« Europa fortaleza » ou « Europa filtro »: como questionar a binaridade do debate sobre a imigração?
A temática da imigração é regularmente colocada no primeiro plano dos debates mediáticos europeus. Nas últimas eleições europeias por exemplo, em Maio de 2019, a campanha foi marcada por essa questão. Sempre, o assunto é abordado de forma binária, as mídias colocando como alternativa ou o acolhimento, ou a rejeição dos imigrantes; ou a construção de muros à fronteira, ou virar filtro. E as mulheres e os homens políticos apropriam-se essa visão sem nuances, manipulando essa clivagem estéril e absurda. Além disso, as questões migratórias são sempre abordadas de forma desconectada dos outros assuntos, com excepção notável a identidade, a integração e o secularismo. No entanto, o laço é óbvio, por exemplo com as políticas energéticas, a transição ecológica, a diplomacia, a ajuda pública ao desenvolvimento, ou ainda as políticas do emprego e da habitação que determinam a nossa capacidade de acolhimento.
No final de 2020, uns 55 milhões de pessoas moravam em exílio no seu próprio país, entre os quais 48 milhões de por causa de conflitos e violências, 7 milhões pelo fato de catástrofes ambientais. Um recordo, alertou o Observatório das situações de deslocamento interno (IDMC), no seu balanço anual publicado em 20 de Maio de 2021. Essa instituição também estimou que, apenas em 2020, quase 41 milhões de novos deslocamentos foram registrados em 149 país, ou seja, o número o mais elevado desde dez anos (+20% em relação a 2019); os três quartos das partidas (31 milhões) são provocadas por catástrofes ambientais... Enfim, a perspetiva de uma multiplicação das crises, políticas, econômicas, sociais, ambientais, não permite ser otimista em relação a uma redução das partidas forçadas. Dados os grandes movimentos migratórios observados nos últimos anos, é preciso pensar a questão migratória em laço com os outros assuntos. Tal como não faz sentido pensar as questões econômicas e ecológicas de forma desconectada (demais políticos ainda o fazem), pensar a temática migratória sem abordar as causas da emigração, em particular as relações desequilibradas ligando o Norte e o Sul, é absurdo.
« Não assumimos totalmente os nossos deveres, se apenas reclamamos. É preciso ver a raiz dos problemas e os resolver [...]. Cabe a nós de dizer que a emigração é sempre um exílio forçado. Um sofrimento. [...] É preciso ver a causa dos problemas, e os eradicar. Não devemos aceitar mais os tratados desiguais que derramam sobre os povos mercadorias adquiridas a mil preços, no trabalho sobre-explorado, e jogadas de tal forma que elas matam qualquer atividade econômica que essa gente teria gostado ter em casa. Temos que acabar com o abandono covarde que obriga os povos do Sul a lidar com a mudança climática – já começada – e que os deixa gerir o 60% dos movimentos de populações que o deserto, o calor extremo, a seca criam lá. E como por um efeito dominó, sucumbido ao peso dessas mercadorias por um lado, da raridade das colheitas por outro lado, [essas populações] vão do campo para as cidades, onde já estão inúmeras massas que por sua vez também colocam-se em movimento, abala as fronteiras, destruindo sem o querer qualquer organização. E é hora, acima de tudo, de acabar com as guerras que devastam esses países. [Essas guerras] que nunca deixaram de ser outra coisa do que uma briga para apropriar-se as matérias primas. »
Essas palavras são do candidato de esquerda francês Jean-Luc Mélenchon, formuladas em 9 de Abril de 2017 em Marselha, durante a campanha presidencial de 2017. Naquele discurso, como em outros discursos ou em debates do primeiro torno da eleição presidencial, aquele que recebeu 19,58% dos votos evocava a emigração do Sul como uma obrigação, um sofrimento, para os infelizes que deixaram o país como para os seus próximos. Foi então o único que sublinhou a questão dos fatores à origem dos fenômenos atuais de migração – ele até foi criticado por isso, como se fosse uma postura somente oportunista para evitar tratar da questão do acolhimento. As outras forças políticas abordaram o assunto como sempre, ou seja, os candidatos de direita e de extrema-direita proporem uma forta redução da imigração, com uma forte dimensão securitária ligada ao controle das fronteiras e às expulsões; e os de esquerda e extrema-esquerda mantendo a eterna vontade de abrir as fronteiras humanas sem nenhuma forma de controle. Quanto a Emmanuel Macron, então candidato do centro liberal e futuro presidente, a sua retórica equivocada escondia mal uma falta de visão nesse assunto, o que já deixava e pensar uma forma de continuidade com as políticas migratórias de Nicolas Sarkozy (2007-2012) e de François Hollande (2012-2017): ou seja, uma política manca, confusa e que o cidadão lambda não entende muito bem.
