Raças, etnias, nacionalidades (2/2): Memória colonial, imigração, coexistência religiosa: será que o nosso olhar pode mudar?
Em Março de 2015, o Portugal e a Espanha adoptaram uma lei que permite aos descendentes de judeus expulsados na tempo da Inquisição, a partir do século XV, de pedir a nacionalidade (portuguesa ou espanhola, segundo o caso). Mais ou menos um meio-milhão seriam nessa situação de judeo-descendência. Se muitas poucas foram as pessoas a finalmente pedir (e sobretudo ganhar) a nacionalidade (depois de um ano, em 2016, haviam 292 nacionalidades portuguesas e só uma espanhola ganhadas, sobre alguns milhares de pedidos), esse passo é muito positivo, porque não só é uma mão dada a populações que sofrerem no passado, como também é uma maneira de romper com a visão desenvolvida então segundo a qual pertencer a tal povo queria dizer ter tal religião. Era uma visão fechada da nacionalidade e da identidade.
Analisamos anteriormente (na primeira parte deste artigo: Raças, etnias, nacionalidades (1/2): As divisões imaginárias da espécie humana) a construção mental das raças, etnias e nações, e vimos como essas noções podem ter sido manipuladas segundo os interesses de uns e outros. Hoje em dia ainda permanece amplamente visões fechadas das identidades nacionais, associando uma nacionalidade a certas características subjetivas e redutores. Como o veremos neste artigo, essa visão – adicionada à permanência de um racismo muito forte, em particular baseado na cor da pele – cria grandes dificuldades na memória histórica e na convivência das comunidades, na Europa e além.
Imagem de propaganda pró-colonial, baseada numa missão civilizadora e numa promessa de prosperidade para os povos colonizados (Le Petit Journal, publicado em 19 de Novembro de 1911).
Herança colonial, a questão racial permanece fortamente polémica nas relações entre Brancos e Negros
Num país emblemático como a França, onde os debates ligados à identidade foram muitos esses últimos anos, por vários razões, o presidente Nicolas Sarkozy participou muito, entre 2007 e 2012, a alimentar os discursos identitários promovendo a existência e a permanence de uma espinha cultural branca e cristã no nosso continente. Um líder como Viktor Orbán na Hungria, ou como Matteo Salvini na Itália, levam discursos similares. O movimento Vox na Espanha também. O discurso de Dakar de Nicolas Sarkozy, pronunciado na Universidade Cheikh Cheikh-Anta-Diop em 26 de julho de 2007 sobre o « homem africano » constituiu um passo importante nesta permanência de uma visão racista sobre os Africanos, e sobre os Negros.
Tudo nesse discurso não é necessáriamente para jogar fora. Nicolas Sarkozy fazia então alusão à herança europeia em muitas sociedades africanas: « […] há em vocês, jovens de África, duas heranças, duas sabedorias, duas tradições muito tempo combatidas: a da África e a da Europa. […] Eu vim vos dizer que essa parte africana e essa parte europeia de vocês mesmos formam a vossa entidade rasgada. Mas eu vim vos dizer que a parte da Europa que está em vocês é o fruto de um pecado de orgulho do Ocidente mas que essa parte de Europa não é indigna. Pois ela é a chamada da liberdade, da emancipação e da justiça e da igualdade entre as mulheres e os homens. » Verdade que as independências acontecerem não só com base aspirações locais legítimas à igualdade, à liberdade e à dignidade, mas também graças à propagação desses mesmos valores na Europa e nas elites africanas. As sociedades africanas, claro, não ficaram à espera do contacto das potências europeias para negar a colonização e iniciar movimentos de resistência – e os muitos exemplos de reinos destruidos nas guerras de resistência ao invasor o ilustram bem (Dahomey no Benim, Gaza no Moçambique, Merina no Madagascar, etc.) –, mas a influência das ideias liberais (ou socialistas e anti-imperialistas) veiculadas na Europa pode ter impactado sensivelmente as aspirações e as expectativas das populações colonizadas. Sobretudo quando as elites africanas e asiáticas estudavam na metrópole. Aliás, levando princípios fundamentais de liberdade e de igualdade, e baseando-se nas suas colônias africanas e asiáticas para combater os regimes totalitários e racistas durante a Segunda Guerra mundial, as potências europeias mostraram bem as suas contradições. Alguns desses valores, uma certa concepção do mundo e dos indivíduos, sua percepção de ela mesma, suas fronteiras, suas línguas oficiais, sua religião: incontestavelmente, em menos de dois séculos de colonização, a Europa deixou uma marca profonda no continente africano, e talvez é importante que hoje em dia, as sociedades africanas assumem esta herança para ir para frente – embora a mesma lhes foi inicialmente imposta, muitas vezes com violência.
