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O acendedor de lampiões

Em África, como ultrapassar o choque da colonização e o mito da convergência pelo desenvolvimento? (1/2) A herança de uma empresa de desvalorização sistemática e interiorizada

4 Janvier 2024 , Rédigé par Jorge Brites Publié dans #Economia, #História, #Identidade, #África

Em 29 de Junho de 2019, há quatro anos, reuniram-se em Abuja, na Nigéria, os chefes de Estados membros da Comunidade económica dos Estados de Áfric de Loeste (Communauté économique des États de l’Afrique de l’Ouest em francês, ou CEDEAO). De forma bastante solene, eles chegaram a um consenso sobre o nome e o prazo da circulação de uma nova moeda, o ECO, para substituir o Franc CFA. Revindicação antiga dos ativistas e pensadores panafricanos e anticoloniais, que consideram a Franc CFA como uma ferramenta de controlo das suas antigas colónias pela França, esse projeto de moeda regional criou logo polémicas. O debate  cristalizou a cerca do grau de emancipação real que ela oferece aos Estados, em relação ao Tesouro francês e do euro.

Aquele assunto da moeda constitui uma questão de soberania óbvia para os Estados africanos, entre os quais uma amioria ainda deve compor com o desafio da emancipação em relação às antigas potências coloniais. Esquece-se muitas vezes, em França por exemplo, a proximidade histórica e a violência das mudanças que supôs, nesse continente, a colonização. Colonização que traduziu-se, para sociedades inteiras, por um colapso pluridimencional, parcial ou total dos valores, dos sistemas e dos paradigmas. Tornadas cegas por uma revolução industrial e científica sem precedente, as potências coloniais justificaram a sua « missão civilizadora » sobre o mito de uma recuperação, de uma convergência da África em relação à Europa, que permitiu confortar tanto a sua leitura lineária da História como a sua concepção racista da humanidade. Dai, heranças complexas para desconstruir, começando por uma interiorização do desprezo das sociedades africanas e dos seus habitantes.

Para medir corretamente o choque pluridimencional que constituiu a colonização europeia na África, começamos por a resituar na História. Muito tempo, entre os séculos XV e XIX, as possessões europeias resumirem-se a umas feitorias comerciais, em particular portugueses no Golfo de Guiné, na Angola e no Moçambique; holandeses no Cabo de Boa-Esperança; e franceses em São-Luís e na ilha de Gorée. A presença europeia era então marcada pelo comércio triangulário, baseado no tráfico de escravos em direção das minas ou das plantações americanas, notavelmente nas Antilhas no Brasil e no que iria a tornar-se os Estados-Unidos.

A colonização tomou o tamanho que lhe conhecemos a partir do século XIX. Na altura da conferência de Berlim em 1884-1885, a implantação europeia é ainda longe da que é muitas vezes observada nos mapas do mundo em 1914. Col raras ecepções, ela ainda se limita às costas: os Espanhóis são presentes no Rife marroquino, os Portugueses nas costas angolana e moçambicana, os Francesas no Senegal, os Britânicos na Gold Coast; e várias ilhas já são entre as mãos das potências europeias, como Santa-Helena para o Reino-Unido ou Cabo-Verde para o Portugal. Os Britânicos aproveitaram da invasão dos Paises Baixos pela França de Napoléon para tomar possessão do Cabo em 1806. Os Franceses iniciaram a conquista da Argélia desde 1830.

A partir dda segunda metade do século XIX, um conjunto de circunstâncias vai facilitar a conquista. O Reino-Unido conhecia desde o século XVIII uma forte industrialização, que estendeu-se depois ao resto da Europa e aos Estados-Unidos. As mutações econômicas, acrescentadas à crise bancária de 1873, provocam um tempo dito de « Grande depressão » (1873-1896) que motiva as potências europeias, Reuni-Unido em primeiro lugar, a procurar novos mercados. A Europa conhecia também progressos técnicos notáveis nos transportes e nas comunicações, como a máquina a vapor ou o telégrafo, e na medicina, o que permite a aventura em áreas tropicais apesar das doenças como o paludismo. Todos esses progressos técnicos não só facilitam as conquistas, como também as tornam necessárias, pois a Revolução industrial provoca uma subida da procura em matérias-primas (indisponíveis na Europa), sobretudo cobre, algodão, borracha, chá ou estanho. Os progressos da ciência aumentam também o interesse dos investigadores europeus para o continente, a sua fauna e a sua flora (e os seus seres humanos, muitas vezes para confortar teorias racistas em vigor na Europa). Da mesma forma, o continente interesse as diferentes Igrejas, tão preocupadas em salvar as almas perdidas dos seus habitantes. O discurso elogiando a « missão civilizadora » da Europa na África é frequente e justifica a empresa colonial na imaginação colonial. Já inclui a ideia intrínseca de um « atraso » da África (e dos outros continentes) em relação à Europa. Nesta retórica, os ganhos políticos ou conômicos só representam um benefício colateral para a Europa; e a resistência dos indígenas um escolho negligenciável.