Cartais eleitorais em Maio 2019 nos arredores de Paris, em França, durante a última eleição europeia. Os desafios migratórios constituirem uma temática central da campanha.
A dificuldade crescente de gerenciar os fluxos de migração
A colapsologia nos obriga a dar um passo atrás para pensar melhor a questão da imigração. De fato, os riscos de crises multiformas ou de colapso de certas sociedades ou de sistemas políticas, ameaçados pela sobre-exploração dos recursos, pelas mudanças climáticas, situação às vezes agravadas por um crescimento demográfico descontrolado, não podem ser assumidos por cada país de forma isoldada. Num mundo cada vez mais aberto, com sociedades cada vez mais interconetadas, as vítimas de cenários de desastre não vão limitar-se, como o fizeram sociedades isoladas que conheceram um colapso no passado (como a ilha de Páscoa, ou os Maias), a « desaparecer »: as populações movem-se cada vez mais – elas já o fazem. Para sobreviver. Certamente a inter-conexão comercial permite importar muitos bens alimentares de tal maneira que faz-se reservas para compensar eventuais faltas, no entanto a multiplicação e a agravação das crises não permitem ser otimisto em relação ao grau de resiliência das sociedades as mais vulneráveis. Ainda num relatório publicado em 6 de Agosto de 2019, o instituto World Resources chamava atenção sobre 17 países, entre os quais: a Índia e certos Estados principalmente localizados no Oriente Médio e na África do Norte (ou seja, quase um quarto da população mundial), que seriam em situação de grave escassez de água, próximo do « dia zero » no qual nenhuma gota de água sairá da torneira; e 27 outros países, entre os quais nações europeias (Bélgica, Espanha, Itália...), apresentam uma « alta escassez de água ». Um exemplo entre outros de potencial desastre humanitário.
Outro relatório muito preocupante, um estudo publicado em 20 de Novembro de 2019 pela revista Science Advances, e que fornece a primeira avaliação realizada à escala continental sobre o estado da flora. É ai constatado que quase um terça da flora tropital africana é ameaçada de extinção, confirmando assim que a África tropical enfrenta pressões crescentes ligadas à exploração das florestas, às necessidades energéticas, ao desenvolvimento da agricultura e às atividades mineiras, que acrescentam-se ao desregulamento climático e ao crescimento demográfico. A África de Loeste, o centro da Tanzânia, a Etiópia e o sul da República democrática do Congo são identificadas como as regiões onde exercem-se as mais fortes pressões sobre a biodiversidade, com riscos de extinção podendo ultrapassar 76% nas montanhas etiópes e 67% no delta interior do Níger – por lembrança, o estudo não tratava de certos países como Angola e a República centraficana, para os quais os botânicos não dispõem de dados. Também, as áreas de forte concentração humana (em particular a área costeira desde o Golfo de Guiné até o Senegal), onde o desaparecimento das florestas foi considerável nas últimas décadas, aparecem assim como as regiões mais vulnerávais. Enfim, como o vimos o mês passado (Relações Norte-Sul: quando a colapsologia questiona uma leitura desatualizada), as áreas em tensão vêem (e vão ver) a maioria das partidas, em direção das cidades (onde concentram-se os serviços básicos e os bens alimentares importados), e mais geralmente em direção das áreas de concentração de riquezas, inclusive nos países do Sul. Uma situação que, claramente, não é ideal.
