A sociedade de consumo na Europa: crônica de uma construção sociocultural não-sustentável
« A igualdade existe apenas quando cada um produzirá de acordo com as suas forças e consumirá de acordo com as suas necessidades. » Essa frase, em Organização do trabalho (1839), um livro escrito pelo historiador e jornalista francês Louis Blanc (1811-1882), nos convida a pensar sobre o fenômeno de consumo como fator de desigualdades sociais. Ainda mais porque, já há alguns anos, foram muitas as decisões políticas que favorecerem, na Europa, diretamente ou indiretamente, o consumo das famílias. Como se fosse um elemento necessário à boa saúde da nossa economia, ou ainda ao desenvolvimento da nossa sociedade, no contexto de competição internacional. A mensagem nas sociedades capitalistas foi claro, ao longo do século XX: consumir, era um ato cidadão. Elementos de reflexão e resenha histórica.
Vivemos num mundo no qual tornou-se comum confundir os direitos e as vantagens dados pela cidadania com a liberdade de empreender e de consumir, como elementos óbvios de uma prática política democrática. Essa posição foi resforçada após a queda do Bloco socialista na Europa oriental em 1989. Essa concepção positiva do consumidor considerado como « o cidadão » em si, e da livre-empresa como motor ideal da democracia tornou-se dominante após a Segunda Guerra mundial e o início do que chamamos o consumo de massa, ou seja, a adopção de hábitos de consumo a uma grande escala que implicam não apenas o aumento do consumo individual (em valor e em volume) mas também a sua diversificação e um papel mais significativo do consumidor na definição dos produtos.
Na década de 1930, por outro lado, dirigentes de cooperativas de consumo, operários exigindo um salário melhor, e ligas de consumidores pedindo condiçéoes de trabalho justas, defendiam, tanto nos Estados Unidos e na Europa, o fato que a democracia dependia, precisamente, de uma crítica do capitalismo e das suas contrapartes, nos quais havia o consumo de massa. Membros da Escola de Frankfurt (Alemanha) – criada nos anos 1920 sobre a ideia que, inspirada pelo marxismo e o Iluminismo, a filosofia deve permitir uma crítica social do capitalismo – denunciaram então o consomumo como destruidor para a democracia, assimilando o consumidor moderna não a um cidadão perfeito, mas ao contrário ao sujeito perfeito de um regime autoritário. Por outro lado, menos de um meio-século depois, Ludwig Erhard (1897-1977), ministro da Economia da República Federal Alemã (RFA) entre 1949 e 1963, considerado como o pai do « milagro alemão », declarou: « Cada cidadão deve ser consciente que a liberdade de consumir e a livre-empresa na área econômica são direitos fundamentais e inalienáveis, cuja violação deve ser punida como sendo um ataque contra a nossa ordem social. » Tudo está dito.
Mais recentemente, outras palavras vieram confortar essa ideia. Em 19 de Maio de 2011, falando sobre o movimento de protestos das Primaveras árabes, o então presidente norte-americano Barack Obama declarou: « O apoio dos Estados Unidos para a democracia baseará-se na estabilidade financeira, na promoção de reformas, e na integração de mercados concorrenciais uns com os outros e com a economia mundial. » Aquele que era presidente da primeira potência ocidental (e mundial) colocava então em corolário incontornável da democracia não só o sistema capitalista, como também o livre-comércio econômico globalizado e a concurrência dos mercados.
O choque dos « Trinta Gloriosos »
Em uma geração, a Europa ocidental recuperou após 40 anos de guerras, de fronteiras fechadas e de repressão. O desempenho econômico e os modos de consumo chegaram aos padrões de consumo dos Estados Unidos apó 1945, de tal forma que menos de uma década depois dos desastres da guerra, os Europeus entraram plenamente na era da abondância, com surpresa. Eles abordam então numa mundo de consumo cuja materialização parecia um sonho, estado muito suspeito para indivíduos que saiam de uma década de pesadelos. Para responder às expectativas de opiniões que reclamavam os primeiros frutos das promessas anunciadas em 1945, vimos o estabelecimento de economias mistas e um certo número de sinais da expansão dos anos 1950-1970, com em particular o aumento significativo do comércio intra-europeu. Ao nível da oferta, é uma mudança das mentalidades: antes da guerra, vendia-se bens caros, em pequenas quantidades, em séria limitada e pouco renovada; agora, apostamos na competitividade para objetos trivializados que é preciso vender com margem reduzida, contando com a qualidade da oferta e da importância da demanda.