Além dessas motivações diversas, aparece claro que o prestígio ligado às conquistas coloniais, ao fato de dispor de um « império », como a concorrência entre Estados europeus (num contexto de subida do nacionalismo, desde as guerras napoleônicas) para ter a disposição territórios, mão de obra, riquezas naturais, etc., encorajaram muito o fato colonial. Aliás, por isso as conquistas contribuirem regularmente a alimentar as tensões entre as potências que, depois, irão lutar na Grande Guerra de 1914 – as quais lançaram com elas as suas colónias no conflito (Um século depois, a história de Moçambique na Primeira Guerra mundial).

Monumento aos mortos de 1914-1918, São-Luís.

A violência da colonização, na continuidade de uma visão racista antiga

O tráfico de escravos negros pelas potências europeias, que precede a empresa colonial na qual nos interessamos aqui, já teve impactos notáveis sobre certas das sociedades e das economias africanas. Esse tráfico de seres humanos pode ser historicamente localizado entre 1441, com as primeiras deportações na Península ibérica, e 1865 com o fim da Guerra de Secessão americana – a escravidão dos Negros continua no Brasil até 1888, mas o tráfico transatlântico declinou fortamente desde o início do século, os Britânicos impondo a sua proibição. Apesar da existência de outros circuitos de comércio de escravos (intra-africanos e árabes-muçulmanos), o tráfico negreiro transaltântico merece ser mencionado como fator preliminário de destabilização, de destruturação e de desumanização das sociedades africanas e dos seus habitantes. Retrospetivamente, ela se apresenta quase como um prelúdio a o que será mais tarde a colonização. A maioria das estimações sobre o tráfico atlântico estimam a mais de 11 milhões o número de deportados em quatro séculos, principalmente na costa de África de Loeste e na foz do vale do rio Congo – favorecendo o estabelecimento de feitorias europeias donde partirão, de fato, várias das conquistas coloniais no século XIX. Em 1997, o historiador britânico Hugh Thomas estimou a um total de 13 milhões o número de escravos que deixaram a África, entre os quais 11,32 milhões chegaram à destinação por meio de 54 200 travessias (30 000 somente para o Portugal e a sua colónia brasileira). Conviria acrescentar ainda os mortos não contabilizados no caminho, o drama de milhares de famílias e aldeias africanas despojadas dos seus homens, mulheres e crianças, e is impactos demográficos, políticos e econômicos do tráfico sobre as sociedades africanas afetadas.

Sobretudo, a escravatura praticada pelas potências europeias leva uma dimensão intrinsecamente racista com alvo particular os povos negros. Logo em 1455, na sua bula pontifícia do 8 de Janeiro (Romanus pontifex), o papa Nicolas V mencionava « os excessos selvagens dos Saracenos e outros infiéis » para justificar a escravidão praticada nas terras novamente descobertas pelos Europeus na África. Uma mistura de racismo e de fanatismo religioso permitiu legitimar os piores horrores, inclusive algumas décadas mais tarde no continente americano. Mais ou menos quatro séculos e meio mais tarde, podemos mencionar, para ilustrar o racismo que carateriza a visão europeia da África no momento em que começa a colonização, entre muitos outros, o discurso de Victor Hugo pronunciado em 18 de Maio de 1879: « Que seria a África sem os Brancos? Nada; um bloco de areia; a noite; a paralisia; paísagens lunares. A África só existe porque o homem branco a tocou. […] Está ai, a frente de nós, este bloco de areia e de cinza, este pedaço interte e passivo que, desde seis mil anos, faz obstáculo à marcha universal, este monstruoso Cham que para Sem pela sua enormidade. […] Esta África feroz só tem dois aspetos: povoada, é a barbaridade; deserta, é a selvageria. […] No século dezenove, o Branco fez do Negro um homem; no século vinte, a Europa ferá da África um mundo. » Lembramos também que estas palavras foram pronunciadas, precisamente, num banquete celebrando a abolição da escravatura, o que pode parecer particularmente irónico, pois os Europeus, que têm então mais de 400 anos de tráfico negreiro por eles (e cujos descendentes continuam, naquela altura, a praticá-la no Brasil) justificam a empresa colonial com base a sua missão abolicionista e civilizadora.

