Guerra na Ucrânia (2/2): que lições geopolíticas e militares podem ser tiradas do conflito?
Há um ano exatamente, em 24 de Fevereiro de 2022, a Rússia lançou as suas forças numa invasão da Ucrânia. Para surpresa de todos, o exército russo procurou uma invasão global: não só um fortalecimento territorial das repúblicas secessionistas do Donbass, mas a tomada da capital ucraniana (e a substituição do poder ucraniano por um governo fantoche submetido a Moscovo). As tropas russas tentaram então conquistar Kiev por dois eixos, um vindo da Rússia, outro da Bielorrússia, de um lado e do outro do rio Dniepr. Essas ofensivas foram paradas de forma sustentável a uns kilómetros da capital. A que chegou a mais perto de Kiev, vindo do Leste, chegou a 15 km, ao custo de muitas outras cidades alvos, o alongamento das linhas de colunas russas tornando essas particularmente vulneráveis, além de complicar o seu provisionamento e de enfraquecer a sua coesão no combate.
Anunciado de forma explicita pelo comando russo em 25 de Março (apenas um mês após o início do conflito), Vladimir Putin decidiu no final de Março e início de Abril uma mudança de estratégia, com a retirada nas frentes do norte para concentrar-se nas regiões do sul e do Leste, muito russófonos. O objetivo de atingir Kiev era portanto voluntariamente abandonado, para evitar o desastre ou uma estagnação mais dispendioso. Contudo, o resultado dessa reafectação foi quase nulo em termos de ganhos territoriais, e as forças ucranianas até puderam marcar pontos com realizações simbólicas, como a destruição, em 17 de Abril de 2021, do cruzador Moskva, o mais importante do mar Negro – em serviço desde 1983, esse návio portador de mísseis tinha a carga de cobrir o resto da frota e um eventual desembarque de tropas russas na região de Odessa. Outro exemplo quando, no início do Verão, a frota ucraniana recuperava a Ilha dos Serpentes, conquistada em 24 de Fevereiro de 2022 e deixada pelos Russos em 30 de Junho.
Pior para a Rússia, cinco meses após a redistribuição estratégica do seu exército, em 29 de Agosto e durante o mês de Setembro, a Ucrânia lançava uma contra-ofensiva para a reconquista dos territórios perdidos nas regiões meridionais e orientais. Em quinze dias, 6 000 kilómetros foram recuperados pelos Ucranianos, do lado de Kherson, na margem do mar Negro, e sobretudo na região oriental de Kharkiv, ao custo, do lado russo, do equivalente de três ou quatro brigadas, uns quarante tanques, uns cem veículos blindados de tipos diversos, nove sistemas antiaéreos e dois aviões de combate. Certamente, desde então, o progresso ucraniano foi mais lento; além disso, as vitórias ucranianas devem ser relativisadas, num contexto em 1) o exército ucraniano recebo um apoio impressionante (económico, logístico, material) dos Ocidentais, et 2) esses sucessos explicam-se também pela deserção ou a não resistência de soldados russos que não querem arriscar a vida para a conquista da Ucrânia. Contudo, esse avanço rápido dos Ucranianos revelou uma viragem – estratégica mas também psicológica – nessa guerra.
Essas três datas – a invasão iniciada em 24 de Fevereiro, a redistribuição russa anunciada em 25 de Março, a contra-ofensiva ucraniana lançada em 29 de Agosto – dão uma indicação simbólica das dificuldades encontradas pelos Russos, que pouca gente tinha antecipado – sobretudo no comando russo. Embora a guerra está longe de ser acabada, é possível, um ano depois, tirar umas lições, não só para a Rússia, sobre o seu exército e a sua relação à sua vizinhança próxima, mas também para os Ocidentais e a geopolítica europeia.
Ainda mais porque ela não estava esperada, pelo menos com este tamanho, a invasão russa provocou um choque psicológico sem precedente nas últimas ddécadas. Para o ilustrar; os protestos espontâneos de apoio ao povo ucraniano que foram observados em muitas capitais, mas também os anuncios apocalípticos de uns e outros que, nas mídias e para criar-se sensações, já previam a invasão de toda a Europa pela Rússia de Putin, uma guerra mundial e bombardeamentos nucleares. Contudo, uma coisa é certa: jamais o exército russo irá, na Europa, além da antiga esfera soviética. Pois os países antigamente membros do Pacto de Varsóvia já integraram a OTAN – realidade que, aliás, vem legitimar, do ponto de vista de Moscovo, a invasão da Ucrânia, por receios de ver Kiev seguir o mesmo caminho. O princípio de solidariedade estabelecido entre os Estados que assiaram o Tratado do Atlântico Norte proibe quelquer um, incluido a Rússia, de ataquar-se a um dos seus membros: quem invade um país da OTAN, declara automaticamente a guerra aos Estados-Unidos, como também à França e ao Reino-Unido, ou seja, três potências nucleares. A fantasia de uma guerra total, mundial e nuclear era portanto totalmente infundada, pois significaria a morte da Rússia – sabemos Vladimir Putin imprevisível, no entanto ele não é totalmente estúpido ou suicido.
Essa constatação nos conduz a questionar a disproporção de certas escolhas que foram feitas nos primeiros dias do conflito, e substentabilizadas depois, sobre o fortalecimento dos orçamentos europeus da defesa, elogiados pelos defendedores da construção europeia. Se podemos nos mostrar satisfeitos que a agressão russa relançou as discussões sobre a defesa europeia, e que a UE tem mobilizado 1,5 bilhão de euros para comprar armas letais destinadas às forças ucranianas, o que pensar do aumento do orçamento militar em muitos países, entre os quais a Itália, ou ainda – verdadeira revolução neste país que tinha virado as costas à sua antiga cultura militar – a Alemanha? Porquê alegrar-se quando o chefe do governo Olaf Scholz criou um fundo especial de 100 bilhões de euros para « modernizar » o exército alemão, ou ainda quando Berlim anunciou aumentar a 2% do PIB alemão as despesas militares anuais, o orçamento da Defesa passando de 18,2 bilhões em 2021 para 27,1 bilhões em 2023? Se podemos sublinhar uma lição neste conflito, porém, é o fato que a Rússia é incapaz de ocupar um país de 600 000 km² e de 44 milhões de habitantes. Podemos portanto deduzir disso que, ainda mais, ela é incapaz de invadir uma parte do continente europeia.