Esse último ponto destaca a conjunção na origem da expansão dos anos 1950-1970. O período que chamamos tradicionalmente Trinta Gloriosos vê a propensão dos Europeus a consumir aumentar de tal forma que fala-se de « consumo de massa ». Muitas estatísticas confirmam essa tendência: o consumo por pessoa no Sul da Itália no meio dos anos 1970 dobrou em vinte anos. A renda local aumentou em média de 4% por ano na mesma altura; a mortalidade diminuiu pela metade e a electrificação quase foi completa. Essas mudanças ocorrem dentro de uma geração em uma das zonas mais marginalizadas da Europa.
Consumo de massa: processo social e cultural comum na Europa após a guerra
Indicadores fortes, foram o fim da gricultura como primeiro setor das economias europeias, e a aceleração do êxodo rural. Em 1945, só a Bélgica e a Inglaterra contavam menos de 20% dos seus ativos trabalhando no setor agrícola; em 1975, nenhum país da Europa ocidental ultrapassa 20% de ativos agrícolas; dez anos mais tarde, só o Portugal está perto de 15%. Quanto aos Estados da Europa de Leste, que lançaram-se mais tarde e com níveis ainda superiores a 50% dos ativos, eles estão se alinhado à força: a Bulgária é a primeira, em 1990, a descer em baixo de 15% de agricultores na população ativa. No entanto, as mudanças não foram simples. Foi preciso um misto de factores, como a subida da produtividade do trabalho, o maneot dos salários e do poder aquisitivo, a queda do desemprego, a liberalização gradual do comércio intra-europeu e internacional, o progresso social e o Estado-providência (que permitem às classes médias de preocupar-se de coisas mais triviais), ou ainda o desenvolvimento da publicidade e de meios de difusão de massa (como a televisão). Até então, na Europa pelo menos, apostar na demanda representava uma transgressão: abandonava-se a frugalidade para o consumo de massa, contava-se nos lucros criados pelas despesas supostas superficiais como os lazeres, privilegiava-se a moda, as suas virtudes democráticas e a sua pressão constante sobre a oferta através da renovação dos produtos. A aprendizagem foi difícil, pois era necessário as opinões convencer-se de uma amelioração das suas rendas, nominais num primeiro tempo, reais num segundo. Isso significava que os salários aumentassem num ritmo mais rápido do que a inflação, durante vários anos. Portanto, de romper com a tradição dos salários baixos, estabelecida há vinte anos.
Mas a hipótese de uma recuperação salarial, avançada na Itália, na Holanda e na França, não era suficiente para mudar os comportamentos. Era o preço usual dos tempos que seguiam a guerra. Aliás, o primeiro reflexo dos trabalhadores foi de aumentar as suas poupanças de precaução, a partir de 1954-1955, quando os salários ficaram superiores. Eles não acreditavam mais à modificação sustentável da partilha do valor agregado em favor do salário e em detrimento do lucro, graças aos ganhos de produtividade. A prosperidade pelo progresso técnico, eles já tinham ouvido falar disso depois de um outro pós-guerra, antes de conhecer a maior crise do capitalismo. Os Europeus sonhavam em ver as suas rendas, de forma segura por parte, para finalmente constituir-se um patrimônio.
Par transformar profundamente as mentalidades, foi necessário a coincidência entre uma decisão política e uma evolução sociológica de longo prazo. No início, há a aceitação unânime do princípio chave do « Estado de bem-estar », por meio das transferências sociais. Indivíduos e empresas financiam o seu custo (pelo imposto e pelas cotisações); eles admitem a sua função redistributiva dada por meios desiguais; eles reconhecem aos poderes públicos um direito a cobrar para o bem comum. Para isso, era necessário que o total das vantagens perceptíveis supera os custos do sistema e seja considerada preferível ao restabelecimento de uma privatização dos riscos. E foi o que aconteceu: o Estado de bem-estar era feito por medida para as classes médias. Com as suas prestações garantidas, reduziu-se os riscos do presente, assegurava-se o tempo pós-vida ativa, preparava-se o futuro das crianças, melhor alimentadas, mais bem cuidadas, e educadas por mais tempo; sobretudo, tinha-se uma renda recebida em datas fixas. Em um quarto de século, a média dos subsídios recebidos foi multiplicada por quinze. Os países adoptam medidas sociais, sem preocupar-se da cor política dos que as iniciaram ou as conceberem: os Belgas e os Franceses procuparem-se com o seguro sobre os acidentos do trabalho, os Italianos e os Suíços sobre o seguro de velhice. Por enquanto, a então harmonização contava menos do que os efeitos econômicos de arrastamento. Em 1974, menos de 20% da população ativa ocidental escapava ao regime público de seguro social e a taxa média de cobertura dos riscos dobrou. Se acrescentamos a isso um amento dos salários nominais de 150 a 200%, os « anos-providências » merecem o seu nome.