Em frança, tal como em outros países na mesma altura, esta retórica, que vinha apoiar o processo de colonização dirigido pela III° república, adoptava um tom profundamente desumanisante. No mesmo discurso, Victor Hugo acrescentava: « O Mediterrâneo é um lago de civilização; certamente, não é por acaso que o Mediterrâneo tem numas das suas beiras o velho universo e no outro o universo ignorado, ou seja, de um lado toda a civilização e do outro toda a barbaridade. […] Vão, Povos! Apoderam-se daquela terra. Pegam-la. A quem? A ninguém. Pegam aquela terra a Deus. Deus dá a terra aos homens, Deus oferece a África à Europa. »

Contrariamente aos discursos que dominam então na Europa, a colonização não constituiu o encontro harmonioso entre uma Europa civilizada e uma África bárbara. A presença europeia foi imposta a maioria das vezes de forma violenta, e confrontou-se a movimentos de resistência, às vezes encarniçados – e os exemplos de guerras de resistência que acabaram-se ao preço da conquista militar e à aniquilação dos reinos ou proto-Estados existentes não faltam. Podemos mencionar, na Argélia, a resistência à ocupação francesa, na parte Loeste pelo emir Abdelkader entre 1839 e 1847, e na parte Leste do país por tribos berberes de Cabília dirigidos por Lalla Fatma N’Sommer, entre 1849 e 1857; o reino de Dahomey (no atual Benim), conquistado pela França nas décadas de 1870 e de 1880; o reino de Gaza (em Moçambique), desaparecido após a batalha de Coolela contra os Portugueses em 1895; as revoltas dos Batelela em 1895 e em 1897 no Congo, reprimidas pelas tropas belgas; ou ainda o reino zulu, anexado à colónia sul-africana após a guerra anglo-zulu de 1879-1897. No Chifre da África, as tropas do Império de Etiópia até derrotam a Itália em 1895, que deverá recomeçar quarante anos mais tarde para invadir o país, em 1935-1936.

Convem, para entender o sucesso da ocupação, guardar em memória a ameaça da repressão violente que apresentavam constantemente as potências coloniais. Esta ameaça não só permitiu a exploração dos recursos naturais, mas também e sobretudo a dos seres humanos, pelo trabalho esforçado, e a mobilização em massa dos homens durante as duas guerras mundiais. O caso o mais flagrante de trabalho esforçado sendo provavelmente o do « Estado independente do Congo », possessão pessoal do rei da Bélgica Léopold II entre 1885 e 1908. No final do século XIX, a oportunidade oferecida pela imensidade do território e pelas riquezas abondantes (borracha, marfim, minas, etc.) incentivam a corroa bélga e as companhias concessionárias a aplicar um regime de trabalho esforçado caracterizado por uma violência inédita desde o tráfico negreiro. Assassinatos em série e mãos cortadas para os recalcitrantes ao trabalho nas plantações de borracha são só exemplos entre outros de sevícias então aplicadas... No total, entre 1885 e 1908, as mais baixas estimações para o país variam entre três e dez milhões de mortos.

Monumento em homenagem às vítimas da repressão portuguesa na greve de 1959 dos trabalhadores do porto de Bissau, na Guiné-Bissau.

Monumento em homenagem às vítimas da repressão portuguesa na greve de 1959 dos trabalhadores do porto de Bissau, na Guiné-Bissau.