No entanto, uma parte importante daquele discurso revelava o fundo de um pensamento que, se as palavras têm sentido, constitui o discurso oficial francês o mais racista nesses últimos anos. Longo de 50 minutos, esse discurso afirma por exemplo que a colonização foi um erro mas que « o dramaafricano, é que o homem africano ainda não entrou suficientemente na História ». Ele explica assim: « O camponês africano [...] cujo o ideal de vida é ser em harmonia com a natureza, só conhece o eterno recomeço do tempo ritmado pela repetição sem fim dos mesmos gestos e das mesmas palavras. Neste imaginário onde tudo recomeço sempre, não há lugar nem para a aventura humana nem para a ideia de progresso. Nesse universo onde a natureza comanda tudo, o homem [...] fica imóvel no meio de um ordem imutável onde tudo parece escrito com antecedência. Nunca o homem se lança no futuro. Nunca ele tem a ideia de sair da repetição para inventar-se um destino. » Nicolas Sarkozy poderia pelo menos ter concedido que nesse oceano de mediocridade, os Africanos têm « o ritmo da música na pele » e que eles correm rápido. Mas o calor e o mito do « bom selvagem » vivendo em harmonia com a natureza estão ai, já é suficiente. Esse quadro caricatural da « natureza africana » nem tem a ver com neocolonialismo, mas bem com colonialismo, tal que o defendiam Jules Ferry e outros na segunda metade do século XIX. Sempre permanece a ideia que a colonização foi boa para a África, pois ela trouxe a civilização e o progresso em sociedades bárbaras.
Podemos fazer um paralele com este discurso de Victor Hugo, pronunciado em 18 de Maio de 1879 num banquete dedicado à celebração da escravidão: « O que seria a África sem os Brancos? Nada; um bloco de areia; a noite; a paralisia; paísagens lunares. A África só existe porque o homem branco a tocou. [...] Está ai, diante de nós, esse bloco de areia e de cinza, este pedaço inerte e passivo que, desde seis mil anos, faz obstáculo marcha universal, esse monstruoso Cam que para Sem pela sua enormidade, – a África. […] A Ásia tem a sua história, a América tem a sua história, a própria Austrália tem a sua história; a África não tem história. Um género de lenda vasta e sombria a envolve. […] Essa África feroz só tem dois aspectos: povoada, é a barbaridade; deserta, é a selvageria. [...] No século dezenove, o Branco fez do Negro um homem; no século vinte, a Europa fará da África um mundo. » Toda aquela ideia que a África esteria parada no tempo, que a sua história parou há milênios, e que a noção de progresso e de acesso à universalidade humana é excluida lá enquanto o homem branco não deixou lá a sua marca. Lembramos também este outro discurso de Victor Hugo, em apoio ao processo colonial desenvolvido pela III° República francesa: « O Mediterrâneo é um lago de civilização; certamente, há razões que explicam que o Mediterrâneo tem numa das suas margens o velho universo e num outro o universo ignorado, ou seja, de um lado toda a civilização e do outro toda a barbaridade. [...] Vamos, Povos! Méditerranée est un lac de civilisation ; ce n’est certes pas pour rien que la Méditerranée a sur l’un de ses bords le vieil univers et sur l’autre l’univers ignoré, c’est-à-dire d’un côté toute la civilisation et de l’autre toute la barbarie. […] Allez, Peuples! Assumem o controle desta terra. Peguem-la. A quem? A ninguém. Peguem essa terra a Deus. Deus dá a terra aos homens, Deus oferece a África à Europa. Peguem-la. [...] Despejem o vosso ecesso nesta África, e ao mesmo tempo, resolvem as vossas questões sociais, transformem os proletários em proprietários. Vamos, façam! Façam estradas, façam portos, façam cidades; cresçam, cultivem, multipliquem. »
Se os discursos de Victor Hugo têm como objetivo a colonização, qual era o objetivo de um discurso como o de Dakar pronunciado por Nicolas Sarkozy? Para que serviam essas condirações supostamente filosóficas sobre a África e o homem africano? Provavelmente também a falar de colonização. Uma colonização crual, mas à final não tão terrível, já que com o islão e o cristianismo, ela permitiu « [abrir] os corações e as mentalidades africanas ao universal e à História ». Ele acrescentava: « As civilizações são grandes à medida da sua participação à grande miscigenação do espírito humano. A fraqueza da África que conheceu no seu solo tantas civilizações brilhantes [Não vamos parar para desconstruir o uso abusivo da palavra « civilização », mas ai também haveria muito para dizer], foi muito tempo de não participar suficientemente a essa grande miscigenação [Entender: a África ficou isolado do resto do mundo (o que é errado, de fato), e portanto não progrediu com ele]. Ela pagou caro, a África, esse desengajamento do mundo que a deixou tão vulnerável [Verdade que ela o pagou caro... obrigado a quem?]