Ecologia: será que podemos desconstruir a nossa relação com o vivente e os ecossistemas? (1/2) O legado de uma civilização ocidental antropocêntrica e hierarquizante
Nos últimos anos, costuma-se ler e ouvir inumerosas chamadas e alertas relativas ao aquecimento climático e ao colapso dos ecossistemas. As preconizações são geralmente ligadas à redução das emissões de gás com efeito de estufa, ou a criação de reservas naturais ou de iniciativas de preservação da fauna e da flora. Raramente se acha uma outra abordagem, por exemplo « proteger » de maneira fortalecida áreas, as colocando em livre evolução, ou seja, sem caça, sem exploração da madeira, das terras ou dos minerais, sem controlo das espécies e até sem gestão da madeira morte. Desde vários anos, muitos inteletuais e atores de terreno procuram no entanto repensar a nossa relação com a « natureza », com as outras espécies vivas, reconsiderando uma grande diversidade de opções com alvo a preservação das espécies e dos meios, ou por intervenções humanas quando é necessário (no âmbito da reintrodução de espécies, por exemplo), ou « deixando só » os ecossistemas, que na maioria dos casos sabem reconstruir-se sem nós. A ambição é grande, e a tarefa torna-se complicada pela indiferença óbvia da classe política e das elites mediáticas em relação à « questão animal » (e à écologia em geral), que é vista como uma preocupação marginal, o luxo de uma pequena minoria de « burguesas bohêmia » urbanos, e pior, como a iluastração de uma empatia infantil... Para o dizer claramento, a salvaguarda das raposas, das flores, das abelhas e dos pássaros, seria uma temática risível e politicamente descredibilizante. Estamos longe de rever a nossa relação aos ecossistemas, nos resituando no meio dos seres vivos, em interação e em interdependências... Pois a nossa visão sobre a « natureza » é antiga: é uma herança plurisecular profunda – herança ao mesmo tempo das grandes religiões monoteístas, e do pensamento « moderno » que colocou o Homem acima de tudo. uns elementos de reflexão.
Podemos pegar o exemplo de um país como a França para identificar os desafios que impõem-se a um continente como a Europa, pois com a sua situação geográfica, é provavelmente o território europeu com maior diversidade de climas, de topografias, de biodiversidade – ainda mais com os territórios além-mar. Contava-se em 2015 mais de 160 000 espécies identificadas (segundo o Museu nacional de história natural), ou seja, mais ou menos 2% das espécies conhecidas no planeta, a maior biodiversidade de Europa. Mas foi também um dos territórios europeus onde a regressão da natureza foi a pior após a Segunda Guerra mundial. O caminho para a restauração da fauna e da flora destruidas ou em colapso é longo e laborioso. Apenas 1,54% do território metropolitano terrestro francês beneficia de uma proteção « forte », segundo o Inventário nacional do património natural em 2020, e até ai, observa-se ainda em muitos lugares atividades de caça, de pastoralismo ou de silvicultura; provavelmente é mais uns 0,6% que assegura uma livre expressão das áreas naturais. Aqui como em outros países, uma das grandes questões é na própria definição de « proteção », de « plena naturalidade ». A definição europeia das áreas de natureza virgem (e os objetivos que vão com ela) ainda não é perfeitamente adoptada por todas as legislações dos Estados membros.
O princípio de preservação dos ecossistemas e de salvaguarda das espécies enfrente muitos escolhos, e o primeiro deles é provavelmente cultural e identitário: a visão que a nossa civilização leva sobre o mundo vivo (humano e não humano) eleva o Homem (e o uso da palavra Homem em vez de humano não é por acaso) acima de tudo, e no centro de tudo. A natureza, na qual o Homem não se inclui (e à qual ele se opõe), é considerada como um conjunto de elementos sem coerência, muitos violentos, sempre anárquicos, que necessitam a intervenção humana para ser organizados, em « bom ordem », ou para explorar os recursos, ou para « manter/sustentar » os meios. Esse olher sobre o vivente torna difícil pensar espaços que escapariam totalmente à mão do Homem, tal como espaços onde vida « selvagem » e humanos « conviveriam ». Donde nos vêm tais paradigmos inteletuais?
Representações elogiando os jesuítas em Belén, no Paraguay. As imagens representam sucessivamente uma cena onde os jesuítas ensinam aos Guaranis como cultivar a terra; uma outra onde eles conduzem uma conversão de grupo, batizando os « indígenas » presentes; uma outra, enfim, onde os autóctones caçam e pescam, no modo supostamente tradicional.
