Quénia: que futuro e que desafios após a eleição presidencial de 2022?
Vista sobre o bairro administrativo e de negócios de Nairobi, capital do Quénia, desde o telhado do Kenyatta International Convention Centre.
Em 5 de Setembro passado, o Supremo Tribunal queniano confirmou a vitória do vice-presidente cessante, William Ruto, na eleição presidencial que tinha sido organizada em 9 de Agosto de 2022, diante de Raila Odinga (também chamado « Baba »), figura histórica da vida política queniana que tinha denunciado fraudes. Em conformidade com a Constituição, Ruto, portanto, tomou posso em 13 de Setembro, tornando-se com 55 anos de idade o quinto presidente do Quénia desde a independência do país em 1963. Os dois adversários prometerem respeitar a decisão da mais alta juridição, acabando com o risco de ver novas violências como nas eleições de 2017 – que tinham forçado o Supremo Tribunal a cancelar a eleição.
Esta eleição é a ocasião de por em perspetiva a vida política queniana à luz dos desafios económicos,, sociais e ambientais do país, e das rivalidades entre comunidades etnolinguísticas – uma questão recorrente na África pós-colonial. Um olhar na história contemporânea do Quénia basta a entender que, longe dos confrontos ideológicos coerentes e preocupados do bem-estar dos habitantes ou da soberania do país, a política queniana foi, desde a independência, o teatro de um jogo de cadeiras musicais entre os mesmos restos ou as mesmas famílias... Muitas vezes, ao benefício de interesses estrangeiros, os do Ocidente em primeiro lugar, num contexto de corrupção, de tensão sobre os recursos naturais e de câmbio climático. Análise.
Começamos por lembrar que os 22,1 milhões de eleitores quenianos não eram chamados, em 9 de Agosto passado, a escolher apenas o novo presidente, mas também 290 deputados, 47 senadores, 47 governadores de condado e 1 450 membros que compõem as assembleias dos condados. A diversidade das eleições em jogo justificava uma atmosfera politicamente tensa e competitiva. Para entender o que se tratava, convem lembrar uns elementos chaves da história recente do Quénia. Esse país de África de Leste, limítrofe com a Tanzânia no Sul, a Uganda no Oeste, e o Sudão do Sul, a Etiópia e a Somália no Norte, tem uma superfície de 580 000 km² e povoado de quase 48 milhões de habitantes. É independente do Reino-Unido desde o 12 de Novembro de 1963. A posição entre o Chifre da África e a região dos Grandes Lagos, às margens do oceano ndico, explica tanto a sua herança cultural rica das contribuições africanas (suaíli, entre muitras outras), árabes e europeias (portuguesa e depois britânica). Explica também a sua exposição, nos últimos anos, à violência dos conflitos a cerca das suas fronteiras (Somália, Sudão do Sul, Etiópia). O país conheceu portanto muitos atendados terroristas desde a década de 1990, e conta com o maior campo de refugiados do mundo, o qual acolhe mais de 200 000 pessoas (sobretudo Somalianos).
Por lembrança igualmente, o Quénia conhece um povoamento em maioria bantu desde vagas de migrações a cerca de 1 000 antes de J.-C., coexistendo com populações de língua cuchítica (originárias da Etiópia) e nilótica (do Sudão). Após uma competição de dois séculos entre Portugueses e Árabes para o controlo das costas do país e do comércio sub-regional, o século XIX viu o território do Quénia atual passar para décadas sob a alçada europeia. O processo de dominação e de colonização que carateriza a sequência entre as décadas de 1880 e de 1960 é essencial para entender certos das heranças com as quais o país deve hoje contar. Em 1883-1884, o explorador britânico Joseph Thomson atravessa as terras massai, o averse le terres massaï, « Maasailand », para atingir o lago Vitória antes de voltar na costa, abrindo assim o caminho para a colonização do interior das terras. Em 1885, a Alemanha estabelece um protetorado sobre as possessiões costeiras do sultão de Zanzibar no Quénia. Em 1888, o homem de négocios escocês William Mackinnon recebeu da reina Vitória uma carta real o autorisando a desenvolver o comércio na região em nome da Companhia britânica imperial de África de Leste. Em 1890, os Alemãos cederem aos Britânicos a exclusividade sobre o seu território litoral em troca de Tanganyika, a atual Tanzânia. Pelo fato das dificuldades financeiras da Companhia, em 1895 é fundada a África Oriental Britânica (British East Africa) regrupando as possessões britânicas em África de Leste, e destinada a assegurar um controlo formal da região.
