A questão catalã, ou como gerir o direito à autodeterminação dos povos
Em 14 de Fevereiro de 2021, foram organizadas eleições regionais na comunidade de Catalunha. Essas eleições acontecem um pouco mais de três anos após as do 21 de Dezembro de 2017, as quais foram provocadas com anticipação pelo então governo de direita de Mariano Rajoy para renovar essa assembleia eleita e sair da crise pós-referendo de Outubro de 2017 – contudo, o resultado da eleição foi um fracasso para o Partido Popular (PP) e deu uma nova maioria aos separatistas. Com essas eleições de 2021, embora o Partido dos socialistas de Catalunha (PSC) conduzido por Salvador Illa (ministro da saúde em 2020-2021) chegou em primeiro lugar (com 23% dos votos, ganhando quase 10 pontos em relação a 2017), o bloco independentista, ou seja a adição de todos os partidos favoráveis à independência, saiu fortalecido, obtendo uma maioria absoluta na nova assembleia, com mais de 50% dos votos (contra 47,5% em 2017). Num contexto marcado pela pandemia de COVID-19 que pode explicar uma subida de quase 26 pontos da abstenção (a participação foi de 53,5%, longe dos 79% de 2017), esse resultado permitiu portanto reconfigurar o Parlamento regional. Foi finalmente o líder de Esquerda Republicana de Catalunha (ERC), movimento de centro-esquerda moderado e independantista, chegado segundo com 21,3% dos votos, que acedeu à presidência da comunidade – Pere Aragonès –, em particular com o apoio de Junts (o movimento independantista de centro-direita criado por Carles Puigdemont, o qual foi presidente da Catalunha em 2016-2017). Uma mudança de direção, da direita para a esquerda, que consagra uma forma de ruptura com a direção da direita nacionalista catalana que tinha sido observada desde 2012.
Taiwan, País basco, Córsega, Tibete, Katanga, Escócia, Chechênia, Sudão do Sul, Kosovo, Ossétia do Sul, Abkházia, Casamança, Azawad, Crimeia, etc. Os exemplos não faltam, pelo mundo, de vontades secessionistas. Os contextos são diversos mas juntam-se na questão do direito à autodeterminação dos povos. No seu discurso do 11 de Fevereiro de 1918, enquanto estavam discolando-se grandes impérios multinacionais como o Império russo, a Áustria-Hungria e o Império otomano, o presidente norte-americano Wilson afirmou: « Os povos só poderão ser dominados ou governados com o seu próprio consentimento. » A definição de « povo » não era detalhada mas as bases do direito à autodeterminação eram formuladas, e seriam formalmente proclamadas após a Grande Guerra. Um século mais tarde, dado novas mudanças futuras na Catalunha e em muitas outras regiões da Europa e do mundo, damos um passo atrás para analisar essa noção (recente) de direito à autodeterminação, muito complexo a implementar em prática.
Convem lembrar primeiro o que representa a independência catalã para a Espanha: primeira região exportadora, a Catalunha, apesar de uma dívida pública pesada, é um dos seus pilares econômicos com 19% do PIB em 2016, na vanguarda na industria, na pesquisa e no turismo. Sobretudo, o secessionismo catalão questiona a coesão interna da Espanha, que constitui uma agregação de nacionalidades e de identidades regionais, estruturadas a cerca de uma história comum, de culturas próximas, e de uma monarquia herdada do fraquismo e cuja popularidade é muito variável segundo as regiões.