As violências do Congo são emblemáticas mas são longe de ser únicas. Na sua colónia do Suloeste africano (atual Namíbia), a Alemanha praticou uma política de limpeza étnica contra os Hereros e os Namas, entre 1904 e 1910, relocalizando populações inteiras em campos de concentração. Os Hereros virem a sua população diminuir de 90 000 para 15 000 pessoas, e os Namas de 20 000 para 10 000 (ou seja, metade da população dizimada), este espisódio é geralmente considerado como o primeiro genocídio do século XX. Outro exemplo na Argélia em Maio de 1945, quando vários protestos independentistas foram reprimidos pela França em Sétif, Guelma e Kherrata, ao preço de 20 000 a 30 000 vítimas. Igual em Madagáscar em 1947, onde as autoridades coloniais francesas reprimirem motins ao preço de 40 000 vítimas, sobre mais ou menos quatro milhões de Malgaxes. Os exemplos não faltam, e convem acrescentar ai centenas de milhares de vítimas causadas pelas guerras de descolonização: mais de 250 000 mortos durante a Guerra de Argélia (1954-1962), mais de 65 000 mortos na guerra de independência de Moçambique, ou ainda mais de 50 000 mortos na de Angola (1961-1974).

Lembrar todas estas violências é essencial para entender as revoluções que conhecerem algumas das sociedades colonizadas na sua organização social e nos seus equilíbrios demográficos: para aldeias esvaziadas dos seus habitantes para as necessidades do trabalho esforçado ou para reprimir as revoltas, o impacto social é enorme e ultrapassa muito a era da colonização. Por todo o continento, além da escravatura, a repressão das revoltas e o trabalho esforçado fizeram recuar a demografia e destruturaram partes inteiras das sociedades locais. Sobretudo, longe da caricatura segundo a qual a colonização teria pacificada tribos de « selvagens » somente ocupados a lutar uns contra outros, a colonização introduziu um clima contínuo de violência. O historiador norte-americano Georges Lachmann explica na sua obra Da Grande Guerra ao totalitarismo: a brutalização das sociedades europeias (1999) que a colonização, acrescentada à Primeira Guerra mundial, participou a desenvolver uma « cultura da violência » nas sociedades europeias. Mas é claramente possível que esta « brutalização » das mentes afetou as colónias também, limitando as possibilidades de uma independência em condições optimais.

Os casos de Angola e de Moçambique são particularmente marcantes em relação a isso, pois às guerres de independência seguiram lá, quase logo depois, guerras civis ainda mais sangrantes. Igual na República democrática do Congo, cujas províncias de Leste, desde a tentativa de independência do Katanga em 1960 até o atual conflito no Kivu, nunca pararam de conhecer as violências armadas, as ingerências estrangeiras, as limpezas étnicas e os trabalhos esforçados, ainda e sempre alimentados pela questão das imenses riquezas naturais que conta o país.

Mesmo quando a colonização aconteceu sem crimes a grande escala, ela permanece uma empresa dirigida sob a coerção. Excepcionalmente, podemos lembrar estas palavras do Americano Samuel Huntington em O choque das civilizações (1993): « O Ocidento venceu o mundo, não porque as suas ideias, os seus valores, a sua religião eram superiores (raros foram os membros de outras civilizações a converter-se), mas bem mais pela sua superioridade a usar a violência organizada. Os Ocidentais o esquecem muitas vezes, mas os não-Ocidentais, jamais. » Em todo lugar, a chegada dos Europeus e depois a sua dominação política são descritos como processos, ou violentes, ou insidiosos em relação a populações locais abusadas pelos discursos, as promessas e as tecnologias dos Europeus. Muitas obras artísticas e culturais ilustraram estes processos. Por exemplo, na sua obra Things Fall Apart (1958), em português Quando tudo se desmorona, o autor nigeriano Chinua Achebe descreve muito bem a chegada britânica no suleste do Nigéria no final do século XIX, e o que ela representou como revolução progressiva para habitantes (da etnia igbo) da floreste equatorial que eram quase isolados do mundo – sem idealizar as sociedades precoloniais, pois a história começa sobre uma ruptura entre o personagem principal, Okonkwo, chefe de clã, chocado pelo sacrifício humano contra o seu melhor amigo (é precisamente o choque que facilita, depois, a sua recuperação pelos missionários cristãos). O autor faz assim falar Okonkwo: « Como queres que lutamos enquanto os nossos próprios irmãos viraram-se contra nós? O Branco é muitohábil. Veio tranquilamente e em paz com a sua religião. Rimos de todas esses disparates e lhe permitimos ficar. Agora ele conquistou os nossos irmãos, e o nosso clã não tem mais nada para fazer. Deixou uma faca sobre as coisas que nos ligávamos todos juntos e tudo desmoronou-se. […] O Branco tinha trazido uma fé delirante, mas ele tinha também estabelecido uma feitoria comercial, e pela primeira vez o óleo e a noz palma tornaram-se produtos a grande custo. »