Pensamento racionalista « moderno »: uma visão do progresso marcada desde o século XVI pela supremacia do Homem
A visão atualmente dominante, no Ocidente, da natureza e do nosso lugar nela, contem uma explicação histórica. Ela constitui, obviamente, a deriva de uma ideologia económica, política e cultural chegada gradualmente, desde o século XVI. Em muitos aspetos, o matemático e filósofo francês René Descartes (1596-1650) teve na construção deste olhar sobre o humano e a natureza – em forta ruptura com muitas crenças populares constatadas nas sociedades europeias durante a Idade Média – um lugar determinante. Ele afirmou em particular o dualismo entre o corpo e a alma, em ruptura com a tradição aristotélico. Ele radicalizou a sua posição, recusando de conceder o pensamento ao animal, o concebendo como uma « máquina » (sem alma), tal como o corpo humano, visto como o simples receptáculo da alma. No seu ensaio Calibã e a bruxa (2014), Silvia Federici, socióloga e filsofa norte-americana e italiana, resume assim a sua abordagem do assunto: « Desmostrar a brutalidade dos animais era essencial para Descartes, convencido que era ai que ele podia achar a resposta [às] perguntas sobre a localização, a natureza e a extensão do poder controlando a condução humana. Ele [procurava] a prova que o corpo só é capaz de ações mecánicas, involuntárias; que, por via de conseqüência, ele não é constitutivo da pessoa; que a essência humana reside portanto em faculdades puramente imateriais. O corpo humano é igualmente um autómato segundo Descartes, mas o que diferencia o "homem" da do bicho e "lhe" confire o controlo do mundo circundante é a presença do pensamento. Assim, a alma, que Descartes retira do cosmos e da esfera corporal, volta no centro da sua filosofia dotada de um poder infinito sob a capa da razão individual e da vontade. [...] Sendo divorciado do seu corpo, o eu racional perde com certeza a sua solidaridade com a sua realidade corporal e com a natureza. » Dedicado durante vários meses, em 1629, para preparar o seu Tratado do Homem, ao estudo da anatomia dos orgãos animais, à vivisecção e a visitas frequentes em açougues, Descartes escreveu mais tarde, correspondência, que a dor existendo só com a consciência, os bichos, « desprovidos de razão », não podiam sofrer da vivisecção e do abate...
Silvia Federici lembra, no mesmo ensaio, que a doutrina de Descartes, concebendo os animais sem consciência, sem alma, e portanto relevando apenas de uma « natureza mecánica », « representava uma inversão total em relação à concepção que tinha prevalecida na Idade Média e até o século XVI, que os considerava como inteligentes, e responsáveis, com uma imaginação particularmente desenvolvida e até a capacidade de falar ». Inscrevendo-se na continuidade com o pensamento cartesiano, esta relação ao mundo, que opõe o Homem à Natureza, a civilização à selvajaria, à barbárie, erigeu-se em única concepção aceitável do Progresso, com uma base supostamente racional. A « natureza » torna-se uma construção social que permite ao Homem de distinguir-se dela – por isso aspas acompanharão a maioria das vezes a palavra, neste artigo. O Século das Luzes, ou Iluminismo, com o seu elógio da Razão, vei confortar essa visão. Em Fundamentação dos Costumes (1785), o filósofo alemão Emmanuel Kant explicava: « Os seres cuja existência depende da natureza só têm um valor relativo, a de meios, e por isso as chamamos de coisas; pelo contrário os seres razoáveis são chamados pessoas, porque a sua natureza os designa como fins em si, ou seja, como alguma coisa que não pode ser apenas usado como meio alguma coisa que por via de consequência é um objeto de respeito. »