Da colonização à independência
A influência britânica limitou-se primeiramente nas regiões litorais, apenas uns colonos e descobridores arrivavam-se no interior das terras. Mas após um conflito sangrante entre os grupos Ilmaasai e Iloikop, e a chegada simultânea da pesta bovina, do cólera, da varíola e da fome, a resistência massai cansou-se. É o que os Massai chamarão o enkidaaroto (« a catâstrofa »), correspondando ao tempo entre 1884 e 1893. O primeiro tratado massai, que permitiu aos Britânicos fazer passar a linha ferroviária entre Mombasa e a Uganda, no meio das pastagens massai, foi assinado em 1904. Graças a isso, a sede da administração colonial deixou Mombasa em 1905 para Nairobi, a atual capital do Quénia. Essa tinha sido fundada em 1899 numa região marcada por um clima temperado, rios, planícies e pântanos conhecida pelos Massai sob o nome de uaso nairobi (« água fria »).
Conforme o tratado de 1904, seguido pelo outro em 1911, os Massai foram privados das suas terras ancestrais e deslocados em reservas do Sul (pois uma outra reserva estabelecida pelo tratado de 1904 foi abolida em 1911). Foram os mais afectados pelas anexões territoriais. Em paralele, os Kikuyu do monte Kenya e Aberdare (duas áreas de povoamento branco) alimentaram frustrações fortes contra os que os tinham despojados. Acrescentamos que, em 1901, para obrigar a população africana a entrar no mercado do trabalho salariado, os Britânicos instauraram um imposto sobre as casas tradicionais, pagável só em moeda.
Em 1912, colonos instalaram-se em planaltos onde estabelecerem explorações agrícolas que criaram as primeiras rendas consequentes do protetorado. Esses postos avançados, Naivasha e Ngong Hills, contam ainda hoje uma importante população branca. Para ir mais longe, aconselhamos o documentário Maasaï: Terra priobida da Radio Télévision Suisse, que volta sobre a manipulação dos Massai pelos colonos britânicos, sobre a continuidade que constitui a sua marginalização pelo Estado queniano hoje, e sobre a ameaça que conhece o seu modo de vida pastoral diante da urbanização e das grandes explorações fundiárias (inclusive por descendentes dos colonos britânicos).
Durante a Primeira Guerra mundial, os dois terços dos 3 000 colonos do Quénia formaram unidades de calavaria para ir combater os Alemãos do Tanganyika vizinho (Um século depois, a história de Moçambique na Primeira Guerre mundial). O processo de colonização retomou após o conflito, quando os veteranos que combaterem na Europa receberem terras nos planaltos a cerca de Nairobi. O número de Brancos não parou então de crescer, passando de 9 000 em 1920 para 80 000 na década de 1950.
A altura entre as duas guerras mundiais viu nascer o primeiro movimento nacionalista à escala do Quénia. O fato que o país torna-se em 1920 uma colónia da Coroa britânica por causa da pressão dos Brancos já tinha exacerbado os conflitos relativos à expropriação das terras e aos deslocamentos forçados. Um conselho legislativo foi instaurado, mas as populações indígenas foram excluidas de qualquer participação política até 1944. Os Kikuyu, grupo étnico o mais importante do país (mais ou menos 20%), reagiram a esta exclusão, criando a Young Kikuyu Association, conduzida por Harry Thuku. Tornou-se depois a Kenya African Union (KAU), uma organização nacionalista com revindicação o acesso às terras detidas pelos Brancos. Entre os líderes do movimento, encontrava-se então Johnstone Kamau, connhecido mais tarde sob o nome de Jomo Kenyatta e que será o primeiro presidente da República queniana. Aproveitando uma estadia de quinze anos na Europa, em Londres, ele vai estudar um tempo as estratégias revolucionárias em Moscovo e fundará a Federação panafricana, entre outros com Hasting Banda (futuro presidente do Malawi) e Kwame Nkrumah (futuro presidente do Gana).