Outro assunto: em Outubro de 2022, a Alemanha anunciou o lançamento de um projeto de escudo antimíssil europeu, ou European Sky Shield (ESSI), que reune uns dezessete Estados, entre os quais quinze membros da Aliança Atlântica. Entre os países que assinaram a « carta de intenção » do projeto, encontram-se muitos da Europa de Leste, preocupados de proteger rapidamente o seu flanco oriental: Estónia, Lituánia, Noruega, Romênia, Finlândia, aos quais juntaram-se dois outros em 15 de Fevereiro passado, a Suécia e o Dinamarca (contudo, este último costuma ser muito prudente nas questões de defesa antimíssil da Aliança). Por enquanto, esta iniciativa de Berlim, que relança uma antiga ambição otaniana, não atraiu os cinco Estados seguintes: a Polónia, a Espanha, a Itália, o Portugal e a França. Ou porque eles já são dotados de meios de defesa antimíssil – as duas primeiras já acolhem bases da OTAN –, ou, como a Itália e a França, porque eles já desenvolverem juntos o seu próprio sistema há anos, o Mamba. Para a França, a iniciativa induz portanto importantes questões de concorrência industrial e tecnológica, e questiona a independência estratégica da Europa.
É para sair da retórica de guerra maniqueísta de uns e outros que, no primeiro capítulo deste artigo, publicado em 24 de Abril (Guerra na Ucrânia (1/2): a necessidade de entender as origens do conflito para acabar com ele), tínhamos analizado, com recuo, os origens profundas do conflito. É preciso para isso sair da visão binária segundo a qual os Russos assumam o papel dos maus e os Ocidentais no dos gentis – embora, por lembrança, tem claramente vítimas, os Ucranianos que sofrem das consequências diretas do conflito. Tínhamos então posto em perspetivo a história da Ucrânia no seu ambiente regional, no cruzamento entre mundos culturais de Europa central, ortodoxo de Oriente, e mediterrâneo. Do ponto de vista de muitos Russos, a Ucrânia faz parte da esfera de influência direta da Rússia, constitui um elemento chave da sua segurança, uma fronteira « natural ». Denunciando todavia, claramente, o recuso de Moscovo de ver o seu vizinho emancipar-se geopoliticamente, é preciso tomar em conta este dado histórico, pois, porque uma saída pelas únicas armas não é possível no curto prazo. Portanto é pela negociação que devemos achar uma solução. Na Ucrânia, as dissensões políticas e os debates identitários foram particulares desde a independência em 1991, notavelmente desde a Revolução Laranja de 2004, a qual sublinhou as puxões entre veleidades de um aproximação com a Europa Ocidental e vontade de permanecer associada à Rússia e ao mundo russófono.
Como explicar, no fim de 2021, a pressa do poder russo, mencionada no primeiro capítulo deste artigo, para exigir garantias dos Estados-Unidos e da OTAN sobre o não alargamento da Aliança Atlântica – pressa que conduziu à guerra? Podemos tentar explicar-lo pelo contexto, que Putin deve ter julgado favorável: alternância na Chancelaria alemã (Angela Merkel deixou a sur carge em 8 de Dezembro de 2021); duração laborioso das discussões e tentativas de mediação de um Emmanuel Macron « bloqueado » entre uma campanha eleitoral a chegar e a presidência do Conselho da UE; e sobretudo, enfraquecimento dos Estados-Unidos desde a sua partida em Agosto de 2021 do Afeganistão, sob uma presidência de Joe Biden mais interessado pela rivalidade chinesa do que a russa. Obviamente, o cálculo de Vladimir Putin revelou-se desastroso, na área militar, mas não só.
No plano das armas, as evoluções em um ano de combates são ricos em ensinos. Embora a estagnação de um lado e do outro não parece desenhar uma paz no curto prazo, elas permitem tirar lições, militares como geopolíticas, para o que tem a ver com a resolução do conflito e mais geralmente na relação entre Ocidentais, Ucranianos e Russos. Trazem também umas luzes, de forma original, sobre as fragilidades do regime de Putin, e sobre clivagens e fragilidades atuais da política interior russa.
Como explicar as falhas militares do exército russo?
A primeira lição militar do conflito é a fragilidade do exército russo, que revelou-se à medida que os objetivos de guerra do comando russo e as linhas de frente evoluiram. Sem entrar nos detalhes das operações militares, podemos pelo menos constatar a evolução global da estratégia da Rússia desde o início. Após uma sequência marcada por ataques « cirúrgicas », com alvo em particular os aeroportos, as instalações militares, os radares, a defesa antiaérea, a aviação ucraniana, mas na qual o comando russo entendeu rapidamente que o exército inimigo ia além de simplesmete resistir, Moscovo escolheu bombardear amplamente cidades chaves julgadas indispensáveis a uma invasão do território ucraniano. No modo de operação, os bombardeamentos sobre as cidades de Kharkiv (segunda cidade do país, localizada no Leste russófono) e de Mariupol foram comparados por muitos aos conduzidos na passado pela Rússia, em Grozni na Chechénia, e em Alep na Síria. Sinal de uma febre diante de um exército ucraniano que não conheceu nenhum colapso.
Em 24 de Fevereiro de 2022, tínhamos, de um lado, um exército de quase 200 000 soldados, um milhar de tanques, 120 aviões de combate, e 60 helicópteros de ataque, com 4,3 bilhões de dólares de orçamento. Do outro lado, um exército de 900 000 homens, três vezes mais de tanques (3 417, fora das reservas), onze vezes mais de aviões (1 391), sete vezes mais de helicópteros de ataque (407) e dez vezes mais de orçamento (45,8 bilhões de dólares). Isso são as forças em presença, pelo menos em teoria. E deu a Vladimir Putin a ilusão que a vitória podia ser rápida. Contudo, dois meses depois, os Russos retiraram de toda a região de Kiev, e encontravam ainda pontos de blocagem na região de Kharkiv no Leste, em Mariupol no Sudeste, e em Mikolaiv no Sul – essa finalmente nunca será tomada, impedindo o acesso ao oblast (região de Odessa, enquanto no mar, patrulheiros estacionaram durante semanas inteiras à espera de fazer desembarquar soldados russos. Logo então, como explicar a estagnação do exército russo?