. Mas, dos seus infortúnios, a África achou uma força nova, misturando-se ela também. Essa miscigenação, quaisquer que foram as condições dolorosas do seu advento, é a verdadeira força e a verdadeira chance da África neste momento em que surge a primeira civilização mundial. »
Ser capaz de pronunciar um discurso oficial sobre « o homem africano » e seus supostos defeitos naturais, é incontestavelmente inscriver-se numa antropologia racista, uma versão rançosa e fechada do mundo, onde a Europa civilizadora e a África eterna olhem-se sem diálogo nenhum. Essa paródia de discurso supostamente direto, sincero, que autoriza-se todos os insutos na base de uma sinceridade autoproclamada, é uma marca de paternalismo que despreza a realidade, além de ser uma ilustração de grande ignorância sobre a história do continente africano. Aliás, era bem no ambiente daquele altura, pois sob a presidência de Nicolas Sarakozy, as alusões com objetivo mais ou menos explícitos de desculpabilizat os Europeus sobre as questões coloniais ou o comércio de escravos multiplicavam-se. Nesse âmbito, as redes sociais, e em particular Twitter, representavam uma ferramenta de comunicação perfeitamente adaptado ao caráter primário do pensamento conservador, pois o formato dos tweets é necessariamente curto, limitado a um certo número de palavras. O que permite, aliás, de esconder-se, se for necessário, atrás de uma « interpretação errada » das palavras pronunciadas, ou de explicar que o formato com um texto curto não permitia desenvolver um discurso sutil.
Cartazes de propaganda colonialista portugueses, para Angola, São Tomé e Príncipe, Timor-Leste, Moçambique, Guiné-Bissau e Cabo-Verde.
Nem nós nem as nossas crianças somos responsáveis dos atos dos nossos ancestrais, claro, mas é da nossa responsabilidade, no entanto, de assumir a carga de respeitar a memória dos descendentes de escravos ou de colonizados. Para que não só esses se sentem plenamente integrade numa sociedade que hoje em dia condena a escravidão, mas também para assegurar que jamais essas barbaridades sejam cometidas. Essa necessidade vale tanto para países como a França, o Portugal e a Inglaterra, como para o Brasil, os Estados-Unidos e a Austrália.
Tal como o ilustrava o famoso discurso de Dakar, a visão da história da Europa desenvolvido pela visão conservadora manifesta uma profunda imobilidade intelectual que tem as suas oprigens num nacionalismo tingido de chauvinismo. Dai, a procura eterna de elementos que podêm desculpabilizar os Europeus. Por lembranço, o projeto da Lei do 23 de Fevereiro de 2005 em França tinha provocado muita polêmica por causa de um dos seus artigos que ambicionava introduzir nos programas escolares de História os aspetos positivos da presença de colonos franceses em África do Norte. Disposição problemática, pois a representação nacional não tem necessariamente vocação a definir o que o conteúdo do ensino escolar – pelo menos num mundo onde os manuais de História são elaborados por historiadores e o corpo educacional, e não por atores políticos (no Brasil de Jair Bolsonaro, esta problemática é muito viva). Também porque no fundo, a expressão « aspetos positivos » é contestável. O que chamamos de colonização? Podemos definir esse processo como uma extensão territorial caracterizada por fluxos migratórios e substituições de populações, a ocupação e a exploração do território, e o controle, a tutela, a dominação política, cultural, religiosa e econômica da sociedade colonizada – quando não há genocídio, simplesmente, das populações précoloniais. O pretexto da « missão civilizadora » do colonizador, que observamos nas argumentações de Jules Ferry e de outros defensores da política colonial da França no final do século XIX, permanece cheio de ambiguidade e mostra também um olhar claramente racista em relação aos povos africano, e um antropocentrismo profundo – o discurso de Victor Hugo de 1879 o ilustrava perfeitamente.