Dotados de razão, os humanos, e sem razão, a fauna e a flora, símbolos da anarquia que predomina o mundo se o Homem não intervem. E porque a educação, a instrução, a aquisição de saberes induzem a emancipação do Homem, opõe-se a sua alienação, permitida pela ausência de cultura. Portanto a Natureza opõe-se à Cultura, a selvajaria à razão. Esta visão atinge o seu apogeu entre o Século das Luzes e a expansão colonial do século XIX, e raros são os textos, por exemplo Suplemente à viagem de Bougainville, escrito por Diderot em 1772, que relativizam esta hierarquização colocando a Cultura (oposta à Natureza) no topo dos valores e do Progresso. Cultura no sentido ocidental da palavra: ou seja, onde domina o saber escrito, a crença numa visão linear da História, em « destinos manifestos », etc. Na citação de Kant, vemos bem a dimensão particularmente perigosa que podem tomar as suas palavras, pois além da visão que eles traduzem em relação à « natureza », uma tal lógica pode conduzir a desvalorizar todo indivíduo que não seria considerado como « razoável », a quem n~éao seria reconhecido a possessão da razão. Assim, entende-se melhor este adágio ecologico que diz que o olhar condescendente que levamos contra os seres viventes não humanos traduz de uma certa maneira uma forma de hierarquização que aplicamos também ao nosso olhar sobre os seres humanos. Aliás, as mulheres foram muito tempo excluidas da área da Razão, consideradas como frívolas, sem capacidade de controlar os seus sentimentos, as suas pulsões, presas do seu estado natural... No século XIX, até procurou-se provar cientificamento esta distância entre mulheres e Razão, para justificar o seu afastamento das esferas de poder e travar a sua emancipação. A frenologia (estudo dos crânios) foi particularmente colocada ao serviço dessas teorias. Igual para os povos colonizados, que eram considerados como próximos demais da Natureza, ou pela figura do « bom selvagem », (assimilada à uma visão idílica da vida no mato, nos lembrando a imagem que temos do Jardim do Éden), ou pela a da Barbárie, do Bárbaro (supostamente canibal, violente, analfabeto, pagão, etc.).
No nosso mundo, a lógica dos Modernos traduziu-se por formas radicalizadas de dominação, de exploração da « natureza », com o apoio sem limites da tecnologia. No seu infelizmente famoso Discurso sobre a África, proclamado em 1879, o autor francês Victor Hugo declarava assim, antes de chamar a apropriar-se aquele continente pela construção de estradas, de portos, de cidades, e pela expansão da agricultura e da demografia europeia: « Esta África feroz só tem dois aspetos: povoada, é a barbárie; deserta, é a selvajaria; [...] florestas surgem, vastos ramos obstruem ai e ali o horizonte; qual será a atitude da civilização diante desta fauna e desta flora desconhecidas? » Filosoficamente, o antrópologo e etnólogo francês Claude Lévi-Strauss explicou esta forma de dualismo natureza/cultura, não humanos/humanos, no prefácio (redigido em 1967) da sua tese chamada A estruturas elementas do parentesco (1948): « A oposição da cultura e da natureza não seria nem um dado primitivo nem um aspeto objetivo da ordem do mundo. Deveríamos ver nela uma criação artificial da cultura, uma obra defensiva que ela teria cavou a cerca dela porque ela só se sentia capaz de afirmar a sua existência e a sua originalidade cortando todas as passagens que pudessem atestar a sua conivência de origem com as outras manifestações da vida. » Entender: este dualismo é uma confissão de fraqueza, o revelador de um medo de pensar-se como um elemento de um conjunto maior (o vivente). Uma outra possibilidade seria que pelo contrário, é a ilustração de um enorme pecado de orgulho, um complexo de superioridade irrelevante.
Esta relação ao mundo declinou-se em um tipo de tríptico extrativismo-produtivismo-consumerismo ao qual acrescenta-se a financiarização da economia globalizada e uma rejeição incomensurável dos resíduos não recicláveis. Este tríptico alarga as lógicas mercantis a tudo o que estava fora (desde a Revolução verde na Índia na década de 1970, e na África desde a década de 2000, os pequenos camponeses que têm culturas de subsistência sabem bem disso), e torna-se em toda circonstância incapaz de uma qualquer sobriedade. Nesta visão, o vivente e o não vivente tornam-se matérias primas baratas (ou não, mas todavia comercializáveis). Sobretudo, a sua exploração não significa, do ponto de vista dos Modernos, a regressão irremediável da biodiversidade, o desaparecimento dos ecossistemas, uma perda para todo o vivente (humanos incluidos), mas mais o sinal do progresso da civilização... A colonização da África, da Ásia e da Oceânia, no século XIX, efectuou-se na mesma lógica, contra povos racisados considerados como próximos demais da natureza, incapazes que eles seriam a dominar para trazer a « luz » da civilização.