A Segunda Guerra mundial ia depois precipitar o fim do colonialismo. Não só por causa do envolvimento de milhões de Africanos (a única East African Carrier Corps contava mais de 400 000 homens) e porque as duas principais potências que ocupavam a África (França e Reino-Unido) sairam enfraquecidas do conflito, mas também porque a luta contra as ideologias racistas e contra o autoritarismo dos regimes fascistas punha em luz as contradições das potências coloniais. Em 1942, a Carta do Atlântico negociada entre o Primeiro ministro britânico Winston Churchill e o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt previu na sua terceira cláusula a autodeterminação de todas as colónias após o fim do conflito. Em Outubro de 1945, o sexto Congresso panafricano reuniu-se em Manchester, colocando para frente muitas jovens figuras que iam depois a assumir o poder nos Estados inependantes, inclusive Jomo Kenyatta, o qual voltou no Quénia no ano a seguir, já liderando um verdadeiro movimento de libertação.
Um episódio marcante da história do país vai, porém, acontecer antes o acesso à independência: a revolta dos Mau-Mau, lançada em 1952. Ela é o resultado, entre outras coisas, de facções ativistas dentro da KAU, que manifestaram intenções mais radicais do que um Kenyatta que não deixava de ser um representante « aprovado » pelo governo britânico num âmbito constitucional em curso de elaboração. este dado é importante para entender qual elite assumiu o poder na hora da independência. Grupos começaram a intimidar os Brancos (e os seus colaboradores indígenas) nas suas explorações, com objetivo os fazer fugir e tomar possessão das terras. Paradoxalmente, embora denunciou a revolta numa reunião pública, Jomo Kenyatta foi detido com outros políticos kikuyu e condenados a sete anos de trabalhos forçados, ainda em 1952, acusado de ter apoiado a revolta dos Mau-Mau. As facções mau-mau reunirem-se para constituir a Kenya Land Freedom Army e conduzirem uma verdadeira guerrilha, obrigando os Britânicos a declarar o estado de emergência em Outubro do mesmo ano, e a conduzir importantes operações militares. Em 1956, o líder da revolta Dedan Kimathi foi detido e enforcado em praça pública. No total, quase 2 000 Kikuyu lealistes, 32 colonos brancos e 11 500 Mau-Mau (rebeldes) acharam a morte nesse conflito. É apenas em 2013 que o governo britânico aceitou indemnizar por 19,9 milhões de libras esterlinas mais de 5 000 Quenianos vítimos de torturas e de maus tratamentos duranta a revolta dos Mau-Mau.
Em 1961, Kenyatta foi libertado, após o executivo britânico ter anunciado o projeto de devolver o poder a um governo africano aleito democraticamente. A independência, adquirida em Dezembro de 1963, acompanhava-se de ajudas e emprestos por 100 milhões de dólares para permitir à Assembleia queniana de comprar de volta aos Brancos as suas fazendas das regiões montanhosas e de restituar as suas terras para as comunidades indígenas.
A era Kenyatta e o reino do partido único
Os primeiros anos do Quénia independente são marcadas pela implementação de um regime autoritário, cuja vida política atutal ainda é a herdeira. Kenyatta foi eleito Primeiro ministro em 1963, e tornou-se o primeiro presidente da República o ano a seguir. Uma carga que ele ia a ocupar até... 1978. O seu partido, a Kenya African National Union (KANU), nascido da fusão de três partidos (entre os quais a KAU), era favorável a um governo unitário centralizado, oficialmente para assegurar uma transmissão « tranquila » do poder. Aliou-se à Kenya African Democratic Union (KADU). Esta organização, que privilegiou, porém, o regionalismo (o majimbo, em swahili), aceitou auto-dissolver-se em 1964 para privilegiar uma superação das divergências políticas e o conceito de harambee (« puxar juntos »). É preciso entender esta decisão no contexto optimisto que caraterizava os primeiros tempos da independência. Embora ela deixou Kenyatta e a KANU com todos os poderes.
Em apenas uns dez anos, o regime de Kenyatta desilusionou toda uma geração. O novo poder tentou rapidamente ganhar a confiança dos colonos brancos, e o regime não mudou profondamente o Estado colonial e o seu sistema socioeconómico. Uma revolução que o majimbo teria provavelmente contribuido a realizar... O poder centralizado em Nairobi e nas mãos do presidente fortaleceu-se ao longo dos anos, em particular por uma série de alterações constitucionais que permite a Kenyatta exercer o seu controlo na função pública. A sua comunidade etnolinguística, a dos Kikuyu, foi privilegiada para o acesso ao emprego e aos recursos. A corrupção generalizou-se a todos os níveis do Estado. O Trade Union Disputes Act fechou a boca dos sindicatos, e a KADU foi proibida quando tentou reformar-se sob um novo nome, a Kenya People’s Union (KPU). Esta oposição entre um centralismo radical e um pedido nunca satisfeito de regionalismo, ou até de federalismo (em particular exprimida pelas populações do litoral e do Norte do país), permanece atual. Quando Jomo Kenyatta morre em 1978, ele deixa um país marcado por rivalidades étnicas vivas e fortes desigualdades. No estrangeiro, nada mais, pois de nacionalista africano, a sua imagem passou à a de um déspota corrupto que serve as antigas potências coloniais.