O início da bancarização do consumo (com a explosão do crédito ao consumidor) acrescentou-se ao contexto particular pós-guerra que tornou urgente a rápida reconstrução das infra-estruturas do continente. A organização das nações unidas (ONU) estima que, em 1949, eram 9% a parte do parque imobiliar europeu destruida em totalidade ou por parte pelos combates. Em certas regiões, como as costas da Mancha (França, Bélgica, Holanda), o centro da Itália e o Sul da Grécia, até ultrapassa-se os 20%. Reconstruir supõe então um crédito barato (graças à inflação), perspetivas de rendimentos superiores aos dos outros investimentos para os investidores, e sobretudo o desejo de aceder a um estatuto social invejado por um ganho de espaço e de conforto. Em 1950, os países da Europa do Norte e o Reino-Unido ofereciam habitações, sobretudo, com água e eletricidade, e sanitários independentes – quando só um terço dos prédios tinham as mesmas vantagens na Grécia. Quinze anos mais tarde, a Europa do Sul compensou a maior parte do seu atraso sobre a conexão elétrica, e sete anos depois, sobre os padrões de higiene. No final da década de 1960, com excepção os Portugueses e os Irlandeses sob ou mal alojados, os Europeus contemplavam as grandes barras de habitações, novas e de betão, em Sarcelles (França), Florence (Itália) e Hamburgo (Alemanha).
O baby-boom que acompanha essas mudanças, em parte devido à melhoria do sistema de saúde e à queda da mortalidade infantil, também estimula o consumo. Acrescenta-se o inícia da era do tudo-plástico, na ilusão de um planeta com recursos naturais infinitas. É uma demarcha realmente cultural: a adopção do American way of life. Com alvo satisfazer uma necessidade vista como legítima, o consumo de massa melhorou o nível de vida geral sem eliminar no entanto as desigualdades. A grande depressão dos anos 1930, e depois as privações impostas pela guerra, facilitaram na Europa um desejo de alargar os consumos – uma atitude que já tinha-se manifestada durante os « anos loucos » da década 1920. Depois da guerra, foi necessário não só preocupar-se dos elementos de conforto para tornar a vida do dia a dia mais fácil, mas também manter a ilusão de uma homogeneização do corpo social graças à generalização de certas formas de consumo (carro, roupas, televisão, electrodoméstico, produtos culturais, etc.). O Plano Marshall, que beneficiou a 16 países, teve um papel determinante. Não é só a ideia de uma « república dos consumidores » que é importada, mas também de novas práticas de consumo vindo da América pós-guerra. Os principais administradores norte-americanos desse plano são todos capitões de indústria; membros do Conselho da publicidade (Advertising Council) ajudam regularmente à produção de exposições itinerantes europeias. Tudo é feito para para mostrar diretamente aos chefes de empresas e aos dirigentes políticos o modo de vida americano, através as Casas da América, os filmes de Hollywood, a música, a literatura ou ainda o teatro além-Atlântico, muito difundidos.
Modos de vida mais rápidos e sequenciados
Nos Trinta Gloriosos, a demanda de produtos de consumo corrente renovou-se em profundidade. Foi o efeito de um conjunto de coisas, ou seja, a urbanização, a moda, a publicidade, num contexto de crescimento econômico e de conforto financeiro das famílias. Com trabalho cada vez mais longe da casa, procuramos ganhar tempo na preparação das refeições, comprando um frigorífico para guardar os alimentos, os mesmos condicionados sob a forma de latas ou transformados (como os produtos lácteos), rapidos para cozinhar, fabricados em séria e promovidos por argumentos comerciais na moda: iogurtes e leite em pó para o crescimento das crianças, que escapam assim às pequenas sopas dos seus antepassados, café solúvel, refrigerantes e cereais para copiar os Americanos – cuja figura é promovida através o cinema e os programas TV –, protótipo do Ocidental com boa saúde e ativo ao trabalho. Quanto às mulheres, elas renovaram mais vezes saias em tecido sintético, portanto mais baratas mas deixando uma margem maior para o fabricante; e a evolução anual da forma, do comprimento e da cor de acordo com uma moda promovida pelas revistas especializadas reduziu os prazos de renovação, enquanto as unidades diminuavam. A observação vale para as crianças, logo no início dos anos 1960, e depois para os adolescentes dez anos mais tarde, e os aposentados, habituais negligenciados, a partir de 1972-1974.