Muitas dificuldades aparecerem no contexto da guerra. A primeira delas, ligada ao próprio terreno ucraniano: o país é grande, com 603 549 km² (o segundo de Europa, após a Rússia), mais de 576 604 km² se excluimos a Crimeia. A Rússia nunca implicou-se, nos últimos anos, num território tão importante, nem conduziu uma intervenção tão amplo, desde a no Afeganistão na década de 1980. Segunda dificuldade, Moscovo ordenou a invasão quando o hiverno entrava na sua segunda metade. Sem surpresa, o terreno ucraniano pode ser particularmente enlameado naquela altura do ano, por causa do início do degelo. Muitos tanques e veículos de combate ficaram bloqueados, e muitas vezes, os Russos tiveram que concentrar-se nas estradas alcatroadas, tornando os seus movimentos mais previsíveis, mas também mais vulneráveis. Terceira dificuldade: o nível de urbanização do território ucraniano, o qual dá a vantagem à defesa, com combatantes que conhecem melhor os sites de combate e podem adaptar-se em consequência (subterranos, bunkerização, etc.).
Além disso, muitas fraquezas do exército russo revelaram-se. Primeiramente, a aviação russa foi incapaz destruir, como o tinha previsto no início do conflite, a aviação e a defesa antiaérea ucranianas. Uma das suas grandes dificuldades tem a ver com o tipo das suas munições, principalmente bombas não guiadas do modelo FAB-500 M-62, que faltam de precisão e obrigam portanto os aviões e os helicópteros russos a voar relativamente baixo – o que torna-lhes vulneráveis aos sistemas antiaéreas inimigos, particularmente os sistemas ligeiros usados em massa na Ucrânia. Se a aviação ucraniana encontrou-se quase acabada no início de Março, o uso do muito eficaz drone TB2 (concebido pela Túrquia) permitiu o compensar. Segunda fraqueza dos Russos, ligada ao contexto urbano já mencionado: o exército terrestre está antes de tudo preparada a um combate em terreno limpo, onde pode dominar o inimigo graças à sua artilharia pesada e aos seus muitos tanques. As manobras urbanas tornam-se complicadas, o que explica o grau de destruição material que a progressão das tropas russas provocou sistematicamente, com uma quantidade impressionante de prédios destruidos ou pelo menos esventrados.
Além de verdadeiros problemas de comunicação no exército russo onde soldados nem sabiam, no lançamento da invasão, quais eram os objetivos de guerre, o conflito também revelou problemas de coordenação das tropas russas, em particular na condução dos combates em meio urbano. Os suboficiais, ou sargentos, encarregados da boa coordenação das tropas, próximos das áreas de combate, são relativamente poucos no exército russo, porque os últimos anos, não foi dado à esta última o orçamento para formar e remunerar um número suficiente para um ataque tão importante. As pequenas unidades de soldados de infantaria faltam portanto de coordenação e de reatividade no terreno, o que lhe dificulta em particular na cidade. Soldados que, por muitos deles, não são militares profissionais, e que, além disso, podem faltar de motivação, dado o contexto da invasão. De fato, muitas vezes, os soldados russos não se revelam « determinados », em ambientes de combate onde eles são os primeiros expostos ao fogo do inimigo.
Fato revelador da subida das críticas contra o comando russo, em 8 de Novembro passado, os soldados da 155° Brigada naval de infantaria russa, um corpo de elite do exército russo, publicaram uma carta aberta, denunciando os seus superiores, acusando de os usar como carne para canhão na Ucrânia. Críticas que foram formuladas após uma batalha particularmente dura, perto da cidade de Donetsk (300 soldados mortos, feridos ou desaparecidos, e a metade do equipamento perdido, em apenas quatro dias). Além disso, esta carta recebeu um eco tão grande na Rússia, que ela foi seguida de uma resposta do Ministério da Defesa – o que nunca tinha acontecido desde o início das hostilidades.
Além disso, o exército russo encontrou uma resistância ucraniana que foi bem pouco antecipada por Vladimir Putin. A quase imobilidade das linhas no Donbass explica-se por grande parte pelo fortalecimento daquele frente, esses últimos anos, pela Ucrânia. Mas mesmo além, no Norte, no Sul e no Leste do país, o avanço dos Russos tornou-se rapidamente laborioso, e isso por várias razões. Desde os eventos na Crimeia e no Donbass em 2014, a Ucrânia quase triplicou o seu orçamento militar, e treinou dezenas de milhares de reservistas. Organizados em batalhões de defesa territorial, são equipados e formados ao combate. Quando o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky chamou o seu povo a resistir e a tomar as armas, dezenas de milhares de Ucranianos juntaram-se ao exército. Nos civis também, constatou-se muitos atos de resistência e de coragem para protestar contra a presença e o progresso dos soldados russos (protestos, marchas, blocagens de estrada...). As pontes do rio Dniepr são destruidos para abrandar o avanço russo, e os Ucranianos conseguem sabotar ou destruir uma maioria de infra-estruturas móveis implantadas pela engenharia civil russa. Uma forma de guerrilha instala-se, nas cidades, nas aldeias, desde as áreas arborizadas que servem como matagal, etc.
Finalmente, outro elemento que teve um papel forte contra Moscovo, o apoio massivo dos Ocidentais na Ucrânia: bilhões de dólares investidos, munições, armas, e sobretudo material anti-tanque e anti-aérea, que revelaram-se determinantes. O apoio norte-americano é obviamente decisivo. Sem surpresa, o apoio é primeiramente material. Fora dos tanques pesados e dos aviões de combate, que Washington e os seus aliados não são muito favoráveis a oferecer para não ser identificados como « co-beligerantes », os Estados-Unidos livraram mísseis anti-tanques portativos (mais de 40 000), canhões, drones suicídio, helicópteros (vinte Mi-17), mísseis antiaéreas portativos (1 400 Stinger), baterias de mísseis terra-ar, veículos blindados... Apenas nos seis primeiros meses do conflito, os Estados-Unidos livraram o equivalente de 14,5 bilhões de dólares de equipamentos militares à Ucrânian, entre os quais 12,5 bilhões foram diretamente prelevados nos estoques do exército norte-americano – Por lembrança, e para comparar, o orçamento ucraniano da Defesa era de mais ou menos 5 bilhões de dólares por ano antes da invasão russa. Os Estados-Unidos fornecem 70% da ajuda militar ocidental. O segundo contributor é a Polónia, e a seguir encontra-se o Reino-Unido.