A entrada da água de California no mercado da bolsa de Wall Street, anunciada em 27 de Outubro de 2020 pelos operadores da bolsa Chicago Mercantile Exchange (CME) e Nasdaq, é um dos últimos símbolos deste mercantilização da « natureza », a qual atingiu o seu paroxismo com a financiarização e a globalização contemporâneas. Primeira mundial (e contudo, que passou despercebida), este evento é ainda mais grave porque este novo indício de bolsista poderia a longo prazo tornar-se « uma referência mundial em matéria de preço da água », segundo CME. A água torna-se assim um produto financeiro que junta-se ao petróleo e ao trigo num dos mercados os mais especulativos das praças bolsistas. Embora « o direito à água potável e ao saneamento é [reconhecido como] um direito fundamental, essencial à pleno usufruto da vida e ao exercício de todos os direitos humanos » pela ONU desde 2010, a água já tinha conhecido um precedente, tornando-se propriedade de fundos de investimento na Austrália, país onde, contudo, este recurso é particularmente raro – variando com a meteo, as cotações aumentaram os dividendos dos investidores nos últimos anos, causando a morte de muitos pequenas explorações familiares. Como todos os ecossistemas e os recursos naturais, a visão que é levada sobre a água, como a sobre o petróleo, o gás ou ainda o urânio e os metais raros, e talvez amanhã sobre o ar (através a possibilidade de viver perto de áreas onde respirar permaneceria suportável, quem sabe?), a nossa visão, portanto, é puramente económica, utilitarista e extrativista; ela provoca fortes desigualdades de acesso e provoca a destruição do vivente. Por lembrança, o Equador em 2008, e a Bolívia em 2009, inspirados pela cosmologia dos povos indígenas que os dominam demograficamente, inscriverem na sua Constituição respetiva, aprovada a final por referendo, « a água bem nacional comum submetido a um princípio de não comercialização ». A prova que a mercadorização de bens tão preciosos como a água não é uma fatalidade, nem corresponde a uma concepção universal do progresso, nem das matérias vivas e não vivas. Ainda antes do Equador e da Bolívia, em 2004, o povo do Uruguai, consultado por referendo de iniciativa popular, tinha aprovado uma alteração constitucional para consagrar o acesso à água e ao saneamento como direitos humanos fundamentais, proibindo assim a privatização desses setores públicos.
Paisagens montanhosos nos Alpes franceses, perto da fronteira italiana. Pode-se ver entre outras coisas uma barragem, e um gado bovino, marcas das atividades humanas nessas áreas naturais.
Religiões do Livro: um fundo antropológico antigo
Esta visão do humano e da sua relação com a Natureza, no Ocidente, encontra as suas origens num fundo antropológico ainda mais antigo do que as revoluções inteletuais e científicas da Idade Moderna (1492-1789): na religião cristã, e globalmente em todas as religiões do Livro (monoteistas). É preciso dizer que o pensamento cartesiano não rompe fundamentalmente com o cristianismo. Com ele, racionalismo não quer dizer ateismo, muito pelo contrário – Descartes também é conhecido para ter procurado desmostrar, nas suas Meditações metafísicas (1641), a existência de Deus. De fato, o dualismo cartesiano apoiou a ideia muito cristã da imortalidade da alma, e portanto de um estatuto particular do Homem, dotado de consciência (consciência do Mal e do Bem) mas submetido às tentações da « natureza » (« da carne », por exemplo, em particular por causa das mulheres, consideradas demasiadas próximas da natureza, demadiadas ligadas às suas pulsões animais, às suas emoções primárias...). Como repercussão, era induzida a necessidade de uma luta sem limite contra as crenças animistas herdadas da Idade Média, que infringiam o dogma bíblico.