Em 1978, é o seu vice-presidente Daniel Arap Moi que o sucede... para quase um quarto de século. Originário da comunidade kalenjin (enfeudada aos Kikuyu), a sua presidência assegura a continuidade em matéria de nepotismo e de corrupção. Até vai fortalecer o caráter pessoal do seu poder, sendo reeligido em 1983, 1988, 1992 e 1997. Ao longo desses anos, as detenções de dissidentes multiplicam-se, tal como as ações de censura e o encerramento das universidades. O seu regime ataque defendedores dos direitos humanos e do meio ambiente, como o autor Ngugi wa Thiong’o ou a futura Preço Nobel da Paz Wangari Maathai. Ele reconfigura as instituições financeiras, jurídicas, políticas e administrativas, e proibe oficialmente os partidos de oposição em 1982 por uma alteração constitucional, provocando uma tentativa de golpe pelas forças aéreas. Com uma outra alteração constitucional em 1986, ele dá-se o poder de revocar o procurador geral das finanças, o verificador geral e os juizes do Supremo Tribunal.
É só no fim da década de 1980 que um vento de mudança parece soprar: podemos mencionar em particular a repressão sangrenta de uma grande meeting político em Nairobi em 7 de Julho de 1988 (evento chamado mais tarde Saba Saba, « sete sete » em swahili), e o ano a seguir a criação do Forum for the Restoration of Democracy (FORD) sob a condução de Jaramogi Odinga Odinga (o pai do candidato infeliz daquele ano, Raila Odinga), homem político da comunidade luo e antigo vice-presidente sob Jomo Kenyatta. Diante dessas mobilizações, mas também num contexto internacional favorável aos processos democráticos (no ex-Bloco soviético, na América latina, na África...), e por causa das dificuldades financeiras do país (com uma dívida externa de 9 bilhões de dólares e a suspensão geral das ajudas exteriores), o poder aceita uma modificação da Constituição que abre as eleições de 1992 ao multipartidarismo.t Contudo, essa eleição é marcada por muitos irregularidades, e quase 2 000 pessoas foram matadas em confrontos interétnicas no vale do Rift, em Oeste do Quénia. É só depois das eleições de 1997 que o seu partido, a KANU, é obrigado a ir mais longe nas reformas e a acabar com certas leis como por exemplo a obrigação de pedir uma autorização para poder realizar reuniões políticas.
Mercado de especiarias da cidade de Mombasa, no litoral.
Os anos Kibaki e as esperanças decepcioniadas de um Quénia democrático
Nas eleições de 2002, Daniel Arap Moi anunciou finalmente a sua intenção de retirar-se sem modificar a Constituição para poder representar-se. Porém apoiou a candidatura de… Uhuru Kenyatta, o filho de Jomo Kenyatta, o seu predecessor. Mas os doze partidos de oposição, que tinham tirado as lições das eleições de 1992 e de 1997, reunirem-se atrás de um candidato único, Mwai Kibaki, sob a bandeira da National Alliance Rainbow Coalition (NARC), a qual reuniu 62% dos votos.
A administração Kibabi, provavelmente a mais voluntarista e a mais dinámica que conheceu o Quénia desde a independência, tomou primeiramente um certo número de iniciativas, em particular medidas energéticas contra a corrupção que melhoraram a imagem do país na cena internacional. As ajudas exteriores chegaram em 2003 e 2004 para apoiar esse dinámica, e o FMI emprestou em Novembro de 2003. No entanto, logo em 2004, era claro que a « revolução anti-corrupção » não tinha acontecido. Entre outros, porque vários membros da KANU tinham sido associados ao novo poder, para assegurar-se a vitória a mais ampla possível nas eleições; e por causa do clientelismo ao qual conduzem as relações de poder interétnicas no Quénia. Se a taxa de escolarização subiu nos anos Kibaki, estima-se que quase um bilhão de dólares foram gastados pela corrupção, apenas nos dois primeiros anos da sua presidência. Em 2005, en apenas uns dias, o jornalista de investigação e denunciante John Githongo teve que demitir-se e partir em exílio, com receios para a sua própria vida (uma sequência contada em 2009 na obra It’s Our Turn to Eat: The Story of a Kenyan Whistle-Blower, de Michela Wrong). Os elementos que Githongo revelou em Fevereiro de 2006 até obrigaram o presidente Kibaki a destituir três dos seus ministros.