O presidente Volodymyr Zelensky o reconheceu, numa visita do secretário do Estado norte-americano Antony Blinken em Kiev, em 8 de Setembro: « Nós não poderíamos ter retomado esses terrítorios [os arredores de Kherson e a região de Kharkiv] sem a ajuda dos Estados-Unidos. » Além da quantidade, é sobretudo a qualidade do material livrado que deu a possibilidade às tropas de Kiev de parar os Russos, e depois de retomar a iniciativa. Na opinião do comando ucraniano, a entrega de vários lança-foguetes pelo Reino-Unido, a Noruega, a Alemanha (nove exemplares de M270), e sobretudo pelos Estados-Unidos (dezasseis Himars M142, modelo equivalente), marcou uma viragem, permitindo afetar o dispositivo russo (depósitos, eixos logísticos, etc.) até 80 kilómetros de distância. O fornecimento em massa de munições (800 000 projéteis de 155 mm, 144 000 com 105 mm, 85 000 com 120 mm...) tem sido também determinante para assumir uma frente de 2 500 kilómetros, entre os quais 1 300 são considerados como ativos. Além de livrar material militar e de formar soldados, os Estados-Unidos partilham com a Ucrânia o seu sistema de informação. O operador Starlink, propriedade de Elon Musk, diz ter livrado, em seis meses, entre 15 e 20 000 terminais satélites na Ucrânia, muito úteis para os militares quando as redes de comunicação são cortadas. Com as imagens dos satélites de observação norte-americanos, Kiev dispõe portanto uma vista larga do teatro des operações.
Comparar os dois mapas, entre o fim de Abril e o fim de Agosto de 2022, permite ver que a redistribuição do exército russo no Sul não permitiu progresso territorial significativo. Apenas Mariupol, no mar Negro, caiu definitivamente em 20 de Maio. Em paralele, no mês de Maio, os Russos, os quais ambicionavam juntar as suas tropas do Donbass e as que vinhem do nordeste, tiveram finalmente que suportar uma contra-ofensiva sobre Kharkiv e abandonar aos Ucranianos a província epônima. Uma boa notícia para a Ucrânia, pois essa junção que queria realizar a Rússia teria provocado o cerco dos soldados ucranianos estacionados na frente do Donbass – Kramatorsk, onde está localizada o QG das tropas ucranianas do Donbass, era um alvo chave dos Russos.
Qual balanço para Vladimir Putin?
Outro problema que impôs-se a Vladimir Putin durante os primeiros meses do conflito: com base a sua vontade de proibir a palavra « guerra » da propaganda do Estado – o presidente russo sempre falou de « operação militar especial » –, aencontrou-se uma impossibilidade para ele de mobilizar a totalidade das suas forças disponíveis. A Rússia teve portanto de chamar umas milícias chechenas, e também, de forma mais anedótica, supletivos sírios. Porque a progressão russo inicial quase só explica-se com o efeito de surpresa e a superioridade numérica dos invadores, e porque o exército russo permaneceu no início limitado (entre 100 e 200 000 homens), a ocupação total da Ucrânia revelou-se rapidamente impossível – Washington estimava a 500 000 o número de soldados que teria sido necessário mobilizar para isso. Em Junho, o Parlamento russo suprimiu o limite de idade para alistar-se. Diante das dificuldades, o Kremlin anunciou, em 21 de Setembro, a « mobilizaão parcial » de 300 000 reservistas. Dois dias antes, os deputados russos tinham adoptado uma lei prevendo penas de prisão (três anos) para os que recusariam-se a responder à chamada. Em 5 de Setembro, Vladimir Putin já tinha ordenado ao governo de garantir aos voluntários que eles poderão encontrar o seu emprego. Finalmente, muitas fontes da sociedade civil russa referem que uma campanha de recrutamento de detidos estava em curso no início do Outono. Nova declaração, em 21 de Dezembro o ministro da Defesa Serguei Choigu disse julgar necessário de levar os efetivos do exército a 1,5 milhão de soldados e de levar a idade limite do serviço militar entre 21 e 30 anos, em vez de 18-27 anos até então.
Na Rússia, todos os homens que efetuaram o seu serviço militar são considerados como reservistas, ou seja, uma reserva teórica de 25 milliões de pessoas. Contudo, a decisão do 21 de Setembro foi sobretudo marcada por um fenômeno massivo de partidas russas fora da Federação da Rússia, para evitar de ser enviadas combater na Ucrânia. Muitos acharam refúgio na Túrquia, pois não é preciso ter visto para entrar naquele país. Em direção dos países vizinhos, aeroportos, postos-fronteiras e estradas são « invadidas » durante semanas. Por lembrança, os Russos já eram mais de 400 000 a ter emigrado durante o único primeiro semestre de 2022, ou seja, duas vezes mais do que o ano anterior – e aumentou ainda após a mobilização dos reservistas. Além disso, a mobilização decretada por Vladimir Putin, sinal de uma febre do comando e dos problemas do exército russo que conta na sua superioridade numérica para ganhar, é uma aposta militar que está longe de garantir a vitória. De fato, os mais idosos dos 300 000 reservistas em questão têm 65 anos, e no total dos chamados, apenas 5 000 treinam-se numa base regular. Em 7 de Dezembro passado, Vladimir Putin, numa entrevista na qual ele lembrou que a bomba nuclear podia ser usada como arma defensiva em caso de ataque contra o território nacional, explicou que só a metade dos 300 000 civis mobilizados estavam então na Ucrânia, e nesses 150 000, apenas 77 000 são diretamente ao combate.
Todos esses elementos contribuirem a instalar-se o conflito no longo prazo, o que aumentou as dificuldades logísticas dos Russos, os quais tinham previsto uma guerra relâmpago. Para levar homens e material, até o lançamento da invasão a Rússia beneficiava da sua ampla rede de ferro; porém na Ucrânia, o abastecimento das tropas faz-se por camião. Problema, a Rússia falta de camiões, e esses últimos foram obrigados a multiplicar as idas e voltas e engarrafar-se nas estradas durante semanas para evitar a lama, sobre centenas de kilómetros. Isso fez deles, já o dissemos, alvos fáceis para os lança-foguetes e os drones turcos TB2 usados pelos Ucranianos. O abastecimento, incluido de combustível, foi consideravelmente desacelerado, forçando as tropas russas a fazer pausas no seu avanço e nas suas ofensivas. Viu-se portanto cenas cómicas de tanques russos abandonados, porque ficaram atolados, ou com falta de combustível, e recuperados pelos Ucranianos. No meio do verão, a Ucrânia revindicou ter deixado inutilizados uns 1 500 tanques de combate, 3 600 veículos blindados, 750 peças de artilharia ou ainda 210 aviões, estatíticas consideráveis segundo os especialistas. Notamos no entanto as fortes capacidades do setor militar-industrial russo para renovelar os estoques de armas; ao contrário, a Ucrânia tornou-se muito dependente dos Ocidentais para ter material, e está frequentemente com falta de munições.