No Novo como no Antigo Testemunho, encontra-se portanto – talvez inerente à própria crença em um Deus único e à convicção que os seres humanos foram concebidos por Ele (e a « natureza » para eles, para o seu uso) – a ideia de um humano acima de tudo, e a quem confere-se uma missão particular, um certo papel. João Paulo II, na sua Homilia aos trabalhadores da terra dada em Legazpi City, nas Filipinas, em 22 de Fevereiro de 1981, dizia: « A terra pertence ao homem porque Deus a confiou ao homem, e pelo seu trabalho o homem a submite e a faz fructificar (Cf. Gn 1, 28). » Aquele que foi papa entre 1978 e 2005, explicou ainda, no mesmo texto: « Em claro a Bíblia nos diz que a vontade do nosso Criador é que o homem age em relação à natureza como um mestro e um guarda inteligente e nobre, e não como um explorador sem escrúpulo. Isso é que deve-se entender quando é questão de "submeter" e "cultivar" a terra. » No seu Discurso à Academia pontifical das Ciências, pronunciado em 18 de Maio de 1990, o mesmo João Paulo II confirmou que « as plantas a comer e o jardim "a guardar" [...] nos são "confiados", não simplesmente colocados à nossa disposição », acrescentendo: « Nós somos administradores, não mestres absolutos. » Em breve, o humano não deve sobre-explorar a natureza, não deve a destruir, mas todavia ela lhe pertence. É um mestre bondoso que toma cuidado do seu jardim, o planeta Terra. Bento XVI, papa entre 2005 e 2013, não dizia outra coisa na sua Homilia do 3 de Junho de 2006, para a celebração das primeiras Vésperas numa vigília da Pentecostes, quando explicou que « devemos considerar a criação como uma doação que nos é confiado não para que seja destruida, mas para que se torna o jardim de Deus e, assim, o jardim do homem ». O humano deve portanto proteger a natureza. Mas a proteger de qué, ou melhor, e quem, se não for do próprio humano? Será que a natureza, as espécies, jamais previsaram da espécie humana para defender-se e auto-regular-se?
Decerto, quando a Génese diz: « Preencha a terra e submeta-la, dominem sobre todas as criaturas », o papa Francisco nos explica na sua carta encíclica Laudato Si', publicada em 2015, que o verbo « dominar » foi demais mal entendido, mal interpretado... Mas porque a sua interpretação da palavra seria justa, quando é explicitamente dito aos homens de submeter a terra (em hebreu kabas, « humiliar »)? Além disso, « dominar » tem uma definição clara, ou seja: ter, colocar sob a sua supremacia, sob a sua dominação; ser mais forte que; ter a supremacia sobre: ser o mais aparente, o mais importante, entre muitos elementos. Aliás, os cristãos sempre têm, até uma época muito recente, interpretado deste maneira o texto bíblico. Em Uma história popular dos Estados Unidos (1980), o autor e historiador norte-americano Howard Zinn descrivia assim a chegada dos primeiros colonos além-Atlântico: « Quando os Peregrinos chegaram na Nova-Inglaterra, eles também não encontraram uma terra deserta mas uma região povoada de Índios. John Winthrop, o governador da colónia da Baía do Massachusetts, pretextou para justificar a sua ocupação dos territórios índios que a terra era juridicamente "vaga". Os Índios, pretendia ele, não tinham "submetidos" a terra e, em consequência, só tinham um direito "natural" sobre ela e não um "direito real". E o direito "natural" não tinha nenhuma existência legal. Os Puritanos apelavam à Bíblia e em particular ao salmo 2,8 : "Pede-me, e darei-te as nações por herança e as extremidades da terra por possessão." » Na mitologia nacional dos Estados Unidos, na narração nacional, a noção de wilderness (« natureza selvagem ») é central: no contexto específico norte-americano, o conceito designa uma natureza selvagem supostamente virgem de toda humanidade, descoberta pelos primeiros colonos.
Deve-se « valorizar » a natureza, é a missão humana, ou sob ordem de Deus, ou por uma forma de « destino manifesto ». Não o fazer é um crime, que justifica a expropriação colonial dos povos indígenas pelo mundo – povos indígenas acusados de não ter « valorizado » a terra, a explorando. Por essência, a narração da Criação judeo-cristã dá inevitavelmente ao ser humano um lugar particular na Natureza, acima dela. Não é o igual da fauna e da flora terrestras. Por isso o papa Francisco segue o mesmo caminho que o seu predecessor João Paulo II, falando do dever do homem de cuidar do seu grande "jardim", a Natureza. E na História (Howard Zinn apenas menciona um exemplo entre muitos), é por esse raciocínio que os povos colonizados foram (e ainda são às vezes, para o que tem a ver com as comunidades indígenas) excluidos das relações jurídicas legítimas nà terra, pois eles apenas são vistos como elementos entre outros dessa « natureza », e participando pela sua falta de saberes e o seu atraso tecnológico à permanência do seu estado « selvagem ».