Novo encontro eleitoral, em 27 de Dezembro de 2007: se as eleições legislativas e autárquicas seguirem um curso normal, a presidencial foi, porém, marcada por muitas irregularidades. Mwai Kibaki foi declarado vencedor pela comissão eleitoral, e acontecerem depois violências e confrontos, e deslocamentos de populações no vale do Rift, os planaltos de Loeste, a província de Nyanza e Mombasa. Mais de 1 000 pessoas morreram, e 600 000 perderem as suas casas. Até então, a responsabilidade das violências de 2007 não foi esclarecida. Foi necessário a mediação da ONU e de um comité de personalidades africanas para conseguir a um acordo de partilha do poder em 28 de Févereiro de 2008, entre o presidente Kibaki e Raila Odinga, líder de oposição dirigindo o Orange Democratic Movement (e filho de Jaramogi Odinga Odinga). Esse acordo criou a carga de Primeiro ministro, confiada a Odinga, e repartiu os ministérios conformo à representação parlamentar.
Desta coligação saiu um projeto de nova Constituição, aprovada em 2010 por 67% dos votantes no âmbito de um referendo. Previa entre outras coisas a delegação de poderes às regiões, uma Declaração dos direitos e a separação do exécutivo, do legislativo e do judiciário. Em 2012, a descoberta do petróleo na região do lago Turkana alimenta novos apetitos no país, como também esperanças num futuro melhor. O ano a seguir, em 4 de Março de 2013, Uruhu Kenyatta, o filho do primeiro presidente pós-independência, ganhou a eleição presidencial por... 50,07% das sufragens, evitando por pouco um segundo torno contra (mais uma vez) Raila Odinga. O Supremo Tribunal confirmou o resultado apesar de novas irregularidades, e desta vez as violências pós-eleitorais foram limitadas. Em 2014, o novo presidente, inculpado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI) para ter contribuido às violências pós-eleitorais de 2007, viu finalemente abandonadas as cargas contra ele, por falta de elementos « para provar, além de qualquer dúvida razoável, a responsabilidade criminal de M. Kenyatta ». Três anos mais tarde, em 2017, ele era reeleito presidente num âmbito relativamente calmo. Mas desta vez, o Supremo Tribunal anulou o resultado com base um pedido da oposição (por 5 vozes sobre 7). Um dos membros da comissão teve que fugir para os Estados-Unidos, e a oposição boicotou finalmente a nova eleição, o que provocou uma fraca participação (apenas um terço dos eleitores, contra 80% na anterior).
Bandeira do Quénia, acima do Forte Jesus, em Mombasa. Adoptada em 12 de Dezembro de 1963, o preto representa o povo queniano; o vermelho, o sangue que correu na luta pela independência; e o verde, as riquezas naturais do país.
A eleição de 2022 e o drama do vazio ideológico diante dos desafios
É portanto neste contexto que acontecerem as eleições gerais de 2022. A configuração tinha como deixar perplexo, pois o candidato vencedor William Ruto, vice-presidente de Uruhu Kenyatta desde 2013, era oposto a Odinga (« Baba »), esse sendo apoiado por… Uruhu Kenyatta. Raila Odinga, 77 anos, foi vencido pela quinta vez numa eleição presidencial. Uma situação que sublinha a falta de alternância (e de alternativa) no poder, e que explica a ausência de debate ideológico de fundo no país apesar da grande variedade de eleições organizadas.
Porém, os desafios não faltam no Quénia, e em vez de iniciar projeto com futuro, a classe política concentra-se em objetivos eleitorais para manter-se no poder, jogando em particular sobre as rivalidades inter-regionais e interétnicas. O Quénia tem mais de 40 grupos étnicos, e nenhum representa a maioria demográfica. Sobre 100 pessoas no Quénia, 22 são Kikuyu, 14 são Luhya, 13 são Luo, 12 são Kalenjin, 11 são Akamba, e 28 são de outras etnias. Embora a maioria desses grupos coexistiram em paz desde a independência, a tendência etnocentrista do governo, em particular no âmbito das nominações às cargas de funcionários, provoca regularmente agistações e insatisfações. Durante as eleições muito contestadas de 1992, 1997 e 2007, confrontos entre duas grandes etnis, os Kikuyu e os Luo, agravados pelos sistemas de lealdade com outras etnias menores como os Kalenjin, provocaram muitos mortos e deslocamentos no país. A adopção da Constituição de 2010 foi um passo positivo, marcando o reconhecimento dos direitos das minorias étnicas e chamando o governo a refletir a doversidade regional e étnica do povo queniano. Mas claro, no terreno, as rivalidades e os processos clientelitas permanecem.