Em 2019, os Estados-Unidos, ainda na presidência de Donald Trump (2017-2021), submeterem o seu vizinho mexicano a uma pressão importante para o obrigar a rever a sua política migratória, considerada como « generosa » demais e relaxada desde a chegada no poder de Andrés Manuel López Obrador, em 2018. Em Junho de 2019, o México comprometeu-se então – pelo envio de 6 000 soldados à fronteira com o Guatemala e pelo fortalecimento do seu programa de acolhimento dos requerentes de asilo durante o tratamento do seu caso por Washington – em conter o fluxo de migrantes ilegais que querem ir nos Estados-Unidos, condição imposta naquela altura por Donald Trump para suspender a aplicação de 5% de impostos alfandegários nas exportações mexicanas. Igualmente, em Julho de 2019, os Estados-Unidos e o Guatemala assinaram um acordo, bastante criticado, sobre o direito de asilo, dando a esse pequeno país pobre de América central o estatuto de « país terço seguro », o qual traduz-se pelo acolhimento no solo guatemalteco dos requerentes de asilo que querem pedir refúgio nos Estados-Unidos. Por lembrança, o estatuto de « país terço seguro », criado com a Convenção sobre os refugiados de 1951 em Genebra (Suíça), mas cuja legalidade e a viabilidade permanecem incertas, estípula que os requerentes de asilo atravessando um país intermediário devem realizar fazer os pedidos em questão nesse mesmo país e não mais no país de destino. A administração de Jimmy Morales, presidente do Guatemala naquela altura, tinha então detalhado que o acordo com Washington aplicaria-se aos Hondurenhos e aos Salvadorenhos, os quais compõem, com os Gatemaltecos, a maiora parte dos migrantes indo para os Estados-Unidos; mas a vetustez e a insuficiência dos centros do Instituto guatemalteco da migração – os quais, em 2018, só tinham recebido 232 refugiados, um número que foi desde então consideravelmente aumentado – logo deixavam duvidoso sobre a capacidade de acolhimento do país, que conserva níveis de pobreza (60% da população sob o limiar de pobreza) e de corrupção espetaculares, e uma violência endêmica. Ainda ai, o então presidente norte-americano tinha ameaçado o Guatemala de penalidades econômicas drásticas, ou seja, ameaçando limitar as entradas guatemaltecas nos Estados-Unidos, e tributando os produtos guatemaltecos e as remessas dos emigrantes nos Estados-Unidos às suas famílias que ficaram no Guatemala; portanto um milhão de empregos estavam ameaçados, tinha então argumentado o governo de Guatemala Ciudad.
Apesar das habituais críticas formuladas contra os Estados-Unidos durante a presidência de Donald Trump (e cuja escolha de basear-se em « terços países » para gerir os fluxo de imigração ainda permanece hoje em dia), no continente europeu, não agimos muito diferentemente nesse assunto. De fato, os Europeus satisfazem-se há muito tempo da delegação do controle dos fluxos migratórios a países autoritários localizados às margens geográficas do espaço Schengen, deixando de lado a questéao das violações dos direitos humanos observados lá. Porque não temos diretamente as mãos sujas, temos a consciência tranquila. Foi o caso com acordos fortes entre a Espanha e a Mauritânia na década de 2000, mas também com compromissos da União Europeia com a Líbia de Mouammar Khadafi, em Novembro de 2010. Em Fevereiro de 2017, o governo italiano concluiu com os guarda-fronteiras líbios um acordo permitindo à Itália um acordo enviar os refugiados na Líbia (onde no entanto as ONG denunciam torturas e exacções). Nesse sistema, também o tratamos num artigo de Março de 2020, o Níger assume um papel importante, similar ao da Mauritânia na parte Loeste do Sahel. Tal como a Turquia, a qual, desde Março de 2016, assinou com a União Europeia um acordo prevendo o acolhimento dos Sírios e dos Iraquianos em troca de três « presentes »: 6 bilhões de euros de ajuda, uma facilitação sobre os vistos para os Turcos que querem ir no espaço Schengen, e a continuação das negociações de adesão de Ankara à UE. Mais recentemente, desde Maio de 2021, o Dinamarca, dirigido pelo centro-esquerda (sociais-democratas), é que procura desencorajar a chegada de refugiados, os orientando para países não europeus, às vezes pouco respeituosos dos direitos humanos, entre os quais principalmente o Ruanda. Ou seja, os requerentes são mandados de volta, por avião, no Ruanda, onde eles podem esperar lá por uma proteção qualquer... E se o asílio é finalmente rejeitado, o país terço é que expulsará o migrante.