Neste âmbito, todas as ações na colônia, ou seja a construção de infra-estruturas, de hospitais, de igrejas, e até de escolas, tinha como objetivo facilitar a exploração da população e do território colonizados, ao benefício da metrópole e dos colonos. Boa ilustração, uma circular de 1897 escrita pelo Governador geral da África Ocidental Francesa (AOF), Jean-Baptiste Émile Chaudié, dizia: « a escola é o meio o mais seguro para uma nação civilizadora, para transmitir as suas ideias às populações ainda primitivas ». E o seu sucessor na direçéao da AOF, William Merlaud-Ponty, acrescentava, numa circular de 1910, que a escola é a ferramenta « que serve melhor os interesses da causa francesa ». Isso não significa que as populações indígenas não beneficiaram também dessas mudanças a certos níveis, mas simplesmente que esses acontecerem com um objetivo que era outro: favorecer a colonização, ou seja a exploração da colônia e dos seus recursos humanos e materiais.
No seu livro O que o dia deve à noite (2008), o autor argelino Yasmina Khadra apresenta a um certo momento o diálogo entre um moço argelino, Younes, e um grande proprietário agrícola, quase na véspera da independência da Argélia. Esse, para defender a presença francesa, explica que antes da chegada do seu bisavô, « não havia nada [...], nada » em Argélia. Ele acrescenta: « Esse país nos deve tudo. Era uma pedra miserável, fizemos disso um jardim do Edén. E sabes porque essa terra é generosa? Parque ela sabe que a amamos. [...] Se vamos embora um dia, não dou vinte anos à Argélia para já não haver mais trigo, mais vinhedos, mais nada. Só pedras. » E o jovem Younes lhe responde: « Essas pedras néao vos pertencem. Há muito tempo, [...], bem antes da chegada do vosso bisavô, um homem estava ai. Ele não tinha nada, mas era feliz assim. Até o dia que ele vi chegar o infortúnio. [...] Essa terra não é vossa, ela pertence a esse pastor. » Valorizar um país (a própria palavra « valorizar » sendo relativa) não justifica tomar possessão dele, e não torna a sua apropriação e a sua exploraçéao mais doces nem mais legítimas. Será que os Europeus aceitariam que a China invadisse a Europa, renovasse as suas infra-estruturas e trazesse uma real modernização tecnológica para melhor explorar a terra e os indivíduos? E o que pensaríamos se após a independência, apesar da permanência de uma exploração dos nossos recursos pelas empresas chinesas, a China argumentava, cereja no bolo, que todavia ela nos trouxe boas coisas?
A própria noção de « aspetos positivos » ligados a um processo histórico imperialista, racista e destruturante para sociedades inteiras é problemática. Será que imaginamos os Alemãos mencionar a queda do desemprego e a volta do crescimento econômico como aspetos positivos do regime nazista? Não, claro, pois o nazismo não constitui um programa econômico, mas sim, uma ideologia totalitária intrinsecamente racista e mortal. Da mesma maneira, a colonização, mesmo quando a construção de um posto de saúde ou de uma estrada beneficiou também a populações locais, não deixe de ser um processo de exploração e de dominação de um território, de seres humanos e dos seus recursos, e nenhuma valorização do seu bem-ser material ou do seu patrimônio a justificará. Claro, é preciso contar tudo, mas procurar qualificar certos elementos da colonização de « aspetos positivos » mostra que, do ponto de vista de alguns, a visão do passado colonial e dos seus fundamentos permanece imóvel.