Entre os grandes desafios do país, podemos mencionar a fragilidade da economia e a precaridade de muitos Quenianos, apesar de progressos nas duas últimas décadas. As mulheres são alfabetizadas por 75%, os homens por 78%, e o Quénia envia mais estudantes nos Estados-Unidos do que nenhum outro país africano. Até a crise ligada à pandemia de COVID-19, a economia era bastante dinámica, apesar das catástrofes naturais, das crises pós-eleitorais e dos conflitos na Somália e no Sul-Sudão. Contudo, é claro que o crescimento económico só beneficiou a uma minoria da população, o que a corrupção encoraja. Os dirigentes quenianos são entre as pessoas as mais ricas do país. O Quénia seria entre os países com diferença de rendas a mais forte do mundo. Em 2016, o Indício de Desenvolvimento Humano (IDH, que mede a prosperidade de um país com base três critêrios: a esperança de vida, a educação e o nível de vida) colocou o Quénia no 146° lugar, sobre 188. O desemprego seria a cerca de 40%, e mais da metade dos Quenianos vivem abaixo do do miliar da pobreza; são ainda mais vulneráveis porque os preços dos produtos alimentares conhecem uma inflação forte. Adivinha-se facilmente a tensão social que poderia nascer de um novo choque, num país com população jovem (a idade média e 19,5 anos). Podemos acrescentar desafios sanitários importantes, pois o Quénia conta 36 000 mortos do Sida por ano; lá, estima-se a 1,6 milhões o número de pessoas com VIH-Sida.
O Quénia precisaria de uma classe política com visão, pois está particularmente exposto aos efeitos das mudanças climáticas, aos quais acrescentam-se tensões sobre o acesso dos recursos naturais. Assim, o Quénia é particularmente vulnerável às secas, como a maioria dos países de África de Leste. A maioria da população vivando em área rural (mais dos dois terços dos Quenianos) depende totalmente das chuvas para colheitas e pastagens. Essa questão junta claramente o desafio da propriedade fundiária, fator de tensão desde o tempo colonial. Muitos habitantes vivem à margem de parques nacionais ricos em fauna, ou perto de fazendas ou de reservas privadas com pastagens e terras agrícoles fertis, que lhes permanecem inacessíveis. Após as raras chuvas de 2016, e ainda o ano que vem, sobretudo no Norte e no Oeste do país, milícias e grupos de pastores armados fizeram a sua aparição no planalto de Laikipia, onde muitas fazendas pertecem a Quenianos brancos, descendentes de colonos britânicos. Um proprietário de fazenda foi matado, um outro muito ferido, e muitos lodges foram destruidos. A situação acalmou-se desde então, mas certos têm medo que esses primeiros confrontos sejam anunciadores de problemas muito mais importantes, num país com um crescimento demográfico forte, com chuvas cada vez mais caprichosas, e com poucos recursos violentamente contestadas.
Na ilha de Lamu, a uma centena de kilómetros da fronteira somaliana.
Os desafios de segurança ligados ao conflito somaliano
A situação geográfica do Quénia, entre a região dos Grandes Lagos e o chifre da África, expõe naturalmente o país a um certo número de riscos de segurança. Na década de 1990, em paralele a laboriosos progressos democráticos em curso, o Quénia viu assim aparecer no seu território a questão de segurança a cerca das ameaças terroristas islâmicas. Em 7 de Agosto de 1998, explosões simultâneas revindicadas pela organização Al-Qaida atingem as embaixadas norte-americanas de Nairobi e de Dar es-Salaam (na Tanzânia), matando mais de 200 pessoas. As consequências sobre a economia foram desastrosas, em particular sobre o turismo que demorou quatro anos para reatingir o seu nível antes do atentado.