Muitos dos eleitos independentistas, entre os quais os líderes dos dois principais partidos na altura na organização do referendo do 1eiro de Outubro de 2017 (suspendido pelo Tribunal constitutional espanhol, e portanto considerado ilegal por Madri), Carles Puigdemont e Oriol Junqueras, são ou na cadeia, ou em exílio. Por lembrança, no âmbito da crise de 2017, a tutela da região pelo uso, pela primeira vez da História recente do país, do artigo 155 da Constituição, antecedeu eleições regionais anticipadas, em 21 de Dezembro de 2017, que deram uma nova maioria aos separatistas. A questão que tinha sido proposta no referendo organizado quase três meses antes foi: « Quer que a Catalunha seja um Estado independente na forma de uma república? » (Voleu que Catalunya sigui un estat independent en forma de República?). A vitória sem contesto do Sim, por 90,18%, é moderada pela fraca participação (42,38%), pelo boicote dos defendedores da permanência da região na Espanha e pelos confrontos com os policiais enviados por Madri para impedir o referendo. A situação é tal que a questão catalã dominou o discurso tradicional de Felipe VI, em 23 de Dezembro de 2017; e voltou a estar determinante nas atualidades do Outuno de 2019, quando protestos consideráveis foram organizados – após a condenação de nove líderes separatistas a penas entre 9 e 12 anos de prisão, em 14 de Outubro de 2019. Permanece desde então uma tensão muito forte que os principais protagonistas não parecem prontos a acalmar. Além das tensões identitárias – que dividem até dentro das famílias, e que os resultados eleitorais do partido de extrema-direita Vox nas eleições europeias e legislativas de 2019 não ajudam a apagar –, os impactos econômicos são reais também, enqaunto o país saia apenas da crise financeira de 2008. Somente em 2018, mais de 3 000 empresas, representando 30% do PIB catalão, já tinham deslocalizado a sua sede social fora de Barcelona e da província.
Diante desse situação, é interessante observar a postura adoptada pela União europeia, a qual opõe-se por princípio a qualquer separatismo no seu âmbito. No dia a seguir a proclamação de independência pela maioria separatista do Parlamento catalão (era em 27 de Outubro de 2017), o então presidente da Comissão Jean-Claude Juncker declarou: « Eu não gosteria que amanhã, a União Europeia fosse composta por 95 Estados membros » – talvez em referência ao número de regiões, na verdade de 98 na então « nomenclatura de unidades territoriais estatísticas » de Bruxelas. A doutrina da Comissão europeia é clara: uma região que torna-se inependente sairia pela mesma ocasião da União. Enquanto o ano 2019 era ao mesmo tempo (mas quem o notou?) os 60° anos do Tratado de Roma, um dos textos fundadores da construção europeia, as tensões separatistas nunca parecerem tão fortes no continento. Inclusive as em relação à própria União europeia, pois o processo do Brexit, iniciado com o referendo do 23 de Junho de 2016, e acabado em 31 de Janeiro de 2020, permitiu a saida de um país da UE. Em 2014, os Escoceses tinham recusado, por referendo, deixar o Reino-Unido, mas desde o Brexit, a questão parece colocar-se de novo – é pelo menos o desejo dos líderes separatistas escoceses.
Donde vem o « direito dos povos a dispor de si mesmos »?
O direito dos povos à autodeterminação designa o princípio segundo o qual um povo dispõe da escolha livre e soberano de determinar a forma do seu regime político e o seu grau de autonomia. Esse direito é inscrito no artigo 1 da Carta da ONU. Geralmente, a autodeterminação realiza-se por via de um referendo. Podemos mencionar o referendo do 1eiro de Julho de 1962 na Argélia por exemplo, que validou a adesão do povo à independência por 99,72%, ou ainda o do Sudão do Sul, organizado entre o 9 e o 15 de Janeiro de 2011, que consagrou o Sim à independência por 98,83% dos votos. A História recente colocou para frente, antigamente com a questão das nacionalidades, e depois com a descolonização, e mais recentemente com o desmembramento de Estados multinacionais do antigo Bloco socialista (URSS, Iugoslávia, Checoslováquia), o direito à dispor de si mesmos, que inclui o de fazer secessão e aceder à independência. No entanto, desde as suas origens que podemos datar do final do século XVIII, o direito dos povos a dispor de si mesmos sempre teve um contéudo mais ampla do que o direito à autodeterminação – integrando particularmente a questão dos regimes políticos. Aliás, esse direito evolui consideravelmente após a Segunda Guerra mundial, e encontra desde então fortes dificuldades pois parece contradizer outros princípios do direito internacional.