Num país como o Brasil, esse debate é claramente ainda muito atual. Ainda há uma visão de tipo colonial desenvolvida em relação aos indígenas. Desde a eleição de Jair Bolsonaro no final do ano 2018, o objetivo explicito do governo é favorecer a implementação de modos de produção de tipo ocidental na Amazônia, em desprezo do modo de vida índio. Num monólogo memorável, aquele que tornou-se presidente da primeira potência sul-americana em 1 de Janeiro de 2019 explicou, em conferência de imprensa: « Você tem que integrar o Índio à sociedade. Eu estive em Roraima vendo os problemas lá. O Índio quer energia elétrica. Quer um dentista para arrancar o "troco" de dente, lá da boca dele. Ele quer um médico para curar uma doença. Ele quer ver televisão, quer jogar futebol. Quer vir no cinema. Ele quer plantar soja também, plantar arroz. Ele quer... Ele quer ser alguém, tá? Ele precisa disso. E não o governo via ONGs [...]. Nó temos um Índio presidente da Bolívia. Por que é que nosso Índio aqui tem que estar confinado numa terra indígena? [...] Eu não tenho obsessão. Eu tenho o que os outros não têm: eu tenho o povo comigo e Deus no comando. » Um discurso então partilhado no Twitter pelo Eduardo Bolsonaro, o próprio filho do atual presidente, que acrescentava esse comentário: « Índio não quer terra, quer dignidade para não ser isolado como bicho de zoológico. » O discurso levado pelos Bolsonaro pai e filho ilustra muito bem a permanência, num país como o Brasil, de uma visão racista e colonialista em relação aos Índios e ao seu modo de vida. Como já o analisamos num artigo de Maio de 2019 (Brasil: será que « Índio não quer terra, quer dignidade »?), há uma continuação entre o regime colonial pré-1822, o regime imperial e depois republicano pós-1822, e agora com a presidência Bolsonaro.
Questões de memória cristalizam as paixões. Uma sociedade multicultural e multiconfessional – o que são, de fato, países como a França, a Inglaterra e o Portugal hoje em dia, mas também o Brasil – em paz implica um olhar pragmático e respeitoso sobre os sofrimentos de uns e outros. Esse olhar que, sem cair no erro de assimilar sempre os Brancos a descendentes de escravagites suspeitos de racismo, deve permitir a todos de viver juntos e à República – ela condena o racismo, a colonização e a escravidão.
Na Europa: a necessidade de renovar o nosso olhar sobre as identidades nacionais
Na Europa ocidental e até nos Estados Unidos, a realidade da imigrações observadas há décadas e as dificuldades de integração de certas populações adicionam-se ao fato de muitas pessoas não consideraram pessoas « de origem imigrês » como cidadãos como os outros. Na Europa, a prática da religião muçulmana, considerada como uma religião « estrangeira », aumenta esse sentimento. Aliás, a radicalização de jovens muçulmanos que juntarem-se à luta terrorista, em particuler em 2015-2016, alguns indo até o Médio-Oriente para combater com o Estado islâmico, cria desafios enormes para países como a Bélgica, a Inglaterra e sobretudo a França. Décadas de mal-integração de população de origem estrangeira, sempre designadas como « árabes » ou « muçulmanos », estigmatizados e reduzidos à religião deles (ou à religião dos país), isso tudo adicionado à uma péssima integração no mercado de trabalho e a um declínio gradual mas constante da Escola pública republicana, provavelment isso tudo pode servir de início de explicação para analisar o processo de radicalização de uma parte (minoritária mas real) da juventude francesa. Junta-se a isso tudo, primeiro a ação no terreno de religiosos islâmicos que tentam atrair pessoas em perdição, e segundo, a procura por muitos jovens de uma forma de transcendência espiritual difficilmente accessível na nossa sociedade capitalista e consumerista (esse último ponto é que pode explicar o fenômeno de conversões ao islão).
As respostas dos governos sucessivos à realidade do extremismo religioso mostram que as reações não são relevantes, pois o diagnóstico não deixe de ser somente securitário. O envolvimento de jovens Franceses em movimento terroristas que atacam a França é visto como um problema de segurança, incluido no âmbito de uma guerra mais ampla com forças inimigas (mal identificadas, aliás) presentes sobretudo no Médio-Oriente, e não como um problema doméstico que seria o resultado de políticas nacionais e de escolhas coletivas (passadas e presentes) erradas. A área política agarra-se a simbólos como manifestações de patriotismo coletivo, o fato de obrigar as crianças nas escolas a cantar o hino nacional, o fortalecimento do ensino moral e cívico, etc. Foram mesmo colocado em debate, em 2015-2016, sem ser adoptadas à final, propostas como a generalização do uniforme nas escolas públicas (o que não é uma coisa irrelevante em si mesmo, mas que como resposta à radicalização é simplesmente absurdo) ou como a destituição da nacionalidade para os binacionais que seriam acusados de atos terroristas dirigidos contra a nação. As respostas são dignas de posturas nacionalistas que podiam parecer relevantes antes da Primeira Guerra mundial, mas que devem ser revistas profundamente. Sob a pressão da subida eleitoral dos partidos de extrema-direita, e frente à sua incompetência e sua falta de visão, os símbolos republicanos são as bóias salva-vidas dos nossos dirigentes.