Na altura que se observou mais chegadas de migrantes, a Alemanha e a Áustria, logo em Setembro de 2015, a Noruega, a Suécia e o Dinamarca, todos membros do espaço Schengen, restabelecerem provisoriamente os controles às suas fronteiras; a própria Hungria, dirigida pelo Primeiro ministro Viktor Orbán, até instalou então arames farpados. De fato, o resfortalecimento dos controles pelos Turcos e o retorno rápido de « todos os migrantes que não precisam uma proteção internacional », previstos no acordo UE-Turquia de 2016 foram eficientes, em termos de redução das chegadas nos Balcãs. Desde então, o Mediterrâneo permaneceu a primeira porta de entrada na Europa, mas não nas mesmas proporções. Em 2015, mais de 860 000 pessoas chegaram na Grécia por essa rota migratória. Entre o 1eiro de Janeiro e o 1eiro de Maio de 2019 por exemplo, foram somente 11 000 pessoas. As chegadas à Itália diminuiram por 85% em três anos. Mas isso tudo, a que preço? Quem pode pensar que esse tipo de compromissos, baseado na delegação do « trabalho sujo » em contradição com os valores que pretendemos defender, pode constituir, hoje e no futuro, um modelo sustentável e desejável? Qual mundo os Europeus pretendem construir, quais relações temos com os nossos vizinhos? E à essa política desgraçada sobre a questão do controle das fronteiras, acrescenta-se a ausência de questionamento das políticas de ajuda pública ao desenvolvimento destinado aos países do Sul, particularmente africanos (Frente ao fiasco da ajuda pública ao desenvolvimento, para quando a sua desprogramação?). A ajuda ao desenvolvimento, tingida com paternalismo neocolonial, nos dá boa consciência quando na verdade ela constitui algo que trocamos contra acordos comerciais desequilibrados. Definitivamente, tudo tem que ser revisto na relação entre os países de chegada e os de ida.
Essa situação é ainda menos desejável, pois existe o risco de ver também o colapso dos países « transitórios » a quem a Europa delega a gestão migratória. Nesse ponto, a Líbia é, desde 2011, uma boa ilustração, mas a crise que prolonga-se na Mali desde 2012-2013 mostra que o colapso de um Estado é um fenômeno que pode também repetir-se no Sahel; de fato, as tensões inter-étnicas (entre Tuaregues e etnias do sul do Mali, ou entre Peúles de um lado e Bambaras e Dogons de um outro), a subida do radicalismo religioso, e os desafios políticos e militares que acrescentam-se à explosão demográfica e às tensões sobre os recursos, fazem da região um barril de pólvora, o qual por enquanto parece não dever explodir só « graças » à permanência de regimes repressivos. Todos os perigos observados no Níger – presença de Boko Haram no sudeste, de milícias malianas no nordeste, e de grupos armadas tubu no norte, taxa de natalidade superiora a 7 crianças por mulher, mudanças climáticas, pobreza crônica – é sintomático. E o Sahel não é a única área arriscada. Se uma repetição do cenário líbio parece improvável num Estado como Marrocos, na Turquia no entanto, a polarização da sociedade entre pro e anti-AKP, os desvios autoritários de um regime cada vez mais repressivo e que favorece a subida de um islã rigorista, a presença no solo nacional de mais de três milhões de regugiados sírios, e os problemas de segurança ligados por exemplo à questão curda, são tantos elementos que constituem um coquetel explosivo. Ninguém deseja o colapso do Estado turco, mas não é um cenário que pode ser excluido, e que pode tomar formas muito diferentes (golpe de Estado como aquele « falhado » de 2016, crise como a na Venezuela, etc.). E o que faz a Europa, o dia em que o regime de Ankara colapsa?