Esse conceito, embora é reivindicado após a guerra pelos Estados, esteve no centro das suas dificuldades e de muitos conflitos que os colocaram em confrontação: os ligados à descolonização, claro, mas também os de Coreia, de Palestina, do Vietnã, do Biafra, do Koweit, ou em secessionismos caucasianos (Ossétia do Sul, Abkházia, Chechênia, Alto-Karabakh, etc.). Acrescenta-se a isso tudo o desafio dos recursos naturais. Vemos bem por exemplo tudo o que supõe, num caso como o Curdistão iraquiano, a exploração das fontes de petróleo à sua fronteira meridional. Menos de um mês após a organização do referendo do 25 de Setembro de 2017 sobre a independência da região, o exército iraquiano lançou, com sucesso, uma ofensiva para recuperar os territórios ocupados pelas forças curdas além da fronteira administrativa da região curda reconhecida por Bagdad, inclusive a área de petróleo que elas ocupavam desde 2014. No Sahara ocidental para os minerais e a pescaria, no Sul-Sudão para o petróleo, em Cabinda para os diamantes e o petróleo, os exemplos não faltam, onde o princípio de autodeterminação enfrenta os desafios ligados aos recursos naturais.
No século XVIII, o fisósofo humanista Erasmus condena a realidade do seu tempo, ou seja, o fato que os reis dispõem das populações e dos territórios sem nunca consultar os seus sujeitos. O primeiro a defender claramente a livre determinação dos povos é Lenine, cujo livro A revolução socialista e o direito das nações a dispor delas mesmas (1916) já considerava o direito à autodeterminação como um critério geral da libertação dos povos oprimidos. Wilson deu, no seu discurso pronunciado no Monumento Grounds, em Washington, em 14 de Junho de 1917, ao princípio de « livre opção dos povos », chave do seu programa em quatorze pontos, uma significação muito ampla. Mas o aspeto essencial desse princípio era bem, segundo ele, o direito dos povos, dentro dos Estados, de governar-se sozinhos. Chamando à generalização dos regimes democráticos, ele retoma de fato o princípio revolucionário (francês) de soberania do povo. Portanto não se trata tanto então do direito de fazer secessão e de aceder à independência, mas o de Estados já constituidos. Esse conceito foi no entanto uma das bases do Tratado de Versailles para a redefinição das fronteiras na Europa central e oriental.
A sair da Segunda Guerra mundial, em 1945, a Carta das Nações Unidas introduz definitivamente esse conceito nas regras do direito internacional e da diplomacia, estabelecendo o objetivo de « desenvolver entre as nações relações amigas fundadas no respeito do princípio de igualdade de direitos dos povos e do seu direito a dispor de si mesmos. » (artigo 1-2). No entanto, muitos povos eram então submetidos à colonização. Dado o movimento de descolonização, a Assembleia geral da ONU vota, em 12 de Dezembro de 1960, a Resolução 1514, dita « Declaração sobre a concessão da independência aos países e aos povos coloniais ». Essa mesma reafirma o direito à autodeterminação, recusando qualquer atraso na acessão ou na concessão da independência, sob qualquer pretexto. A colonização sendo considerada como o prototipo da dominação, o princípio de autodeterminação teve rapidamente como efeito excluir amplamente da sua área de aplicação a questão dos regimes políticos, que reapareceu só recentemente com as intervenções no Afeganistão (2001), no Iraque (2003) e na Líbia (2011), entre outras coisas.