Em muitos aspetos, o balanço para a Rússia é péssimo. Os primeiros objetivos de guerra, ou seja, a queda do governo ucraniano, e para isso a tomada de Kiev, não são atingidos, e até foram totalmente abandonados logo do final de Março. Kharkiv e Mariupol foram destruidas, contudo a primeira foi finalmente abandonada, em Maio; Mariupol sendo uma chave na junção entre o Donbass e a Crimeia, a obstinação russa, como também o afastamento do porto com o essencial do exército ucraniano, permitiram aos Russos de a conquistar. Porém, no contexto da contra-ofensiva ucraniana, o porto de Odessa, cuja tomada teria sido um símbolo forte e cheio de história, nem é mais um alvo a curto ou meio termo. Portanto não terá junção com a força russa estacionada na Transnístria, uma república secessionista da Moldávia. Evento que teve um grande eco, a cidade de Kherson, única capital regional que caiu nas mãos dos Russos no início da guerra, acabou, após semanas de contra-ofensiva ucraniana bem laboriosa nesta linha de frente (pois as forças russas instaladas na margem direita do Dniepr resistiram bem), por ser retomada, em 11 de Novembro passado, pelo exército ucraniano. O objetivo de tomar possessão de toda a costa é agora abandonado por Moscovo. Enquanto, em Março de 2022, a Rússia tinha conseguido ocupar um quarto do território ucraniano (24,4%), o exército russo só controlava uns 16,5% em Dezembro passado – uma parte, 6,4%, sendo as áreas já ocupadas desde 2014 do Donbass e da Crimeia. (A notar que o avanço ucraniano faz-se agora bem lentamente; por exemplo, em Dezembro, a Ucraniano libertou uns 700 km² de território, contra 3 800 km² no mês de Novembro.) No mês passado, em 10 de Janeiro, o grupo de mercenários russos Wagner anunciou uma pequena vitória com a pegada da localidade de Soledar, no Donbass; mas foi ao custo de muitas vidas humanas, por isso esse único fato ilustra as dificuldades dos Russos a retomar a iniciativa na frente. Desde o final de 2022, os combates cristalizaram-se a cerca de Bakhmut, diante dos territórios secessionistas do Donbass, onde os mercenários do Grupo Wagner, numa guerra de posição muito bloqueado, transforma a frente em massacre.
Além disso, o conflito, porque ele demora, custa muito à Rússia. Em termos humanos primeiramente, pois sobre o total de 150 ou 200 000 soldados russos envolvidos na Ucrânia a partir de Fevereiro, conta-se, seis meses depois, entre 20 e 30 000 mortos, segundo a média das estimações dos serviços de inteligência europeus – o balanço oficial do exército russo só estabelecia então uns 6 000 mortos. O Pentágono, o qual cumula os mortos e os desmobilizados nas suas estatísticas, apresenta o valor de 180 000 soldados postos fora de combate em um ano de combates (mortos, feridos, desaparecidos, prisoneiros), o que pode induzir dezenas de milhares de feridos no exército russo. Para comparar, a guerra no Afeganistão de 1979-1989 tinha feita então uns 26 000 mortos nos soldados soviéticos, e 20 000 nas forças do governo comunisto afegão. O conflito, apesar de uma preparação sólida do país diante das sanções diplomáticas e económicas do Ocidente – voltaremos a esse ponto –, o conduz a o isolamento comercial no qual ele entrou brutalmente há meses, o que não pode faltar de alimentar o descontentamento na população russa.
Nem só os objetivos definidos por Vladimir Putin não são atingidos, mas podemos também notar que a invasão da Ucrânia tem – e anuncia – pelo contrário efeitos muito contra-produtivos no longo prazo para a potência russa. No plano militar, claro, com uma imagem desgradada. De fato, após a surpresa causada pela invasão inicial (surpresa que provocou reações às vezes disproporcionadas em outros países, como se a Rússia, quando penetrou na Ucrânia, anunciava uma invasão de toda a Europa), foi necessário constatar em que pântano o comando russo se tinha colocado. De forma ilustrativa, uma piada circulou há alguns meses na Ucrânia, segundo a qual a Rússia, de segundo exército no mundo, tinha (se tornado o segundo exército na Ucrânia. Conhecidas com as suas intervenções sequenciadas no tempo, bem preparadas, ao mesmo tempo particularmente violentes e eficazes como na Chechénia e na Geórgia na década de 2000, e na Síria desde 2015, as forças russas são agora vistas como belicistas e fatores de desordem, atoladas nos seus disfuncionamentos táctitos e estratégicos, pelo fato, entre outras coisas, das suas dificuldades logísticas e da concentração de poder acima da hierarquia de comando.
No plano político igualmente, o lento mas fértil trabalho de Vladimir Putin para, na cena internacional, restaurar a potência diplomática da Rússia e a sua aura, foi varrido de uma só vez. A sequência da coluna de tanques russos dirigindo-se para Kiev foi, claro, terrível para a imagem do país. Quase poderíamos pensar que foi bom, para Putin, o fato do seu exército não chegar até Kiev. Pois, qual teria sido o sentimento geral à vista de tanques russos patrulhando numa capital de Europa Oriental, se não fosse lembrar a todos as horas sombrias da dominação soviéticas, quando as forças do Pacto de Varsóvia foram reprimir Praga, ou Budapeste? Já parcialmente afetada pela anexão da Crimeia em 2014, a imagem da Rússia tornou-se agora catastrófica, e só se pode constatar a ostracisação sobre o país, da parte do Ocidente e dos países fortamente ligados aos Estados-Unidos. Claramente, este défice de popularidade é diretamente ligado ao próprio Vladimir Putin, repintado em ditador louco e impulsivo pelas mídias ocidentais. De fato, o presidente russo reduziu consideravelmente o círculo de decisão, e assim tem-se isolado gradualmente nos últimos anos. Como muitas vezes nos regimes autoritários, a vontade de agradar ao chefe e a impossibilidade de o contestar afectaram naturalmente as informações que chegam para ele. Aliás, é por isso que o poder russo tinha tão mal avaliado o estado das forças russas na véspera do conflito, mas também o do exército ucraniano, como também o estado da opinião ucraniana em relação à Rússia e à Europa Ocidental. Isso significava também o fracasso dos serviços de inteligência russos, os quais tinham bem mal informado o poder sobre esses assuntos todos.