Mesmo ambiente em A Odisseia de Mongou (1977) e em As ilusões de Mongou (2002), do autor centrafricano Pierre Sammy Mackfoy, que contam respetivamente a chegada dos Europeus na floresta equatorial da África central, e depois as desilusões da independência. No segundo livro, o personagem principal, Mongou, descreve assim o processo de manipulação dos colonos: « Um dia eles desembarcam em nossa aldeia, não sabemos como, assinam connosco um papel de camaradagem, nos prometando proteção, felicidade, saúde, prosperidade, mas aproveitam um pouco mais tarde para nos desapossar das nossas terras e nos subjugar! Eles são mestres e apropriam-se todos os direitos! Eles criam novas necessidades que não podemos satisfazer sozinhos e que nos colocam num estado de perpétuos requerentes, portanto de dependência. Deixamos toda a nossa indústria ancestral e só vivemos na espera das suas contribuições. A nossa creatividade enfraquece-se, estagna e depois adormece. Isso demora anos, passa por todas as etapas de dominação e de exploração possível e imaginável. »

Palácio do sultão Bamoun, na cidade de Foumban, em Camarões, com uma arquitetura de inspiração alemã.

Palácio do sultão Bamoun, na cidade de Foumban, em Camarões, com uma arquitetura de inspiração alemã.

A depreciação cultural e o racismo interiorizado

A colonização não é só um estatuto político de dominação e de implementação de colonos por uma potência estrangeira, portanto convem a analisar como processo. Processo de exploração das riquezas e da terra, certamente, mas também processo de depreciação cultural e de alienação das mentes. Assim, o que muitos consideram hoje como « aspetos positivos da colonização » constituirem ferramentas de destruturação cultural e identitária. Escolas foram portanto construidas, mas elas ensinavam a maiora parte do tempo na língua colonial, e permitiam formar futuros agentes ao serviço da metrópole. Tal como todo o projeto colonial, a implementação de escolas não tinha outro alvo do que maximizar a exploração da populaçãoe dos recursos dos territórios ocupados, ao benefício da metrópole e dos colonos. Numa circular redigida em 1897, o Governador geral da África Ocidental Francesa (AOF), Jean-Baptiste Émile Chaudié, escrivia: « A escola é o meio o mais seguro que uma nação civilizadora tem de adquirir às suas ideias as populações ainda primitivas. » E o seu sucessor na direção da AOF, William Merlaud-Ponty, acrescentava ainda numa circular de 1910 que a escola é a ferramenta « que serve melhor os interesses da causa francesa ».

Após as independências, no âmbito de uma historiografia construida por « áreas culturais », pesquisas importantes foram realizadas por historiadores francesas, como Yvonne Turin sobre o ensino nos primeiros tempos da colonização na Argélia, Denise Bouche sobre o ensino na AOF, ou ainda Fanny Colonna, de novo sobre a Argélia. Essas pesquisas permitem uma reflexão sobre a « ação educadora e civilizadora » da França, e propõem um certo número de análisas fundamentais. Enquanto trabalhavam também sobre a retórica daquela época sobre a instituição escolar, sobre os programas e manuais de ensino, sobre os princípios que conduzirem a política francesa (tanto missionária como pública, com alvo principal os rapazes), as autoras interessaram-se à dimensão social da empresa. Contudo, elas descrevem a coexistência, em todos os territórios, de um ensino europeu e de um ensino indígena. As taxas de escolarização permanecerem globalmente muito fracas para os indígenas: nenhum é superior a 25%, na véspera das independências; a taxa média para a AOF é 10% em 1957, 15% na Argélia. Além disso, as suas pesquisas permitem identificar um ensino primário básico destinado à maioria das populações, um ensino primário superior e um ensino profissional dado nas escolas ditas normais ou comerciais, e e umas muito raras áreas segundárias e universitárias. Aliás, muitos lingüistas, professores e inteletuais daquela época, e até administradores coloniais, procuraram desmostrar a necessidade de adaptar o ensino do francês segundo os países, os costumes e os públicos, adaptabilidade fundada numa ideologia racista, pois o ensino da língua francesa (língua superior de um povo superior) tinha que ser adaptada aos povos colonizados, de acordo com o lugar de cada um na escala racial. Os métodos de instrução (os meios implementados) eram portanto diferentes, entre os sujeitos escolhidos (ou metropolitanos), e a grande maioria dos indígenas. Além disso, as pesquisas historiográficas já mencionadas mostram que, em nenhum lugar nos territórios sob dominação francesa, a escola não foi nem de graça nem obrigatória para as populações locais.