Contudo, a sua aplicação tem as suas contradições. Essa atenção no fenômeno de descolonização contribui portanto a fazer esquecer que o direito dos povos à autodeterminação proibe ceder territórios sem o consento dos seus habitantes Donald Trump deve o ter esquecido, quando ele formulou uma proposta ao Dinamarca, em Agosto de 2019, para comprar o território autónomo Groenlândia. A atituda da ONU no caso de Gibraltar, onde a Assembleia geral trouxe o seu apoio à Espanha declarando em 1967 o referendo de autodeterminação contrário às suas resoluções e levando portanto a cessão do território à Espanha contra a vontade manifestada pelos seus habitantes, é ilustrativa das contradições observadas na interpretação desse conceito. O referendo teve lugar em Gibraltar em 10 de Setembro de 1967. Sobre 12 237 votantes, 12 138 votaram em favor da permanência sob soberania britânica, e só 44 para a soberania espanhola.
O direito dos povos à autodeterminação perdeu assim uma parte importante da antiga significação que era-lhe conferida durante a Guerre Fria, para ser identificado só com o direito, para as populações não constituidas em Estados, de fazer secessão e aceder à independência, e o direito para os Estados já estabelecidos de dispor deles mesmos. Essa é a extensão que lhe confira o artigo primeiro do Pacto internacional relativo aos direitos cívicos e políticos, adoptado em 16 de Dezembro de 1966 pela Assembleia geral das Nações Unidas: « Todos os povos têm o direito a dispor de si mesmos. Sob esse direito, eles determinam livremente o seu estatuto político e asseguram livrement o seu desenvolvimento econômico, social e cultural. »
Como definir o « povo » que pode autodeterminar-se?
Durante a Guerra Fria, as elites inteletuais e políticas socialistas e dos Estados do terço Mundo apoiavam com força que o princípio de direito a dispor de si é um princípio de direito internacional, qualificado de jus cogens (« direito vinculativo »). Pelo contrário, nos países ocidentais, o direito dos povos à autodeterminação durante muito tempo não foi visto tanto como um princípio de direito, mas como uma doutrina, sem valor jurídica. Aliás, essa noção permaneceu muito tempo ausente da literatura especializada no Ocidente, enquanto as Nações Unidas consagraram a ela várias resoluções e anos de debates. De fato, a Carta das Nações Unidas, elogiando « o respecto do princípio de igualdade dos direitos dos povos e do seu direito a dispor de si mesmos », deu uma base jurídica ao princípio do direito à autodeterminação e a tornou uma verdadeira regra geral do direito, com uma vocação universal. Desta simples formula, todo o conceito moderno do direito à autodeterminação construi-se e constrói-se ainda hoje. Embora não é uma novidade nas relações internacionais, esse direito é uma novidade no sentido em que agora faz parte do direito positivo da ONU e é enquadrado em todas as suas disposições.
Mais amplamente, o debate a cerca da questão do « direito dos povos à autodeterminação » tem a ver com a definição das palavras: com que grau de precisão uma regra deve chegar para tornar-se uma regra jurídica? Os Biafrais, os Bengalis, os Iemênites do Sul, os Saharauis, poderiam beneficiar do princípio da autodeterminação, será que são « povos »? Será que a descolonizaçãoé a exata aplicação do direito dos povos à autodeterminação, enquanto as fronteiras herdadas colocam às vezes num mesmo Estado comunidades etnolinguísticas que só tinham em comum o fato de ter sido dominado pela mesma potência europeia? Será que o povo é designado pela simples manifestação da sua vontade, pela reivindicação da independência? Alguns juristas defendem por exemplo a ideia que a vontade predomina sobre a pertence étnica e cultural. Mas segundo muitos autores, o direito dos povos à autodeterminação é a continuação lógica, ou a consequência jurídica do princípio das nacionalidades. De fato, enquanto a nação correspondia ao princípio de nacionalides e o povo ao conceito de soberania popular, os dois conceitos juntam-se no âmbito das Nações Unidas e dos pactos internacionais de 1966. Assim, segundo a ONU, as palavras « nações » e « povo » são assimiladas às « populações » morendo num território deslimitado. O princípio do direito dos povos a dispor de si mesmos, que tornou-se na ONU uma regra geral, substitui no seu fundamento o conceito de nação pelo o de povo, noção mais larga e baseada no livre-arbítrio, o que significa que o povo é capaz de querer a sua autodeterminação.