No seu discurso no Parlamento federal alemão em 22 de Setembro de 2011, Bento XVI deu a sua concepção da relação ao direito, à razão, ao ethos e à natureza, e as ligações entre essas diferentes noções. Monsenhor Jean-Louis Bruguès, secretário francês da Congregação para a educação católica, resume assim (num texto adido à carta encíclica do papa Francisco em 2015) o pensamento de Bento XVI: « O homem passa em primeiro. O homem é, podemos dizer, o alfa e o ômega do desenvolvimento, o seu agente e o seu destinatário. [...] O lugar central da pessoa humana evita colocar em pé de igualdade tudo o que existe, ao ponto de falar de um direito dos animais, das plantas ou ainda da matéria. Trata-se de um desvio totalmente sectário com alvo fazer esquecer que só o homem tem sido criado à imagem de Deus. Contudo, o homem tem deveres em relação às criaturas inferiores que lhe foram confiadas. »
Portanto 1) temos ai a ideia de uma hierarquia entre humano e vivente não humano; 2) há uma rejeição clara e categórica do princípio de direitos dados à natureza. A filosofia que alimenta esses dois princípios coloca o Homem acima de tudo, único capaz de « proteger » a natureza, de cuidar do seu grande jardim terrestro, ou até de o domesticar – para o seu bem, claro. Esse olhar é infantilizante para a natureza; até pode-se perguntar se as pessoas que levam este discurso entendem qualquer coisa aos mecanismos do vivente, às interações que ligam as espécies entre elas, e os meios entre eles, e às capacidades de resiliência das espécies não humanas. Muitos parecem ter esquecido ou ignorar que a história humana (ou seja, a história de homo sapiens) só representa 300 000 anos num total de várias centenas de anos de vida na Terra... E portanto que nenhuma espécie animal ou vegetal nunca esperou pelos humanos (nem mesmo aquelas que são hoje em dia domesticadas) para defender-se, organizar-se e prosperar. Todavia, esta lógica, sem ter necessariamente por base o argumento teológico, prevalece hoje, inclusive no pensamento « moderno », e torna laborioso o reconhecimento de direitos à « natureza ». Em toda a Europa, cada vez mais espaços e espécies são protegidos, as mentalidades mudam e é o mais importante, mas o caminho ainda é longo antes de realmente estar numa situação de reprimitivação (réensauvagement em francês, rewilding em inglês) que induziria uma relação renovada entre nós e a natureza; aliás, a legislação europeia (nacional ou comunitária) é bastante numerosa, complexa, diversa, imperfeita neste assunto, sem contar as excepções e outras derogações que a enfraquecem. Toda a gente coloca o interesse humano acima do da natureza, com uma lógica que opõe os dois lados.
Num afluente no sul do rio Amazona, no Estado brasileiro epônimo. Por lembrança, o princípio das « terras indígenas » na sua versão moderna foi estabelecido no Brasil na década de 1980, no crepúsculo da ditadura militar. Elas supõem a preservação de áreas naturais onde vivem comunidades indígenas cujo o modo de vida não condena os ecossistemas locais.
Addo Elephant National Park, na África do Sul. Os parques de animais deste tipo constituem áreas sem residentes humanos permanentes, apenas atravessadas por turistas sul-africanos e estrangeiros. Um modelo entre outros de área de preservação das espécies.
Ultrapassar os paradigmas intelectuais que estruturam a nossa visão « humanista », e depois?
Na visão ocidental, ainda mais desde a Revolução industrial desde a qual o consumerismo de massa induz a sobre-exploração sistemática de muitos tipos de matéria-prima, os elementos que compõem a « natureza » tornaram-se recursos exploráveis, valorizáveis no plano mercantíl, bens a transformar ou a consumir, e o vivente não humano é resumido a isso, a uma natureza-recurso. Tudo o que não entra no mundo do mercado é sem valor, sem consideração. A lógica é absurda, ao ponto que, se podemos falar de valor comercial dada à « natureza », é a exploração desta mesma natureza que, no pensamento ocidental, lhe dá o seu valor. Ela não tem valor em si. O preço de um pedaço de carne ou de um legume é a adição do custo de trabalho do criador ou do agricultor, dos seus ferramentas de trabalho, do transporte, do custo do serviço do comerçante, etc. Mas o consumidor não paga à natureza o « capital básico », ou seja, o bóio ou o fejão. O bem em si não tem nenhum valor... Este constato junta-se a um outro, absurdo também: a nossa sociedade ergueu em « barómetro », em indicador absoluto do Progresso, o « crescimento do PIB », teoricamente a criação de riquezas. Mas que chamamos de « riquezas »? Segundo aquele indicador, a destruição de hectares de floresta, para plantar o soja destinado a alimentar milhares de animais em criação instensiva, será vista como uma atividade criadora de riqueza e portanto positiva. Isso, sem que seja, a nenhum momento, « contabilizado » uma qualquer destruição de riqueza: nem o desmatamento, nem o empobrecimento dos solos, da biosiversidade ou os impactos sobre o clima; nem mesmo o sofrimento de milhares de animais elevados em condições abomináveis; nem os impactos sobre a saúde humana ou o bem-estar dos consumidores e dos trabalhadores... Na optica civilizacional ocidental, a Natureza é pensada como um recurso que podemos explorar sem limites, e não como uma essência, com um conjunto de atores viventes e de ecossistemas.
