dos seus bens para beneficiar do uso e dos produtos dos mesmos ». Em 1526, Funsu Nzinga Mbemba, dito Afonso Ieiro, rei cristão do Kongo, escreveu para o rei português João II para pedir, em vão, o fim do do tráfego transatlântico, o qual despovoava o seu país.
A dimensão racista desenvolvida nas sociedades critãs do Ocidento encontrou, na empresa de colonização da América a partir do século XVI, e da África no século XIX, uma continuação lógica. Ela é óbvia na argumentação daquela altura. Assim, Victor Hugo dizia, num discurso pronunciado em 18 de Maio de 1879 num banquete comemorando a abolição da escravidão: « Essa África feroz só tem dois aspectos: povoada, é a barbaridade; deserta, é a selvageria. [...] No século dezenove, o Branco fez do Negro um homem; no século vinte, a Europa fará da África um mundo. » Entender: o homem negro não era um homem. Por isso, portanto, não lhe era concedido ter uma alma. E por isso tinha que ser convertido, despojado das suas crenças obscuras. Se essa abordagem dava jeito às potências colonizadores para razões políticas e econômicas, permitindo-lhes justificar a conquista do continente africano numa base « humanitária » e civilizadora, ela correspondia a uma visão do mundo na qual Negros e Brancos não eram naturalmente iguais. Na qual a Escola da República ensinava uma humanidade dividida em quatro « raças » distintas e homogêneas. Na qual o Cristo podia ser representado sendo loiro de olhos azuis, contanto que não o confundisse com um vulgar Árabe ou Judeu sefardita.
As sequelas dessa « estratificação racial » encontram-se até hoje em várias áreas, de maneira inconsciente ou não. Enquanto isso, os Estados Unidos segregacionistas e o regime do Apartheid sul-africano passaram por ai, tal como a marginalização ou o massacre dos povos indígenas do continente americano, a política de assimilação forçada dos Aborígines na Austrália, ou ainda os pogroms anti-semitas na Europa de Leste. Os exemplos são tantos que até podemos ganhar tempo em não os mencionar todos. Em Israel, o tratamento discriminatório aplicado há muito tempo contra os cidadãos de origem etíope (judeus, no entanto) também é revelador. E podemos lembrar que os mais fervorosos católicos permanecem os mais relutantes em nomear um papa negro. Pois isso contradiria a sua visão idílica (consciente ou não) de uma humanidade na qual a raça branca assuma um papel particular, o de conduzir os outros povos no caminho de Deus. Hoje em dia, as relações diplomáticas entre Estados, o tratamento da informação pelas mídias, ou ainda as políticas de ajuda ao desenvolvimento para a África, ilustram regularmente a visão desigual que todos (Brancos como Negros) partilham sobre a humanidade.
Enquanto isso, a Segunda Guerra mundial e os horrores nazistas passaram por ai, e o assunto virou tabu. Nem só já não era estabelecido uma hierarquia entre as raças, mas a própria ideia de distinguir os seres humanos na base desta noção caiu gradualmente em declínio ao nível científico, em particular depois do fim da segregação nos Estados Unidos em 1967, e depois do fim do Apartheid na África do Sul em 1991. O vocabulário portanto evoluiu: após a guerra, não se falava mais de raças, falava-se de étnias, com bases culturais. É o etnocentrismo de Lévi-Strauss. Hoje em dia, os progressos feitos na ciência do genoma – ou seja, todo o material genético de um indivíduo, contido nos cromossomos – fornecem respostas muito mais detalhadas sobre a existência ou não de divisões biológicas na nossa espécie. A ironia sendo que isso se deve em grande parte aos trabalhos de um racista famoso, James D. Watson, por seu trabalho sobre a estrutura do ADN (com Francis Crick) em 1953.
Em vez de confiar em alguns critérios físicos aparentes, os geneticistas de fato desenvolveram meios sofisticados de análise, capazes de comparar milhares de pequenos fragmentos de ADN. Isso permitiu à genética de concluir: a humanidade pode ser dividida em grupos biológicos, mas falar de raças é um abuso semántico, pois a espécie humana permanece, na realidade, a mais compacta entre todos os mamíferos. Assim, sobre 3,2 bilhões de nucleotídeos que o genoma humano teria, os homens difeririam só, no máximo, em 3 milhões, ou seja, apenas um por mil. Os sete bilhões de seres humanos têm então um genoma idêntico por 99,9%. Em comparação, a diversidade genética do chimpanzé é quatro vezes superior à nossa.