Por fato deste isolamento crescente, acontece uma dependência cada vez maiora, e bastante preocupante para a sua suberania, da Rússia em relação à China. Já em 4 de Fevereiro de 2022, antes da invasão da Ucrânia, Vladimir Putin e Xi Jinping assinaram em Pequim um importante acordo estratégico que insiste sobre a cooperação « sem limite » entre os dois países. Mais recentemente, em 15 de Setembro, em margem de uma cimeira da Organização de Cooperação de Shanghai (OCS) em Samarcanda (Uzbequistão), numa Ásia central preocupada do belicismo russo, os dois chefes de Estado encontraram-se pela primeira vez desde o início do conflito na Ucrânia. Vladimir Putin recebeu lá um apoio mitigado do seu homólogo chinês. De fato, a China é pouca a favor de validar o princípio da guerra, a qual foi privilegiada de forma inconsiderada por Moscovo, enquanto obviamente, as condições de uma vitória rápida não eram reunidas. Contudo, as relações China-Estados-Unidos favorecem desde alguns meses uma solidaridade intrínseca entre as duas superpotências eurasiáticas. Em particular após a visita de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes dos Estados-Unidos, em Taiwan em 2 de Agosto de 2022, denunciada pelo poder chinês. Além disso, no Outono passado, o Parlamento norte-americaino acentuou a crise diplomática entre Pequim e Washington, quando adoptou um Taiwan Policy Act, o qual fortalece o reconhecimento das autoridades de Taiwan e uma solidaridade estratégica e militar com a ilha, revindicada pela China. Em 30 de Dezembro, a Rússia e a China anunciaram um fortalecimento da sua cooperação militar.
Além do contexto particular ligado ao estatuto de Taiwan, a dependência crescente da Rússia em relação da China é antes de tudo económica e financeira. As trocas entre os dois países aumentaram por 32% em um ano, em 2022. É o resultado, notavelmente, das diversas sanções adoptadas pelos Ocidentais desde Fevereiro de 2022. Certamente, os Russos preparam-se a essas últimas há muito tempo. Por exemplo, antecipando a sua exclusão de Swift, uma rede de comunicação inter-bancária que permite as transferências internacionais entre bancos, eles criaram há anos um equivalente nacional para compensar esta sanção. Quando foram ameaçados de ver acabado a sua participação ao sistema de pagamentos internacionais por cartão bancário, eles criaram o seu próprio cartão (Mir), o qual é usado por 90% da população russa. Por isso as primeiras sanções após a ocupação da Crimeia em 2014 constituirem um verdadeiro teste para procurar fortalecer a resiliência do seu sistema económico e financeiro. A substituição às importações consiste assim, desde uma década, em uma grande política do governo russo com alvo a autonomia – e nesta perspetiva, a sua capacidade de exportação agrícola (trigo, carne de suíno, etc.) é ilustrativa. Contudo, as sanções acabem por ser um peso, numa economia fortamente dependente das exportações de hidrocarbonetos a destinação da Europa.
A dependência em relação à China aumenta ainda mais porque os próprios Europeus, que tornam-se (os Alemãos em particular) bem tarde conscientes da sua dependência energética com a Rússia, lançaram-se, laboriosamente mas francamente, numa política de ruptura em relação ao gás e ao petróleo russos. O fato o mais emblemático é a suspensão – que poderia tornar-se definitiva no longo prazo – do projeto de gasoduto Nord Stream 2, cujas obras tinham começadas em 2018 e que ia a duplicar as capacidades de abastecimento em gás da Alemanha pela Rússia, pelo Báltico; abastecimento por grande parte assegurada até então por Nord Stream 1, posto em serviço em 2012 (e parado há alguns meses). Finalmente, o transporte de gás russo pelos gasodutos que atravessam a Ucrânia é amplamente perturbado. (O principal deles, Drujba, que pode teoricamente levar 140 bilhões de metros cúbicos por ano, funcionou até o 24 de Fevereiro de 2022 com 70 ou 80 bilhões de metros cúbicos – Nord Stream 2 tinha como objetivo contorna-lo.) Por lembraça, a Rússia fornece entre 40 e 50% do gás consumido na Uniéao Europeia, e esta parte vai além de 50% com a Alemanha, a Polónia, a Lituânia e a Suécia, e além de 75% com a Finlândia, a Estónia, a Letónia, a Hungria, a Roménia, a Áustria, a Chéquia, a Bulgária e a Eslováquia.
O estado atual da frente, um ano após o início do conflito. Se os progressos ucranianos são desde o Outono laboriosos, após os sucessos de Setembro de 2022 que permitirem a libertação da quase totalidade da província de Kharkiv, pode-se notar que desde Agosto, é a Ucrânia, não a Rússia, que tomou a iniciativa, as tropas russas sendo agora numa postura difícil resumendo-se a conservar territórios conquistados no primeiro mês do conflito.
Uma relação Rússia-Ucrânia sustentávelmente afetada: como sair do impasse da guerra?
Com a contra-ofensiva ucraniana, as autoridades pró-russas das regiões ucranianas de Zaporijia, Kherson, Luhansk et Donetsk organizaram, diante do amplor do avanço inimigo, referendos de anexão à Rússia, entre o 23 e o 27 de Setembro. Revindicaram, na noite do 27 de Setembro, uma vitória clara (entre 87 e 100% segundo as regiões) do sim em favor de juntar-se à Federação de Rússia. A legalidade desses referendos foi fermamente denundiada por Kiev e pela totalidade dos seus apoios ocidentais e as organizações internacionais. Pode-se acrescentar ainda que os Russos nem controlem totalmente nenhuma dessas quatro regiões. Em 30 de Setembro, Vladimir Putin assinou o decreto de anexão, afirmando, desde Moscovo, que « os habitantes de Luhansk, Donetsk, Kherson e Zaporijia tornam-se os nossos cidadãos para sempre », e agitando de novo a ameaça nuclear. A anexão devia, de uma certa forma, vir justificar a mobilização parcial decretada uns dias antes, pois, logo então, toda progressão do exército ucraniano seria condiderado por Moscovo como uma agressão do território russo. Porém de fato, além de tornar os objetivos de guerra russos ainda mais vagos, esta « operação » jurídica e política, sem nenhum valor do ponto de vista do resto do mundo e realizada fora de qualquer quadro democrático ou legal, parecia apenas uma tentativa desesperada de perpetuar os ganhos territoriais russos, e foi logo discreditada pela progressão, lenta mas cada vez mais inevitável, das tropas ucranianas, em particular nas regiões de Donetsk e de Kherson. (Por lembrança, o ministro da Defesa russo anunciou em 21 de Dezembro que o exército russo ia a instalar bases navais de apoio em Mariupol e Berdiansk, na costa do mar Negro.)