Todas essas evoluções devem ser colocadas em perspectiva com uma redistribuição geral das despesas das famílias. A diminuição das despesas alimentares é ilustrativa: acabadas as penúrias de antes da guerra, a alimentação tornou-se mais rica e mais diversificada – o consumo de cereais diminuou em comparação com a carne, o leite, os frutas e os legumes. A autonomia alimentar ganhada com a Política Agricole Comum da Comunidade Econômica Europeia, a famosa PAC, permitiu um diminuição dos custos e da parte da alimentação nas desmesas domésticas. Apenas saidos do racionamento, os consumidores escolhem então de adquirir bens sustentáveis, particularmente o carro e os produtos electrodomésticos que melhoram o conforto do dia a dia. A « cabaz de compras » que representava quase a metade da renda das famílias em 1950, só representava um terço da mesma em 1960 e só um quinto em 1980, com é verdade certas diferenças significativas segundo os países e as classes sociais.
As despesas nas roupas conheceram uma evolução semelhante: veste-se melhor do que antes, gastando nisso uma parte menor dos recursos. Outros tipos de despesas impõem-se então, mais dedicadas ao conforto do dia a dia ou aos lazeres. Por exemplo, a indústria do brinquedo em França aumentou as suas vendas de 350% só no início do baby-boom, entre 1948 e 1955. Após a guerra, a aquisição da moradia mobilizou a maior parte das poupanças das famílias; ela depois logicamente provocou a compra de mobiliários e produtos electrodomésticos que colocava-se dentro da habitação. Geralmente, três bens de equipamento semi-sustentáveis sirvem como referência: o frigorífico (em França, 3% das famílias tinham um em 1946, contra 91% em 1973), a máquina de lavar a roupa (de 10 a 90% no mesmo período), e o carro cujo número em circulação passou de 1 para 15 milhões em França, com uma faicilitação do crédito. O desenvolvimento da televisão ocorreu principalmente nos anos 1960, pois passamos 15 e 80% das famílias com um televisor.
Após 1960 acrescentou-se o desenvolvimento rápido do consumo dos serviços: despesas de saúde (apoiadas pela implamentação de sistemas de seguro social e de seguro de saúde), despesas culturais e de lazer (livros, discos, filmes, turismo, videojogos), sem esquecer os serviços de telefonia, os serviços bancários e as despesas em seguros diversos que representam até johe uma parte significativa do orçamento das famílias. A importância do consumo de bens sustentáveis foi muitas vezes sobre-estimados. De fato, a compra de um caro ou de uma televisão marcava um passo na vida da família, revolucionando as formas de lazer no dia a dia. A vizinhança presta atenção a isso, por isso há uma certa gratificação procurada. No entanto, a disseminação da automóvel, da televisão ou de electrodomésticos não foi tão rápida como uma epidemia. Houve uma progressão por etapas. Pois a aquisição desses produtos carros, investidos de uma forte identificação social, foi o resultado de uma alquimia delicada entre o custo do desejo, a satisfação prática vindo da compra e a sua eficiência em termos de estatuto social. Claro, a compra não era acessível a todos, mas tinha que o ser a um número de consumidores suficiente para permitir economias de escala na fabricação.
Iremos de uma sociedade de consumo para uma sociedade de razão?
Economistas e sociólogos não veem limites teóricos no desenvolvimento do consumo, enquanto as rendas e a tecnologia estão ai. Aliás, o consumo de serviços parece ainda mais aberto do que o de bens materiais que podem atingir um certo grau de saturação. E é possível programar a renovação dos produtos pelo desgaste (é a famosa « obsolesciência planejada »), pela moda e pela modernização dos modelos (uma nova opção e um novo design que podem sozinhos justificar a compra de um produto, e a ilusão de uma diferença entre bens na verdade similares). E o questionamento do consumarismo de massa, no final da década de 1960, parece mais, à final, ao última reação do resistente derrotado, do que a um processo de longo prazo em favor dos modos de vida mais caracterizados pela frugalidade.