A contradição das normas internacionais
Podemos distinguir, no direito à autodeterminação dos povos sem Estado, duas situações: a primeira é a da autodeterminação (a qual tem a ver com os povos colonizados, geralmente) e a segunda a da secessão. As tentativas de extender de forma ilimitada esse direito enfrentam, hoje em dia, o princípio de intangibilidade das fronteiras (corolário da igual soberania de cada Estado) – um princípio do direito internacional –, e por outro lado a incapacidade a definir a noção do « povo » que tem direito a dispor de si mesmo. Aliás, é por isso que o direito dado às minorias nacionais de constituir-se em Estados separados viu-se formalmente excluido no plano jurírido.
É por isso que as independências africanas virem nascer Estados herdados das fronteiras da colonização, sem olhar nenhum nas identidades étnicas e linguísticas pre-coloniais. Aliás, qualquer tentativa de independência fora do âmbito colonial foi um fracasso, um novo Estado só podendo criar-se por secessão. Secessão, a qual é rejeitada internacionalmente como princípio. Em 1960 por exemplo, quando o Katanga procura separar-se da República democrática do Congo, é a própria Organização das Nações Unidas que interveu. Existe algumas secessões pós-coloniais sucedidas, mas são raras, e elas confirmem a regra por terem sido possíveis em contextos muito particulares. O Bangladesh acedeu à independência em 1971 após uma intervenção da Índia, líder dos países não-alinhados. A Eritrea em 1991 aproveitou o colapso do Estado etíope, e a evolução violente do conflito é que convenceu Addis-Abeba a aceitar a separação desse território que, contudo, lhe dava o seu único acesso ao mar. E o Sudão do Sul só foi autorizado a organizar o seu referendo de independência em 2011, com o apoio das Nações Unidas, após uma segunda guerra civil de 22 anos, que destruiu a região e provocou a morte de mais de dois milhões de pessoas, e enquanto o regime de Khartoum era acusado de genocídio e de crimes contra a humanidade na província do Darfur.
Os Estados pós-coloniais servem-se do princípio do uti possidetis juris (« vocês possuirão o que já possuíam »), já usado pelos países de América latina na altura das independências do século XIX, segundo o qual as fronteiras administrativas dos antigos impérios coloniais tornam-se legitimamente as dos novos Estados. No seu acórdão do 22 de Dezembro de 1986, o Tribunal Internacional de Justiça reconheceu esse princípio como geral a logicamente ligado à independência para evitar que seja questionada a estabilidade dos novos Estados. Segundo a mesma lógica, a Comissão de arbitragem da ONU para a ex-Iugoslávia recusou formalmente o direito aos Sérvios de Bosnia e de Croácia a fazer secessão, e declarou então que o direito dos povos à autodeterminação não poderia modificar as fronteiras herdadas da independência? Hoje, esse princípio não serve só a estabilizar as fronteiras, mas também a assegurar a soberania (teórica ou real) de certos Estados. Por exemplo, a da Geórgia sobre a Ossetia do Sul ou a Abkházia, ou a da Ucrânia na Criméia.
Mas uma dificuldade da autodeterminação provem, claro, à deslimitação dos indivíduos que devem participar ao processo, ao grau de conexão do povo em questão. Quem constitui o « povo » a quem é concedido o direito a autodeterminar-se? Em Chipre do Norte por exemplo, será que a participação ao referendo de 2004 de muitos Turcos chegados da Anatolia após a invasão da ilha pelo exército turco em 1974, era legítima? Será que um referendo de autodeterminação organizado hoje pelo Marrocos no Sahara ocidental deveria associar os muitos Marroquinos chegados desde a descolonização espanhola em 1976, ou limitar-se às populações sahrauis? Igual no Xinjiang e no Tibeto chineses, onde os Uighures e os Tibetanos veem como uma ameaça a estratégia de povoamento iniciada há anos por Pekin. E hoje em dia na Catalunha, vemos bem as dificuldades que haveria em limitar o voto aos únicos Catalãos.