A dicotomia entre Natureza e Cultura, entre selvajaria e humanidade, é uma questão filosófica, mas a sua persistência tem também consequências concretas na nossa gestão dos espaços naturais, e mais globalmente na nossa relação às outras espécies viventes, tal como aos meios naturais (lagos, florestas, cursos de água, solos...). A França por exemplo, onde a herança cultural do Iluminismo e do racionalismo da Idade Moderna é tão pesada, desfaz-se bem laboriosamente dos seus preconceitos. Aparece óbvio isso, na dificuldade que se constata lá em certos assuntos que, no resto da Europa, são tratados de maneira mais serena. A reintrodução de espécies ditas selvagens, como os grandes predatores (ursos, lobos...), é muito ilustrativa, pois vê-se lá oposições importantes. Por lembrança, em 2021, o Estado francês tinha recebida uma advertência sobre o caso dos ursos reintroduzidos nos Pireneus. Assim, em 29 de Janeiro daquele ano, sob a pressão de associações ambientais, a Comissão Europeia pediu à França de « subsistuir os ursos matados pelo homem em 2020 e de proceder a novas largadas, como a lei lhe [o] impõe » – pois a medida aparecia efetivamente no roteiro do plano « Urso castanho » para 2018-2028. E em 4 de Fevereiro seguinte, o Conselho do Estado anulou parcialmente um decreto do 27 de Junho de 2019 que tinha aberto a possibilidade, em particular no território meridional de Ariège (após ataques supostas sobre gados de ovelhas), de recorrer ao assustamento dos ursos com tiros não letais. Em 2020, três ursos tinham sido matados, ou por baleamente ou por envenenamento, dos lados francês e espanhol – não tinha acontecido algo similhante desde 2004. Em França e mais geralmente na Europa, continua a ser considerar que um espaço só pode ser explorado ou sanctuarizado, sem possibilidade de alternativa entre as duas escolhas, sem possibilidade de atividades humanas que sejam respeituosas do vivente e dos meios, ou até que jugassem das interações e das interdependências com as outras espécies. As coisas mudam lentamente no terreno, questionando décadas de séculos de produtivismo e de extrativismo obstinados, durante os quais consideramos vezes demais que o crescimento era infinito e que ele só podia fazer-se ao custo da « natureza », a eliminando ou a planejando. Mas a classe política, os atores económicos e os canais mediáticos mainstream têm grandes dificuldades em acompanhar as mudanças paradigmáticas; ainda perpetuam uma visão tradicional do Progresso, ecocidário e irrevocavelmente ligado ao crescimento do PIB...
A questão do olhar que levamos sobre a natureza não é só anedótica. Ela diz tudo das escolhas e das posturas que entendemos adoptar em matéria ecológica, como também em termos de desenvolvimento e de (sobre-)exploração dos recursos. A problemática é particularmente pregnante num país como o Brasil, onde a cosmovisão dos povos indígenas opõe-se claramente à a da maioria da população (Brasil: será que « Índio não quer terra, quer dignidade »?), e onde as problemáticas ambientais são capitais, a curto e a longo prazo (Presidência Bolsonaro: no Brasil, as comunidades índigenas no impasse). Enquanto preservamos uma visão que consagra a oposição, a distinção entre Humano e Natureza, no pior dos casos, teremos políticas governamentais que irão destruir ainda e ainda o meio ambiente, em nome do progresso, e no melhor dos casos, as contradições exprimirão-se continualmente (COP 21, mudança de paradigmas, transição ecológica: tudo fica para fazer). Os nossos dirigentes adoptam assim, sucessivamente, uns após os outros, atitudes esquizofrênicas, alternando posições em favor do clima ou do meio ambiente, e declarações, renunciamentos ou decisões ao benefício dos interesses extrativistas. As atividades humanas não são pensadas como atividades de uma espécie vivente no meio do vivente, mas bem mais como antinómicas com a « natureza ».