Desde então, a década de 2010 viu o país preso numa engrenagem, combinando intervenções do exército e atentados espectaculares. Em Outubro de 2011, pela primeira vez desde a independência, o Quénia entrou em guerra. Após uma série de ataques transfrontaleiros conduzidos pelos shebab (Harakat al-Chabab al-Moudjahidin, jihadistas somalianos), o éxercito queniano envolveu-se numa intervenção militar na Somália. Uma implicação para a qual o Quénia pagou o preço forte: em 21 de Setembro de 2013, quatro terroristas afiliados ao mesmo grupo atacaram um centro comercialv de Nairobi, cercado vários dias pelas forças especiais quenianas, e 67 pessoas perderam então a vida. Em Abril de 2015, membros dos shebab mataram ainda 148 pessoas num atentado no campus do Garissa University College, no nordoeste do Quénia. Em paralele, as tropas quenianas sofreram com mortos ao nível dos soldados localizados na Somália. Até hoje o governo não tem estratégia clara de retiramento, embora pode-se notar que nenhum atentado foi notado nos últimos anos, provavelmente por consequência de medidas repressivas e de uma presença militar fortalecida no próprio território queniano (em particular perto da fronteira somaliana).
Uma outra pergunta difícil permanece sem resposta: as autoridades quenianas prometeram fechar o campo de refugiados de Dadaab, o maior do mundo, com uma população de 226 000 pessoas, a maioria sendo Somalianos. Segundo certos expertos, esse encerramento poderia reavivar as tensões à fronteira somaliana, onde a segurança e a estabilidade já são precarias.
Enfim, acrescentamos que num país com 11% de muçulmanos (com 83% de cristãos), essencialmente na área costeira, os conflitos vizinhos e os atendados terroristas jihadistas representam um fator de tensão suplementar a tomar em conta.
Em que estado está a participação política das mulheres e as desigualdades de género?
As eleições gerais do 9 de Agosto foram também a ocasião de questionar a participação das mulheres nos processos de decisão e da sua representação política. Finalmente, 26 deputadas (sobre 351 cadeiras no Parlamento, e contra 23 em 2017), sete governadores (contra três em 2017) e três senadores (para uma câmara alta que conta 67 pessoas) foram eleitas, o que não deixa de ser histórico. A campanha já tinha sido novadora em relação a isso, com um número recordo de candidatas, entre as quais três eram vice de candidatos à presidência.
Contudo, a situação não é gloriosa. Desde a eleição da primeira mulher no Parlamento em 1969, a paisagem política queniana permaneceu muito maioritariamente masculina. Durante a luta pela independência, porém, muitas mulheres tinham combatido ao lado de homens. O seu sacrifício foi amplamente esquecido depois da independência e a primeira Constituição do Quénia nem mencionava os seus direitos. A Constituição de 2010 permitiu melhorar isso, pelo menos no papel: as mulheres são descritas como um grupo desfavorecido, e a lei garante um tratamento igual para os dois sexos, proibe a discriminação sexual, chama o Estado a adaptar políticas de discriminação positiva e impõe um equilíbrio de dois terços/um terço entre homens e mulheres no Parlamento. Mas a sua aplicação é parcial, pois as duas câmaras nunca adoptaram as leis de aplicação – apesar de muitos recursos em Justiça.
Podemos notar, para as outras eleições de 2022, que as mulheres ganharam nos condados politicamente influentes de Kirinyaga e Machakos e em Meru, no centro do país, onde a antiga representante das mulheres Kawira Mwangaza apresentou-se como independante e venceu os seus oponentes masculinos. Na cidade de Nakuru, no vale do Rift, as mulheres obterem oito cargas, entre os quais um de governadora e uma de senadora. O número de mulheres eleitas já tinha aumentado em 2017 para atingir uns 20% da Assembleia nacional. O Quénia permenece, porém, longe de certos outros países da região em termos de representação, em particular o Ruanda cujo Parlamento conta uns 61% de mulheres. O caminho político das Quenianas é muitas vezes cheio de escolhos e o das candidatas de 2022 não foi uma excepção, pois a campanha foi caraterizada por violências contra as mulheres, como o comprova um relatório da Federação internacional para os direitos humanos. Mas o surgimento de mais candidaturas de mulheres não deixe de ser muito encorajador.