Certamente existe uma variabilidade entre os seres humanos. Que lições podemos tirar? No início de 2008, a revista norte-americana Science publicava os resultados de um considerável estudo genômico (então a mais completa realizada), comparando 650 000 nucleotídos nos 938 indivíduos que pertencem a 51 « étnias » e associando muitos geneticistas. Conclusão deste estudo, a espécie humana apresentaria sete grupos biológicos que são os seguintes: os Africanos subsaarianos, os Europeus, os habitantes do Médio-Oriente, O Asiático de Leste, os Asiáticos de Loeste, os Oceânicos e os Ameríndios. Ao procurar mais,os geneticistas ainda conseguiram determinar subgrupos (por exemplo, oito na Europa, e quatro no Médio-Oriente), mas com mais incerteza. Acima de tudo, os pesquisadores especificam que todos os homens descendem bem da mesma população da África negra, divididos progressivamente em sete ramos ao longo das partidas de pequenos grupos chamados fundadores, cujos descendentes encontraram-se isolados por barreiras geográficas (montanhas, oceanos...).
As divergências sobre uma parte do genótipo seriam explicadas pela separação geográfica, e uma evolução em meios naturais particulares. Sabemos por exemplo que a pele branca não é outra coisa do que uma adaptação genética favorecendo a síntese da vitamina D em meio com pouco sol, permitindo uma penetração mais profunda dos raios solares na epiderme, devido a um nível mais baixo de melanina. Não surpreende portanto, essas propriedades genéticas terem aparecidas fora das zonas tropicais, pois as latitudas temperadas são menos submetidas aos riscos ligados à radiação ultravioleta, ao contrário dos ambientes muito ensolarados nos quais os indivíduos têm a pele mais escura.
a diversidade das identidades, tanto como as proximidades genéticas observadas entre os povos, excluem qualquer categorização simplista e redutiva por « raças » ou « étnias » . Por outro lado, observa-se que as identidades evoluem ao longo dos séculos
Renan, que admitia que segundo ele, a guerra franco-alemã de 1870-1871 era o maior infortúnio que podia conhecer a civilização, respondeu a Strauss em 15 de Setembro de 1871, quase um ano depois. A sua argumentação era simples: a Alsácia era alemã pela lígua e pela raça; mas ela não queria ser parte do Estado alemão. Na sua opinião, isso resolvia a questão: « A nossa política é a do direito das nações; a vossa é a das raças; pensamos que a nossa é melhor. A repartição excessiva da humanidade em raças, não só baseia-se num erro científico pois só muito poucos países possuem uma raça realmente pura, ela só pode conduzir a guerras de exterminação, a guerras "zoológicas". […] Seria o fim dessa mistura fértil composta de elementos tão diversos e todos juntos necessários que chamamos a humanidade. Vocês brandiram no mundo a bandeira da política etnográfica e arqueológica em vez do da política liberal; essa política será fatal para vocês. »
Essas palavras podêm surpreender pela sua discernimento, pois são premonitórias à luz dos eventos que acontecerem na Europa na primeira metade do século XX. Não é surpreendente, aliás, o fato de Ernest Renan ter logo aderido naquela altura às teorias de Charles Darwin sobre a evolução das espécies, e ter estabelecido uma relação forte, nas suas reflexões, entre as religiões e as suas raízes étnico-geográficas.
– embora certos elementos como a língua seriam decisivos, do ponto de vista dos republicanos franceses, para construir as bases dessa « comunidade de destino », às vezes ao preço de uma grande violência (a desaparição dos diáletos locais, em particular) contra os povos de França que não aderiam a essa visão.
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O texto a seguir é tirado do livre Americanah, escrito pela Nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie e publicado em 2013. Imigrada nos Estados unidos, a heroína da história, Ifemelu, nos confessa as suas reflexões sobre a sociedade americana, com artigos curtos publicados num blog. Aqui, Ifemelu (e provavelmente, atrás dela, a própria autora) questiona-se: « Será que [Barack] Obama é tudo menos negro? » Ela explica, antes de tudo: « Quantidade de pessoas – em geral não negras – dizem que Obama não é negro, que ele é bi-racial, multiracial, negro e branco, tudo menos simplesmente negro. Porque a mãe dele era branca. Mas a raça não é biologia; a raça é sociologia. A raça não é um genótipo; a raça é um fenótipo. A raça conta por causa do racismo. E o racismo é absurdo porque ele liga só com a aparência. Não com o sangue fluindo nas nossas veias. É uma questão de cor de pele, de forma do nariz, de cabelos crespos. » Aqui está o que segue na sua reflexão.
Imagina que Obama, com sua pele cor amendoa e seus cabelos crespos, disse a uma empregada do recenseamento: « Sou mais ou menos branco. » [...] Muitos Negros americanos têm um ancestro branco, pois os Brancos proprietários de escravos amavam [passar a] noite [com] escravos. Mas se nasceu com a pele escura, acabou. (Então se é uma loira de olhos azuis que diz « Meu avô era Índio e eu também sou vítima de discriminação » quando os Negros falam de seus problemas, favor, cale-se). Na América, você não tem a possibilidade de decidir a que raça pertence. [...] Obama, como ele é, teria sido obrigado a sentar-se atrás do ônibus há 50 anos. Se um crime é cometido hoje por um Negro qualquer, poderíamos interpelar Obama e o questionar porque ele corresponde ao perfil [...] « Homem de raça negra ».