Felizmente, iniciativas de terreno participam a fazer evoluir as práticas e as atividades humanas, e a mudar o nosso olhar sobre o vivente (Movimentos de protesto « ilhas de inovação »: quando o cidadão, um passo à frente dos seus dirigentes, quer investir a esfera política). As linhas mudam pouco a pouco, a medida que as cidadãs e os cidadãos questionam-se sobre a relevância do modelo de desenvolvimento que prevalece no Ocidente – e que a crise de COVID-19 a partir de 2020 participou a destabilizar grandemente (Que lições tirar da crise do COVID-19? (1/2) Meio ambiente, hierarquia social, trabalho: uma revolução das prioridades?). Contudo, o veremos na segunda parte deste artigo, o caminho ainda é longe para transformar essas ilhas de inovação (permacultura, silvicultura razoável, florestas em livre evolução, iniciativas para reduzir a produção de resíduos sólidos...) em verdadeiro contra-modelo que ambicionaria tomar o ascendente político e cultural a uma escala mais ampla. O fracasso da iniciativa Yasuni-ITT no Equador, durante a presidência Correa em 2013, contudo favorável a uma abordagem renovada da questão ecológica, é ilustrativo, tal como é significativo a incapacidade da grande maioria dos Estados pelo mundo a atingir os seus objetivos de redução das emissões de gás com efeito estufa, definidos na COP 21 em Paris em 2015 – objetivos porém pouco ambiciosos, dada a situação. A cobardia das classes dirigentes, o apetite sem limites das grandes empresas extrativistas, e a vontade de todas as classes médias ocidentalizadas (ou em via de o ser) de consumir, são razões em causa, entre muitas outras. Continuamos portanto avançando no impasse do nosso modelo de desenvolvimento.
Para aceder à segunda parte deste artigo: Ecologia: Será que podemos desconstruir a nossa relação com o vivente e os ecosistemas? (1/2) A necessidade de pensar-se como parte integrante da « natureza »
Mato de pinheiros na região de Leiria, no Portugal. Área não urbanizada e sem artificialização dos solos, é paradoxalmente o exemplo de espaço de « natureza » totalmente gerido e enquadrado pela mão dos seres humanos, sem princípio de « livre evolução ». É uma forma entre outras de gestão dos espaços naturais; a questão sendo, quais são as margens de circulação e de desenvolvimento das espécias animais e vegetais neste tipo de espaço?
A seguinte passagem é extrata do ensaio de Silvia Federici Calibã e a bruxa, publido em versão original em 2014. Ela explica como, no início da Idade Moderne, o Estado e os pensadores racionalistas trabalharam para aniquilar as crenças populares herdadas da Idade Média relativas à magia e aos poderes conferidos ao corpo humano. Ela explica em particular como o corpo, colocado ao serviço do capitalismo nascente, foi gradualmente visto sob uma dimensão « mecánica », com dissociação entre o corpo e a alma. Para permitir a esta concepção de impor-se, era portanto preciso « [destruir] toda uma série de comportamentos, de práticas e sujeitos sociais precapitalistas cuja existência entrava em contradição com a regulação da atitude do corpo prometida pela filosofia mecanista ». « Por isso, poursuit-elle, no apogeu da "Idade da Razão", a idade do cepticismo e da dúvida metodológica, tivemos um ataque feroz do corpo, tão bem apoiado por muitos dos que aderiam à nova doxa. »
É assim que deve-se entender o ataque contra a bruxaria e contra esta visão mágica do mundo, a qual, apesar dos esforços da Igreja, prevaleu ao longo da Idade Média no povo. Ao fundamento da magia, havia uma concepção animista da natureza que negava qualquer separação entre matéria e espírito, imaginando assim o cosmos como organismo vivente, povoado de forças ocultas, dos quais cada elemento era em relação « de comunião » com o resto. Nesta perspetiva, [...] a natureza era vista como um universo de signos e de assinaturas, indicando invisíveis afinidades que deviam ser decifrados. Cada elemento, as ervas, plantas, metais, e acima de tudo o corpo humano, tinha virtudes e poderes que lhes eram próprias. Assim, um conjunto de práticas foram elaboradas para apropriar-se da natureza e fazer vergar os seus poderes à vontade humana. Da quiromantia à divinização, do uso de encantos à cura por comunião, a magia abria um ampla horizonte de possibilidades.
Silvia Federici, Calibã e a bruxa. Versão original: 2014; versão portuguesa: 2017.
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