Sem demorar sobre os « resultados » da colonização em termos de escolarização, que não tem nada para fazer sonhar (a taxa de escolarização para a AOF era de 10% na altura das independências, e de 15% na Argélia, e a taxa de alfabetização de somente 2% em Moçambique em 1975), convem questionar o próprio princípio dessa « missão civilizadora ». Ela tem como postulado que o conhecimento, a ciência, os saberes eram nas mãos dos Europeus, e que para a partilhar com os Africanos analfabetos, incultos e bárbaros, a colonização era um mal menor. Essa maneira de pensar tem como deixar perplexo por vários motivos. Primeiro porque ela supõe uma ignorância e um desprezo dos conhecimentos e saberes acumulados por sociedades inteiras desde vários séculos – às vezes ao ponto de mudar a narração da realidade, pois achava-se elites alfabetizadas em língua árabe na África do Norte (as bibliotecas das cidades de caravanas de Chinguetti, na atual Mauritânia, ou de Tombouctou, no norte do Mali, são boas ilustrações disso) e até a África central e o Chifre da África. O Império de Etiópia tinha a sua própria escritura, o alfasilabário ge'ez cujas origens vão até o século VII antes de J.-C., e no qual escrevem-se as línguas amárica ou tigrinya no Chifre da África. Só no Sahara, desde a Argélia até a Líbia, passando pelo Mali ou o Níger, recensearam-se uma dezena de alfabetos, os tifinagh, nascidos em sociedades berberes da Antiguidade e tradicionalmente usados pelos Tuaregues até o início do século XX. Símbolos mais recentes tinham também aparecido na África de Loeste: acha-se assim escrituras vai, mende, loma, kpelle e bassa desde a parte ocidental da Libéria até a Sierra Leone; as escrituras bamoun, bagam e ibibio-efik Oberi Okaime no delta do Níger e em Camarões; e a escritura bété na Costa de Marfim. Hoje em dia, fora da Etiópia na qual a ocupação italiana, entre 1936 e 1941, teve poucas repercussões e longo prazo, as outras escrituras mencionadas foram amplamente esquecidas, e a permanência ao mesmo tempo das antigas línguas coloniais como línguas oficiais, e de sistemas escolares inspirados dos modelos europeus, complicou muito a sua recuperação após as independências.

Trabalho de escritura árabe, aldeia em Camarões.

Esta lembrança, que leva sobre a existência de escrituras na África, poderia ser estendida a todos os setores do conhecimento. Tal como as curandeiras e parteiras codenadas por bruxaria na Europa durante quase quatro séculos, as medicinas africanas foram por exemplo logo desprezadas e ignoradas pelos colonizadores – sabendo que na Europa, como o explica muito bem a ensaista Mona Chollet em Bruxas, a potência indomável das mulheres, a revolução científica a partir do século XVIII baseou-se num postulado falacioso de objetividade e de distinção estrita do humano e da natureza, o que permitiu exluir as curandeiras (e pela mesma ocasião, as mulheres em geral), mas também as mecidinas vindas das sociedades não-ocidentais, vistas como próximas demais da natureza. Esta desvalorização cultural aplicada à medicina tem repercussões concretas até hoje. As medicinas chamadas tradicionais, com base plantas medicinais, que curariam no entanto mais ou menos 80% da população na África como na Ásia segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), são ainda amplamante desconsideradas, desorganizadas e sub-financiadas. Tipicamente, constata-se que os governos africanos não questionam os tradipraticantes e não lhes dão os meios para fazer o inventário das práticas eficazes, o que trazaria a prova, por exemplo, da inofensividade e da eficiência dos remêdios com base plantas. E, em crises sanitárias como a do vírus Ebola em 2013 ou a do COVID-19 em 2020, seria a ocasião de mobilizar os etnofarmacologistas para procurar vacinas ou tratamentos.