Todavia, será que a necessidade de inventar um novo modelo já foi tão urgente? E será que o contexto de crise econômica e financeira que conheceu recentemente a Europa não nos oferece a ocasião de o fazer? Os tempos atuais são favoráveis à aparição de noções mais razoáveis, como a « justa definição das necessidades », a « inovação frugal », a « economia social e solidária » (o que supõe que a economia clássica não é nem social nem solidária; frugal, claro ela é ainda menos), etc. Obviamente, há uma oportunidade, mas isso necessita uma visão e uma vontade política ainda bastante ausentes geralmente. As autarquias, e sobretudo os municípios, parecem mais à vanguarda, mas isso permanece muito insuficiente e dá aos sucessos locais ares de « experimentações-pilotos » que poderiam ser amplificadas. Talvez, diante da inércia ou da pusilanimidade dos responsabilidades políticos, é à escala local, ou cidadã, ou sobre iniciativa do tecido associativo, que podemos esperar mais mudanças e a aparição de « ilhas de inovação », expressão da filósofa e autora francesa Cynthia Fleury (11 de Outubro de 2014, num canal público francês). As iniciativas locais ao serviço de uma outra concepção do capitalismo, do comércio, e do consumo, são evidências tangíveis, organizadas e às vezes (cada vez mais) interconectadas, que provam que uma mudança de paradigma de sociedade é possível (Movimentos de protesto e « ilhas de inovação »: quando o cidadão, um passo à frente dos seus dirigentes, quer investir a esfera política). Nesse contexto de lenta transformação, o papel do político muda: ele já não está na iniciativa, mas ele valida, generaliza, faz conhecer, legitima uma ideia que tinha ficado até então numa forma de insularidade.
As estruturas de uma sociedade de consumo de massa são fundamentalmente desiguais. Pois a produção de massa de bens e de serviços baratos, rapidamente acessíveis e diversificados, necessita a disponibilidade, em massa também, de uma mão de obra totalmente dedicada à economia produtiva, e cujo próprio acesso à sociedade de consumo será muito limitado – excepto se os trabalhadores e os consumidores são o mesmo público, como o desejava em seu tempo o empresário Henry Ford, quando ele aumentou o salário dos seus operários de fábrica. Num munto aberto, dado os interesses contraditórios, o desequilíbrio das negociações comerciais e as diferenças de níveis de vida, o resultado só pode ser catastrófico. O exemplo da indústria têxtil é emblemático, mas não é um caso isolado (Livre-comércio globalizado: quando a conscientização coletiva demora). Para milhões de consumidores de I-pad, tablets ou computadores, carros ou camisolas, quantos milhões nas fábricas, sem consideração nos seus direitos e nas suas aspirações pessiais, na sua saúde física e na sua segurança no trabalho? O fato de ver uma metade do planeta preocupada pela outra, é atualmente uma questão marginal. A loucura do consumo nos deixa cegos. E assim, permdemos a nossa humanidade.
Aliás, o surgimento de fortes reivinducações ecológistas há trinta ou quarenta anos permitiu sublinhar os efeitos dramáticos sobre o meio ambiente e a saúde de muitos dos nossos consumos e dos nossos resíduos. Tal como o impacto de comportamentos « contra-natureza », como o sobreconsumo de carne e de produtos lácteos. Apesar progressos incontestáveis e felizes da medicina há mais de um século, os nossos modos de consumo (e de produção) fazem surgir problemas que necessitem tratamentos medicais, os próprios tendo efeitos segundários que trazem outros problemas. Disso tudo, nasce a necessidade de uma reivindicação de crescimento diferente, menos frenético, que permite privilegiar equipamentos coletivos negligenciados tempo demais ao benefício do consumo individual. Entramos na economia do conhecimento, que é infinita e que deve nos permitir nos reinventar, não só como consumidores, mas antes de tudo e sobretudo como cidadãos ao serviço do bem comum.
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O texto a seguir é tirado do livro A crise da cultura, publicado em 1961 e escrito por Hannah Arendt (1906-1975), uma jornalista e filósofa alemã que tornou-se norte-americana em 1951, após a sua partida da Alemanha em 1933 e a sua chegada na América, em 1941. Ela é conhecido por seus escritos sobre o totalitarismo, mas também sobre a modernidade e a filosofia histórica.
A sociedade de massa talvez ainda é mais séria, não por causa das próprias massas, mas porque essa sociedade é essencialmente uma sociedade de consumidores, onde o tempo de lazer não serve mais a perfecionar-se ou adquirir uma melhor posição social, mas a consumir cada vez mais, a divertir-se cada vez mais. […] Acreditar que uma tal sociedade tornará-se mais « culta » com o tempo e o trabalho da educação, é, eu acho, um erro fatal [...] a atitude do consumerismo, supõe a ruína de tudo o que ela toca.