A forma que deve ter a expressão da autodeterminação é também uma questão: referendo, voto por via parlamentar, etc. Por exemplo, não é seguro que em 1993, a divisão da Checoslováquia votada por uma maioria de dois votos no Parlamento tem respondido a uma vontade real dos povos tchecos e eslovacos.
A necessidade de tomar em conta as revindicações catalãs para achar uma solução
As condições jurídicas para um esclarecimento do princípio de livre disposição dos povos são ainda longes. Esses últimos anos viram uma multiplicação acelerada de novos Estados: após as independências pós-URSS, pós-Iugoslávia e pós-Checoslováquia, Timor-Leste em 2001, o Montenegro em 2006 e o Sudão do Sul em 2011 também acederem à independência – sem falar das secessões (Somaliland, Kosovo, Transnistria, etc.) ou das anexões (Alto-Karabakh, Criméia, etc.) que não foram internacionalmente reconhecidas. A interpretação larga do direito dos povos à autodeterminação pode constituir uma porta aberta a sempre mais reivindicações, das províncias d'Aceh ou de Nova-Guiné na Indonésia, até o País Basco, passando por Cabinda na Angola, pela Chechénia, pela Catalunha, ou pelos Trigros Tamules no Sri Lanka. Os Estados o entenderem bem, e por isso a tendência a aplicar de forma rigorosa esse direito poderia declinar no futuro. Pelo menos, é o que parece indicar as dificuldades atuais do Kosovo e mais ainda da Abkházia e da Ossétia do Sul para aceder a um reconhecimento internacional.
Sobre a Catalunha, o que é incontestável, é que o poder de Madri não soube gerir uma crise separatista na qual viu-se um cocktail de problemas e de frustrações entretido pela Espanha desde décadas. A monarquia atual, mesmo se ela assegurou a passagem da ditadura a um regime parlamentar entre 1975 e 1978, no entanto é herdeira do regime de Franco, o qual tinha designado Juan Carlos como o seu sucessor la liderança do país. Certamente, um referendo foi organizado em 6 de Novembro de 1978 para validar o projeto de Constituição para a Espanha, mas o processo constitucional teve lugar num país preocupado em achar compromissos, após a violente guerra civil que provocou o desaparecimento dos líderes da esquerda republicana, entre 1936 e 1939, e após quarenta anos de ditadura corporatista. Hoje em dia, vozes ouçam-se para reivindicar um processo constitucional novo e transparente. Lembramos que durante a Revolução francesa, a Constituição de 1793 proclamou na sua Declaração dos direitos naturais, civis e políticos dos Homens (artigo 33): « Um povo tem sempre o direito de rever, de reformar e de mudar a sua Constituição. Uma geração não tem o direito de sujeitar às suas Leis as gerações futuras; e toda hereditariedade nas funções é absurda e tirânica. » Se ela nunca foi aplicada, essa Constituição elaborada pela Convenção montanhosa, contudo, era o resultado de reflexões filosóficas ricas relativas ao direito dos humanos a governar-se, e não a submeter-se a leis que eles não participaram a elaborar ou que eles nem elaboraram.