Aliás, as ciências ocidentais foram ativamente mobilizadas para justificar a superioridade da « raça branca », e assim justificar a colonização. A teoria da evolução das espécies que apareceu no século XIX pelo naturalista Charles Darwin, e os muitos trabalhos e viagens de exploração que tiveram lugar naquela altura, alimentaram uma pesquisa supostamente científica e com alvo confortar os preconceitos racistas em relação às populações não-ocidntais. A busca de um « elo perdido » na evolução entre o antepassado simiesco e o humano alimentou então todos tipos de teorias bizarras. A frenologia, que é a estuda do crânio e que supõe que este, pela sua forma e o seu volume, indica o caráter e a inteligência do indivíduo, serviu também a alimentar teorias segundo as quais os Negros, mas também as mulheres, são menos inteligentes. No século XX, as experiências de frenologia, ou craniologia, entraram em declínio a partir da Primeira Guerra mundial, mas a subida da psicanálisa e da psicológia as substituiu pelos testes de inteligência, sobre os quais os teóricos racistas de qualquer género, como os eugenistas americanos Harry Laughlin e Madison Grant, não faltaram de basear-se para julgar o grau de inteligência de tal ou tal grupo racial. Obviamente, sem nenhuma perspetiva cultura do conteudo daqueles testes, ou mesmo do conceito de « inteligência ».

Esta desumanização até traduziu-se na lei, suposta regulamentar o tratamento dos colonizados. Certamente, a escravatura era proibida (embora o trabalho não é muito longe), mas um estatuto e um tratamento diferenciados eram comuns. Nas colónias francesas, o Código do indigenato impôs-se em 1887 (e demorou até 1946), estabelecendo uma distinção entre os cidadãos franceses (de origem metropolitana) e os sujeitos franceses, ou seja, os Africanos negros, os Malgaxes, os Argelinos muçulmanos, os Caribenhos ou ainda os Melanésios, como também os trabalhadores imigrantes. Os sujeitos franceses viram de fato retirar-se a maioria dos seus direitos políticos e da sua liberdade, conservando no plano civil apenas o estatuto pessoal, de origem religioso ou consuetudinário. O código os sujeitavam aos trabalhos esforçados, à proibição de circular à noite, às requisições, a impostos, etc.

Códigos similares foram adoptados pelas outras potências coloniais. Na África do Sul, a regulamentação deixada pelos Britânicos no início do século XX preparou o terreno ao regime de apartheid que irá implementar-se a partir de 1948. Nas colónias portuguesas, foi criado um Código do trabalho dos indígenas, acrescentado de um Estatuto Político, Social e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique em 1926, o qual foi completado por um Acto Colonial em 1930, por uma Carta Orgânica do Império Colonial Português e Reforma Administrativa Ultramarina em 1933 com o surgimento do Estado Novo de António de Oliveira Salazar, e finalmente por o Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por decreto-lei em Maio de 1954. O objetivo deste último era a « assimilação » dos indígenas na cultura colonial ocidental. Criou-se então três grupos populacionais: os Indígenas, os Assimilados e os Brancos. Negros e mulatos considerados como « assimilados » tinham que responder a certos critérios: saber ler e escrever, vertir-se e professar a mesma religião do que os Portugueses, manter padrões de vida europeus... Se o estatuto foi abolido em 1961 com reformas introduzidas por Adriano Moreira, ministro do Ultramar entre 1961 e 1963, com objetivo permitir aos indígenas um melhor acesso à cidadania portuguesa, discriminações ainda permanecerem até o final das guerras coloniais em 1974. Esta relação malsã, racista e de opressão é descrita por parte no livro Um paraíso enganosa, publicado em 2013 pelo autor sueco Henning Mankell.

Extrato da banda desenhada « Tintim no Congo » (1931), do desenhador belga Hergé.

Extrato da banda desenhada « Tintim no Congo » (1931), do desenhador belga Hergé.