Apesar desses magros progressos, a sociedade permanece em geral caraterizada por desigualdades de género no acesso aos serviços básicos e aos recursos como as terras e o crédito, enquanto os papeis sexuais tradicionais ainda prevalecem muito. De fato, cada vez mais mulheres quenianas têm acesso à educação, e sobre nas cidades elas assumem um papel cada vez mais importante nas empresas e na política, no meio rural os papeis tipicamente femininos ou masculinos ainda prevalecem. As mulheres são consideradas apenas como mães, esposas, curadores, ensinantes. Um fator marcante de violência de género permanece na persistência das mutilações genitais femininas. Em certas regiões do Quénia, elas (meninas e mulheres) seriam umas 90% a sofrer do fenômeno. Embora são proibidos no Quénia sobre as meninas de menos de 17 anos, os rituais seriam ainda muito praticados em certas comunidades, e as iniciativas para as acabar são muitas vezes vistas como um ataque contra a cultura tradicional. Parece que grupos de mulheres trabalham localmente a preservar o espírito do ritual, sem intervenção chirurgical, para combinar tradição e respeito da integridade física.
Elemento interessante, contectado ao assunto da participação das mulheres, mas também ao da luta contra a corrupção e à questéao homossexual: desde Maio de 2021, o Supremo Tribunal queniano é presidido por Martha Koome, primeira mulher a dirigir esta instância (e a ser na liderança de um dos três poderes, executivo, legislativo ou judiciário). Esta antiga advogada, com 62 anos de idade, formada à Universidade de Londres e ativista histórica dos direitos das mulheres, tornou-se conhecida sob o regime do antigo presidente Daniel arap Moi (1978-2002) quando defendeu detidos políticos (entre os quais Odinga, por exemplo). Num assunto que não deixe de ser sensível, notamos que em 2019, ela fez parte de um grupo de cinco juizes que rejeitou uma iniciativa para impedir uma associação que defendia os direitos dos homossexuais, o que necessitava corajo. O seu grande combate: lutar contra a corrupção no sistema judiciário e preservar a independência da Justiça. Aproveitamos para acrescentar que a questão homossexual permanece também problemática neste país, como em muitos países da região, pois é marcada por um regime de proibições e de discriminações, com penas que podem ir até 14 anos de prisão. Uma situação muito bem posto em cena em 2018 no filme Rafiki, da realizadora Wanuri Kahiu, que conta a história de amor entre Kena e Ziki, duas raparigas de Nairobi confrontadas ao conservatismo dos seus pais respetivos e do seu bairro.
Cidade de Mombasa, no litoral.
A questão da soberania e a importância de preparar os desafios do futuro
A esses desafios acrescenta-se o da soberania do país, num contexto de predação crescente das potências estrangeiras. Podemos lembrar por exemplo que o exército britânico, através a British Army Training Unit in Kenya (BATUK), forma ainda uns 4 000 dos seus soldados cada ano. Aliás, a sua implantação e os seus movimentos, no âmbito dos seus treinamentos, estraga regularmente as terras das populações indíngenas – em 10 de Março de 2022, o juíza Antonina Cossy Bor, do Tribunal das terras e do ambiente de Nanyuki, declarou admissível, em relação a isso, a queixa de mil pequenos camponeses de Lolldaiga contra a BATUK.
Uma outra potência tenta há anos de acrescentar a sua influência. No âmbito da famosa « nova rota da seda » cujo quadro tem sido anunciado pelo governo de Pequim há mais ou menos dez anos, investimentos chineses importantes foram previstos para criar ou fortalecer as infra-estruturas terrestras e de caminhos de ferro ligadas ao porto de Mombasa. Em Abril de 2019, um accordo com a China anunciou também a construção de um data center na nova « cidade tecnológica » de Konza (a 70 km de Nairobi) pela enorme empresa de telecomunicações Huawei (com um custo de 154 milhões de euros) e a construção de uma via express com portagem servindo o aeroporto internacional Jomo-Kenyatta de Nairobi (440 milhões de euros), no âmbito de uma parceria público-privade com a sociedade China Road and Bridge Corporation.
Tais investimentos, como o novo comboio ligando Nairobi e Mombasa, poderiam nos deixar optimistos se o Quénia não era confrontado à inércia da sua classe política (incapaz de propor uma visão, nem de renocar-se), como também aos desafios de uma mudança climática muito concreto, e como também, ainda, às rivalidades inter-étnicas alimentadas pela corrupção e a precaridade. As eleições de 2022 fazem duvidar do fato que o país está capaz de ver surgir figuras políticas integras, preocupadas de melhorar a vida das pessoas e de limitar os apetitos estrangeiros. Desejamos que as palavras do escritor queniano Ngugi wa Thiong'o, « sunshine always follows a dark night », revelam-se proféticas para esse país, para o futuro de uma juventudade ao mesmo tempo dinámica e criativa, como o revela a cena artística rica do Quénia.