A abdicação de Junho de 2014 do rei Juan Carlos, encurralado pelos escândalos e os casos de corrupção afectando a família real, acrescentada à crise secessionista catalã, poderia ter criado uma oportunidade histórica de relançar um debate de fundo sobre a governança política, mas também econômica e social na Espanha. Se acrescentamos a isso a violente crise econômica e social que atingiu tanto o país e o seu vizinho, o Portugal, como também o fim da luta armada no País Basco espanhol desde 2011, até poderíamos ter imaginado que esse debate fosse alargado a toda a península ibérica. Mas nem os governos em posse, nem os partidos alternativos de esquerda e extrema-esquerda (o Bloco de Esquerda no Portugal, Podemos na Espanha), nenhum parece ser força de proposta nesses assuntos, e portanto conceber de forma séria a eventualidade de construir novos modelos coletivos, nos quais as identidades e soberanias seriam preservadas. Nos quais os povos da península poderiam falar de uma só voz quando os seus interesses o justificam. Nos quais o multilinguismo tornaria-se a regra. Nos quais o trabalho de memória e o reconhecimento das horas dramáticas da História (e as responsabilidades que o acompanham), mas também o princípio de reconciliação nacional, seriam um dever, que não esqueceria o estudo dos grandes cumprimentos da nação. Nas quais a procura de uma verdadeira democracia social e participativa ao nível local seria a norma. Em vez disso, o Estado espanhol conserva uma postura fechada e repressiva. A pena de prisão de 9 meses imposta ao cantor de rap Pablo Hasél, em 2021, por causa de insultos nas redes sociais com alvo a monarquia e a polícia espanhóis, o ilustrou bem.
Outro exemplo: o Tribunal Supremo espanhol tendo relançado em Dezembro de 2019 o seu pedido de arrestação, em 9 de Março de 2021, o Parlamento Europeu (os seus três grandes grupos: o Partido Popular Europeu à direita, os Sociais-democratas à esquerda, e Renew Europe no centro liberal) retirou a imunidade aos líderes da independência catalã, ou seja, Carles Puigdemont e dois dos deus antigos ministros, Toni Comin e Clara Ponsati. A Justiça espanhol pediu logo a extradição dos mesmos, desde a Bélgica onde eles estavam morando desde os eventos de 2017 – no entanto, a Justiça belga recusou o pedido espanhol, considerando que havia para os três eurodeputados um « risco sério de violação » do seu « direito a um julgamento justo » em Espanha. A imunidade dos mesmos foi provisoriamente restabelecida, três mês após o voto do Parlamento europeu, pelo Tribunal de Justiça da União europeia após um recurso depositado pelo próprio Puigdemont. Contudo, Puigdemont foi prendido pela polícia italiana, em 24 de Setembro de 2021, à sua chegada em Alghero, na ilha de Sardenha, onde o eurodeputado ia então para assistir a um evento a cerca da cultura catalã – a sua interpelação fez-se com base o mandato de captura europeu do 14 de Outubro de 2019. A justiça italiana o deixou finalmente livre, no contexto de um debate sobre a permanência da imunidade parlamentar de Puigdemont. Desde então, a situação política catalã ficou bloqueada sobre a questão da autodeterminação. Único sinal positivo em direção dos independantistas, em 22 de Junho de 2021, o governo de Pedro Sanchez agraciou nove líderes catalães, condenados em 2019 por « sedição » e « malversações »: após três anos de prisão, eles foram então libertados.
O princípio da autodeterminação, tal como existe, provavelmente não permitirá de resolver a crise catalã sem dor. Nem sem violência, como o ilustraram ainda os protestos do Outuno de 2019. Imaginar novos modelos, é também pensar o direito dos povos a dispor de si mesmos pelo prismo de um trabalho, de um longo processo coletivo e onde cada componente seria admitida como igual para construir um sistema que satisfaz todos. O que supõe repensar tudo: inclusive o tipo de regime, a localização da capital (ou o próprio conceito de capital), etc. Se isso torna-se impossível para as nacionalidades espanhois, que têm para elas uma coerência geográfica, socio-econômica, cultural e histórica forte, o que deveríamos deduzir disso para un conjunto tão amplo e diverso como a União europeia? Hoje, e na ausência de uma leitura revisitada do próprio conceito de « liberdade dos povos a dispor de si mesmos », Madri e Barcelona devem combinar, cada uma, com um jovo perdedor. A parte pode então ainda demorar um certo tempo.