Em relação à própria população ucraniana, só pode-se, ainda, constatar o fracasso flagrante de Vladimir Putin. De fato, e isso era amplamente previsível, mesmo se os objetivos militares definidos por Moscovo (quand foi lançada a invasão) tinham sido atingidos, obviamente, o balanço político só poderia ter sido catastrófico. Qualquer seja a conclusão militar, o povo ucraniano só podia sair desta sequência marcado com ferro em brasa por um ódio, uma desconfiante visceral da Rússia. Não só o exército ucraniano mostrou uma resistência que ninguém esperava, mas sobretudo, os habitantes também resistiram, como o ilustraram as imagens de Ucranianos subindo nos veículos blindados ou bloquando o avanço de tanques russos, ou protestando contra a ocupação. Uma situação que obriga os Russos a mobilizar muitos soldados na ocupação – incluido na parte oriental do país, onde eles pensavam que teria sido mais fácil. Politicamente, o presidente Zelensky saiu desta sequência consideravelmente fortalecido, repintado – graças a uma comunicação finamente conduzida – em chefe de guerra e líder da resistência, próximo do povo (como um espelho inverso de um Vladimir Putin isolado, frio e desprezanto no seu grande escritório). Finalmente, em 28 de Fevereiro de 2022, ou seja, apenas quatro dias depois o lançamento da invasão, Kiev enviava em urgência, muito oficialmente, um pedido de adesão à União Europeia – dito de uma outra maneira, exatamente o destino político que Putin não queria para o seu vizinho. Decisão simbolicamente forte, em 27 de Maio de 2022, três meses depois do início da invasão russa, a Igreja ortodoxa ucraniana, único ramo das Igrejas ucranianas que tinha permanecida ligada até então ao patriarca moscovita, rompeu todo laço com esse último.
Esse sentimento anti-russo, e indiretamente pró-ocidental, expandiu-se logo para toda a Europa Oriental. Após a Ucrânia, a Moldávia e a Geórgia, as duas afetadas por conflitos gelados onde encontram-se tropas « de interposição » russas, enviaram em 3 de Março de 2022 um pedido de adesão. Em 23 de Junho, a União Europeia até reconheceu o estatuto oficial de candidato para a Ucrânia e a Moldávia, deixando por enquanto Tbilissi esperar. Pior, em 18 de Maio de 2022, a Finlândia e a Suécia, as quais tinham um estatuto explicitamente neutro desde a Segunda Guerra mondial – a via dita de finlandização até tinha sido mencionada como exemplo, há mais de um ano, por muitos peritos para o futuro geopolítico da Ucrânia, como eventual porta de saída para evitar uma ruptura diplomática com a Rússia –, enviaram (ao favor de uma reviravolta brutal das suas opiniões públicas) uma candidatura conjunta de adesão na OTAN. O protocolo de adesão foi assinado em 5 de Julho de 2022, e por enquanto, só a Hungria, e sobretudo a Turquia, não a ratificaram, pois essa última acusa os dois países nordicos, sobretudo a Suécia, de proteger os combatantes kurdos do PKK e do YPG, considerados como grupos terroristas por Ankara. (Há poucos dias, Helsinki e Oslo concordaram para distinguir as duas candidaturas e deixar a Finlândia integrar a OTAN sem esperar pela Suécia, cuja candidatura permanece duravelmente bloqueada por Ankara.)
Assim, em apenas uns dias de invasão, Vladimir Putin já contava dois feitos no seu ativo: ele devolveu à OTAN a sua razão de ser – lembramos as criticas formuladas na seu mandato o antigo presidente norte-americano Donald Trump (ele queria ver os Estados-Unidos desengatar-se da Aliança Atlântica), ou ainda as previsões do presidente francês Emmanuel Macron (o qual falava da « morte cerebral da OTAN » em 2019). E conduziu a União Europeia a transformar-se numa organização capaz de fornecer ajuda militar a um país estrangeiro. Em apenas três dias, em 27 de Fevereiro de 2022, sob a impulsão da presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, e do chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, os ministros dos Négócios estrangeiros dos Vinte-Sete adoptaram um fundo de 450 milhões de euros para financiar o envio de armas letais (pode incluir aviões de caça) às forças ucranianas para resistir à agressão russa, e ainda 50 milhões para equipamentos não militares. Uma ajuda que vei acrescentar-se ao apoio massivo dos Americanos, já mencionado neste artigo. Enfim, além das sanções financeiras e económicas contra a Rússia, já decididas anterioramente, a Comissão anuncia a priobição do espaço aéreo da UE a todos os aviões russos ou controlados por companhias russas, e a proibição da difusão das mídias russas Russia Today e Sputnik, para bloquear a sua campanha de desinformação.
Com um passo para trás, podemos já constatar que o balanço da invasão russa, portanto, não é ter imposto a vontade de Moscovo a um vizinho embaraçoso considerado como parte do seu espaço « natural » de dominação, mas ima multiplicação das sanções económicas e comerciais, um fracasso militar óbvio que ilumina as fraquezas do exército russo, uma reviravolta (talvez irreversível) das opiniões públicas da Europa Oriental (e em particular ucraniana), e finalmente um enésimo alargamento da OTAN nas suas fronteiras, e provavelmente da UE também no longo prazo. Vladimir Putin « encurralou-se » com objetivos de guerra inatingíveis, os quais, aliás, mudaram com a redistribuição das tropas envolvidas na frente septentrional. Depois de ter esperado poder retomar totalmente as regiões russófonas e celebrar essa vitória nas comemorações do fim da Segunda Guerra mondial, em 9 de Maio passado, ele teve que reduzir as suas ambições e apenas esperar conter os Ucranianos para defender os ganhos territoriais iniciais. Pior, já que ele proclamou a anexão de quatro províncias ucranianas à Federação de Rússia (além da Crimeia que já tinha sido anexada em 2014), Vladimir Putin amarrou-se as mães, e além disso reduziu consideravelmente a sua margem de negociação. De fato, como justificar de voltar sobre esta anexão no futuro, a não ser – coisa impensável para o Kremlin, hoje em dia – pelo reconhecimento pelos Russos do seu fracasso no terreno militar?