A imaginação dos políticos não lhes permite pensar soluções além de ritos que já têm mais de um século de idade. Eles não conseguem adaptar os símbolos à realidade, então figem que fazem o contrário. A escola torna-se (ou deve tornar-se) um santuário, que nem um serviço militar suposto requadrar as cabeças dos nossos jovens. A realidade é outra. Coloca-se a questão da coabitação das religiões, a dos direitos e das liberdades (liberdade de blasfêmia, mas também direito de praticar a sua religião), a do diálogo intercultural e interreligioso, etc. São centrais, pois de fato, um país como a França é multicultural, e religiões e comunidades herdeiras de culturas diversas coabitam. O presidente francês Charles de Gaulle teria declarado (palavras recolhidas pelo politólogo francês Alain Peyrefitte), em 1959: « É muito bem haver Franceses amarelos, Franceses negros, Franceses morenos. Eles mostrem que a França é aberta a todas as raças e que ela tem uma vocação universal. Mas à condição que eles permanecem uma minoria. Caso contrário a França não seria mais a França. Todavia somos antes de tudo um povo europeu de raça branca, de cultura grega e latina, e de religião cristã. » De fato, a França já não é simplesmente « esse povo de raça branca, católico, de cultura gréga e latina » evocada pelo primeiro presidente da Quinta República. E muitas pessoas têm medo das mudanças demográficas e sociológicas induzidas pela imigração de massa conhecida desde os anos 1970. O autor de extrema-direita Renaud Camus até teorizou a suposta « Grande Substitução » de população, uma tese aprovada por partidos como o Rassemblement national (ex-Front national) em França, a União democrática do centro (UDC) na Suíça, o Partido pela Liberdade na Holanda, o UKIP na Inglaterra, a Liga na Itália, ou ainda o partido Direito e Justiça (PiS) na Polônia. E mais recentemente chegados, a AFD na Alemanha e Vox na Espanha. O Partido Nacional Renovador (PNR), em Portugal, nunca conseguiu reunir votos suficientes para aceder ao Parlamento, e nunca ultrapassou 0,50% numa eleição legislativa.
Uma primeira aborgadem construtiva poderia ser de dar a palavra, sobre essas questões, aos cidadãos que são efectivamente implicados na coexistência multicultural e que a vivem no dia a dia. A troca deve ser o centro de qualquer reflexão sobre a noção de cidadania para uma população tão diversa como a de um país como a França. Não há pior do que uma sociedade onde as pessoas não se falam. Casos de vários países africanos como o Senegal ou o Burkina Faso onde observa-se a coexistência pacífica de comunidades linguísticas e religiosas diversas, longe dos clichês sobre a África em guerra e na miséria, podem servir de exemplos interessantes, de modelos.
Além disso, a República implementa no sistema de educação uma lógica defensiva infértil. Numa lógica aberta, haveria oportunidades incríveis para desenvolver o multilinguismo. Um país como a França, por exemplo, conta mais de 800 000 Portugueses (nacionais ou binacionais), e entre 5 e 6 milhões de pessoas de origem magrebina (3,5 milhões deles têm a nacionalidade francesa. Com essas comunidades por exemplo, a República francesa já faltou a ocasião de ter elites lusófonas ou arabófonas. Essa opção não seria contraditória com o ensino da língua francesa de qualidade; ai também, exemplos africanos o ilustram bem, e aliás, vários países europeus mostram que o bilinguismo ou até o trilinguismo pode ser a regra: Luxemburgo, Malta, Escôssia, Catalunha, etc. Enquanto a situação atual não satisfaz ninguém. A aprendizagem do francês é péssima em muitos bairros onde se concentram populações de origem estrangeira, e o conhecimento das línguas de origem dos imigrantes (ou filhos de imigrantes) não é valorizado. Isso tudo não quer dizer que os estrangeiros que chegam em França ou os filhos deles não têm um trabalho de inegração para fazer e para adaptar-se à cultura do país onde chegam, por exemplo aceitando elementos culturais (que nem o direito ao blâsfemo, os direitos das mulheres ou os princípios de liberdade e de igualdade). Mas o olhar deve mudar sobre populações que são francesas, em particular quando as pessoas nasceram em França, claro.