Longe do vasto oceano de ignorância descrito pelos contemporâneos da colonização, convem de fato lembrar a diversidade de saberes e a existência de culturas e de civilizações ricas no continente africano. Esta lembrança é necessária para entender o choque que constituiu, durante quase um século, a empresa colonial por homens que desprezavam o que eles achavam lá. É precisamente esta ignorância (e esta indiferença) dos colonos e dos missionários europeus em relação aos saberes africanos – uma ignorância confortada por uma visão racista – que tornou possível um concepção do mundo dividida entre povos civilizados, os Ocidentais, e povos não-civilizados, em particular os Africanos. O tratamento das crenças locais, a confiscação das riquezas e a superioridade técnica (pelo menos militar) dos Europeus alimentaram um processo de depreciação das identidades, dos indivíduos, que permitiu uma interiorização do racismo por alguns dos próprios colonizados. Ao ponto que até muitas das elites africanas (inclusive as que revindicaram a independência, e que disponhem de uma formação acadêmica ocidental) adoptaram os códigos culturais ocidentais (Será que as « elites africanas » ainda são... africanas? (1/2) Nação, africanidade, modernidade: quando as noções são manipuladas).

Neste processo, a figura do Branco, do Europeu, é erigido como o modelo a seguir, e esta percepção, que induz uma noção de « atraso » aplicando-se à África, associa a noção de progresso ao Ocidento. Esta alienação das mentes colonizadas, o psicanalista e pensador terço-mundista Frantz Fanon a abordou no seu ensaio Peles negras, máscaras brancas, onde ele desenvolve a teoria segundo a qual a colonização criou nos Africanos uma neurose coletiva da qual é preciso livrar-se. Mais próximo de nós, podemos mencionar Thomas Sankara, presidente do Burkina Faso entre 1983 e 1987, o qual descreveu numa entrevista em 1984: « Na África do Sul, vi Negros atacar-se a nós, Negros, que estávamos a passar e que, entretridos pela companhia aérea, tínhamos direito ao mesmo tratamento do que os outros viajantes. Mas são os nossos irmãos africanos, Negros como nós, que cuspiam-nos porque eles não entendiam como nos atravíamos a nos comparar aos Brancos. Não é porque nos suspeitavam de ser comprometidos com os Brancos, não. Porque eles estimavam que élevávamos um orgulho inaceitável. Eles foram demasiado tempo dominados, aqueles Negros ai, eles não podem entender que um Negro se senta na mesma mesa que um Branco. »

Esta interiorização do racismo, corolário de uma forma de admiração em relação aos Brancos, toma aspetos dramáticos quando ela permite, mesmo décadas após a colonização, a corrupção das elites africanas, a sua alienação inteletual, ou a assinatura de acordos comerciais desequilibrados, como os negociados entre a União europeia e os países dites ACP (África-Caraíbas-Pacífico), ao grande benefício das empresas europeias. Ela pode tomar aspetos mais patéticos, por exemplo quando ela tem a ver com o tratamento e a consideração no dia a dia que conhecem os Negros na Europa ou os Brancos na África. O escritor cameronês Ferdinand Oyono faz um retrato eloquente na sua obra O Velho Preto e a Medalha (1956), no qual ele conta a aventura de Meka, cego de orgulho pela atribuição de uma medalha de reconhecimento pela França, um 14 de Julho. O herói só toma consciência após uma ceremónia humiliante que tratava-se apenas de uma encenação hipócrita dos poderes coloniais, que falam de amizade mas não deixam de manter uma estrita segregação.

É com esta realidade que os países africanos devem compor desde a sua independência. Além disso, a colonização mudou profundamente o continente, perturbando ordens sociais seculares, influenciandop as relações humanas, até mesmo reinventando-las para alimentar tensões entre populações locais – o exemplo o mais emblemático mas também o mais dramático send o dos Tutsis e dos Hutus, duas castas sociais presentes na região dos Grandes Lagos, e nas quais a Bélgica apoiou-se alternativamente, alimentando tensões interétnicas que acabaram, como o sabemos todos, no genocídio de 1994 no Ruanda, e à guerra civil no Burundi na mesma altura. Se acrescentamos as mudanças que destruturaram as economias locais, indiscutavelmente, a presença europeia criou desequilíbrios nas relações de poder entre comunidades e entre castas sociais, que a independência não resolveu ainda, e que às vezes até acentuaram-se com a urbanização e a globalização pós-coloniais.

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Podem ainda aprofundir a reflexão, lendo a segunda parte deste artigo: Em África, como ultrapassar o choque da colonização e o mito da convergência pelo desenvolvimento? (2/2) « Quando tudo se desmorona » a cerca de uma leitura linear do progresso humano

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