Esta situação de blocagem deixa abertas muitas hipóteses sobre o que pode acontecer agora na política interna russa. Os cenários possíveis podem ser violentes (revolução, golpe de palácio...), pois o regime é esclerosado e incapaz de propor uma alternância que poderia permitir-lhe sair do impasse pela via das negociações diplomáticas – porque Vladimir Putin já não é mais considerado como um interlocutor credível aos olhos da Ucrânia e dos Ocidentais. Por lembrança, no início de Setembro passado, o chefe do Kremlin foi objeto de duas chamas à destituição, por dois grupos de deputados municipais, em São-Petersburgo (envio de um correio oficial à Duma) e depois em Moscovo (com um correio menos amarga, mas diretamente enviado a Vladimir Putin). Embora elas não tinham nenhuma chance de conseguir, essas chamadas ilustraram o cansaço da população diante de uma campanha militar sem saída visível. Além disso, mostraram que a palavra liberta-se gradualmente, em relação à gestão pessoal do conflito por Vladimir Putin, pois de forma muito claro, a chamada à destituição mencionava a falha du chefe do Estado.
Até então, a Ucrânia conta mais ou menos 14 milhões de deslocados ligados ao conflito, um pouco menos de metade (uns seis milhões pelo menos) tendo fugido fora do país. E ainda umas dezenas de milhares de mortos militares (as estimações variam muito de uma fonte para outra) e entre 15 e 30 000 mortos civis). Os casos de violações (ou estupros) e de execuções arbitrárias foram muitos desde o início. Além da destruição da maioria de certas cidades como Kharkiv e Mariupol, muitos crimes de guerra e crimes contra a humanidade já começaram a ser identificados. Entre eles, o mais conhecido hoje em dia é provavelmente o massacre de Butcha, que corresponde a uma série de crimes de guerra cometidos durante a invasão, entre o 27 de Fevereiro e o 31 de Março, em Butcha e na região ao norte de Kiev. Assassinatos de massa, exécuções sumárias, estupros e atos de tortura contra os civis ucranianos foram recenseados, e estima-se o número de mortos em 458 pelo menos em Butcha, e a 1 314 pelo menos em toda a região de Kiev.
Agora, é mais do que tempo de abrir um ciclo sincero e sério de negociações – o que nem a presidência russa nem a da Ucrânia querem realmente hoje em dia. Obviamente, a Ucrânia está no seu direito quando ela pretende que as suas tropas não voltarão para trás nem irão a parar o combate enquanto os territórios anexados ilegalmente pela Rússia não serão retomados. O sentimento dos Ucranianos em relação à Rússia está perto do ódio, e os acordos de Minsk são obsoletas. De fato, nenhuma das partes queria aplicar esses últimos, nem a Ucrânia, nem os secessionistas. Pois os acordos previam que Kiev adopta um « estatuto especial », que teria dado um lugar particular aos dois territórios secessionistas de Donetsk e Lugansk. Esses dois últimos teriam então ganhado uma autonomia oficial particularmente forte, mas teriam também participado de forma plena e inteira às instituições nacionais ucranianas, servindo assim de « cavalo de Tróia » (do ponto de vista de Kiev) da Rússia de Putin. Contudo, o governo ucrananio quer previamente desarmar as milícias do Donbass, e restaurar lá, de pleno direito, a administração ucraniana, antes de negociar o estatuto desses territórios.
É provavelmente com um passo para trás, iniciando negociações à escala continental, que será possível pensar um retiramento das forças russas e uma paz sustentável. Ao mesmo tempo que garante a integridade do território ucraniano, e que dá seguranças a Moscovo sobre a sua própria segurança, sobre a OTAN, sobre os Estados-Unidos. Com a União Europeia, esses dois países podem também entender-se no princípio de indivisibilidade da segurança na Europa, segundo o qual a segurança de uns não se faz ao custo de outros. (Um estatuto de país neutro, ou algo perto disso, parece ser a única garantia disso, embora ainda é necessário que ele seja aceitado pela Ucrânia.) Em 8 de Dezembro passado, por exemplo, o chefe do governo alemão Olaf Scholz disse-se pronto a « discutir com a Rússia do controlo dos armamentos na Europa » se ela se retira da Ucrânia. Hoje mesmo, em 24 de Fevereiro, a China, após ter-se abstido num voto sobre uma resolução exigendo o retiramento russo, chamou ao diálogo entre Moscovo e Kiev, num documento em doze pontos. Neste, a China rejeita qualquer uso da arma nuclear, e convida ambos protagonistas a « abandonar a mentalidade da Guerra Fria » e acrescenta que « a segurança de um país não deve ser procurada ao custo dos outros », nem assegurada « pela expansão ou o fortalecimento de blocos militares ». (Criticado pelas suas ameaças contra Taiwan, o governo chinês lembrou que « a soberania de todos os países » deve ser respeitada.)
Esta guerra, como todas as que seguirem 1991, na ex-Iugoslávia ou na ex-URSS, ilustra no longo prazo a instabilidade das fronteiras herdadas dos antigos impérios e grandes conjuntos políticos políticos europeus que foram a Áustria-Hungria, a Turquia otomana, a Rússia czarista e depois soviética, ou ainda a Iugoslávia monarquista e depois socialista. Ela ilustra também os recreios da Rússia de ver a sua esfera de influência reduzida como gotinhas de orvalho, como foi o caso, à sua escala, da Iugoslávia e depois da Sérvia de Slobodan Milosevic, gradualmente amputada de quase todas as províncias « extra-sérvias ». Todos esses dados devem ser tomados em conta para pensar uma paz real e sustentável.
Obviamente, um retiramento (forçado ou não) de Vladimir Putin da vida política russa seria a ocasião de iniciar negociações neste sentido, mas por enquanto, é com ele, que dirige o seu país há mais de 23 anos, que se deve conversar. E é preciso tomar em conta o fato que, em interno, Putin é consideravelmente enfraquecido. Pois se os Russos entendiam perfeitamente as suas revindicações em termos de segurança, muitos opõem-se por princípio à guerra, em particular os mais jovens cuja melhora conexão a Internet permite-lhes contornar a propaganda oficial. (E os protestos importantes observados na Rússia em Fevereiro e Março para opor-se à invasão da Ucrânia, violentamente reprimidas, ilustraram esta forma de resistância e de oposição da sociedade civil, e uma solidaridade exprimida em relação ao povo ucraniano.) Oferecer a Moscovo garantias de segurança é talvez a porta aberta que permitiria ao presidente Putin aceitar uma reviravolta sobre a ocupação do sudeste da Ucrânia. Nada é menos certo, mas não propor nada, já é falhar, e deixar a guerra prosseguir.