Uma mudança de abordagem será indispensável para assumir a dimensão plural da Europa. O trabalho ainda é imenso. A Europa de Leste, a França e o Reino-Unido no primeiro lugar, representava, por vários motivos (superioridade demográfica, força de dissuasão nuclear, predominância na Comunidade europeia, etc.), a espinha central da Europa de Loeste crescente e próspera pós Segunda Guerra mundial. Hoje, quem domina a Europa dos Vinte-Sete é a Alemanha reunificada, pois os países que estão na sua área de influência econômica (na Europa central e de Leste) estão neste espaço de livre-comércio que chamamos a União europeia. Apenas Londres e Paris mantêm uma certa influência em zonas que correspondem as seus antigos impérios coloniais. Nestes dois países, como na Europa em geral, existe um medo do declínio, motivado pelo fato da Europa já não representar tanto como antigamente na economia mundial e na demografia do planeta. Esse medo do declínio acrescenta-se de uma « insegurança cultural » ligada aos desafios criados pela imigração de massa e os problemas de comunautarismo. Uma nação constroi-se na base de mitos fundadores comuns, e de fato, a presença de vagas de migração importante, sobretudo com populações que se concentram nas periferias das nossas grandes metrópoles europeias, supõe um desafio ainda mais grande, pois os mitos identitárias podêm ser diferentes de uma população para outra, por exemplo a herança colonial ou da escravatura sendo mais importante para a memória afro-descendentes. Os assobios contra o hino La Marseillaise durante encontros de futebol em 2001 França-Argélia, e em 2008 França-Tunísia, são ilustrativos disso. O desafio é enorme. Como dizia o presidente francês de Gaulle à sua época, « pode-se integrar indivíduos; enfim, somente numa certa medida. Não se integra povos, com o seu passado, suas tradições, suas lembranças comuns de batalhas ganhadas ou perdidas, seus heróis ».
Podemos concluir lembrando que existe um discurso que consiste a dizer que lembrar constantemente os erros históricos da França não ajuda as pessoas de origem estrangeira a amar a França. Esse ponto de vista seria verdade, se o trabalho de memória resumava-se a uma auto-flagelação coletiva. Mas obviamente, não é o caso. Países europeus que assumem um trabalho de memória importante devem sobretudo orgulhar-se de ter gradualmente acabado com as práticas racistas e imperialistas do passado. Nessa construção coletiva, o trabalho deve ser duplo. Imigrantes devem apropriar-se a história, a herança, a cultura do país hospedeiro, toda a herança – Napoléon Bonaparte dizia, na sua época: « De Clovis até o Comitê de Salvação Pública, assumo tudo ». E os nacionais que não têm origens estrangeiras devem integrar mentalmente a nova diversidade da paisagem demográfica e sociológica do país. Aliás, mudanças demográficas não são um problema em si, se elas não se traduzem por mudanças brutais e regressivas de valores, ou seja por menos liberdade, menos igualdade, menos respeito da dignidade humano, e menos democracia.
Para avançar, é preciso agora mudar o nosso olhar sobre as nossas identidades nacionais e conseguir a integração das últimas chegadas migratórias. O caminho ainda é longo.
O texto a seguir é tirado do livre Os condenados da terra, escrito por Frantz Fanon, psiquiatra e ensaísta francês da Martiniqua, muito envolvido na luta pela independência da Argélia e no movimento internacional de descolonização. Essas palavras fazem eco à visão pós-colonial levada pelo discurso de Dakar de 2007 do então presidente da República francesa Nicolas Sarkozy, que afirmou que « o homem africano não entrou suficientemente na História » (quando na realidade, ele não fala da história dos países africanos, mas da história do mundo capitalista inspirado pelo mundo ocidental).
O colono faz a história e sabe que a faz. E porque se refere constantemente à história da sua metrópole, ele indica claramente que aqui ele é a extensão dessa metrópole. A história que ele escreve não é portanto a história do país do paí que ele explora, mas a história da sua nação que espuma, estupra e traz fome. A imobilidade à qual o colonizado é condenado só pode ser questionado se o colonizado decide acabar com a história da colonização, a história da pilhagem, para fazer existir a história da nação, a nação da descolonização.