Aliás, em Março de 2020, os Europeus já tiveram uma « amostra » da sua vulnerabilidade, quando o presidente turco Recep Tayyip Erdogan ameaçou de abrir as fronteiras e até deixou naquela altura passar migrantes em direção à Grécia – chantagem com alvo obter um apoio dos países europeus para conter a ofensiva que estava então conduzindo o regime de Bachar el-Assad contra os grupos rebeldes apadrinhados por Ankara e presentes na província síria de Idlib. Em Maio de 2021, a crise diplomática surgiu, desta vez, entre Marrocos e Espanha, quando o primeiro deixou passar um número considerável de migrantes em Ceuta e Melilla. Por lembrança, Marrocos recebeu, entre 2018 e 2020, uns 343 milhões de euros para a gestão das fronteiras, mas reclamou então 3,5 bilhões de euros para o período 2021-2027, e outras questões estavam também em jogo (acordos de livre-câmbio agrícola, Sahara ocidental...).
Os Europeus têm a ilusão de acreditar que a sua « prosperidade » base-se na sobre-exploração dos países do Sul, mas a longo prazo, ela é diretamente ameaçada pelos ecos de eventuais crises que irão multiplicar-se no Terço Mundo, e que permanecem « contidas » por enquanto. Um desses ecos será a aceleração e o aumento dos fluxos migratórios. Essas chegadas em massa e descontroladas minam a própria ideia de imigração, pois o princípio pode ser apreciado em si, mas é agora conotado negativamente, num contexto de empobrecimento e de exploração dos povos e de degradação geral dos recursos e dos meios ambientes, que força as pessoas a deixar o seu país.
Nesse texto que acha-se no livro Colapso – Como as sociedades decidem do seu desaparecimento ou da sua sobrevivência, publicado em 2005, o geógrafo e biólogo norte-americano Jared Diamond explicava: « Assim, do próprio fato que seguimos cada vez mais [uma] via não sustentável, os problemas mundiais de ambiente serão resolvidos, de uma forma ou de uma outra, enquanto as nossas crianças viverão. A única questão é saber se a solução será pouco desagradável, porque a teremos escolhida, ou desagradável, porque ela resolverá-se sem que a tenhamos escolhido, pela guerra, o genocídio, a fome, as epidemias e o colapso das sociedades. Tantos fenômenos endémicos na história da humanidade, mas cuja frequência aumenta com a desgradação do ambiente, a pressão demográfica, e com a pobreza e a instabilidade política resultantes. » Ele detalhe, précise, lucidamente: « Uma saída que parece menos radical que o colapso, seria a repetição de situações como as do Ruanda e de Haiti em muitos outros países em vias de desenvolvimento. Como imaginar que os habitantes do Primeiro Mundo conservariam o seu conforto, sob a ameaça do terrorismo, das guerras e das doenças, e enquanto crescem os movimentos migratórios a partir do Terço Mundo em vias de colapso? » De fato, os políticos não reflectem sobre isso, não há reflexão política sobre o que supõem deslocamentos de populações que foram provocados, diretamente ou não, por decisões ocidentais às vezes absurdas. De uma forma ou de uma outra, pela imigração de massa, os Europeus recebem a fatura das guerras no Afganistão, no Iraque, na Líbia, no Iêmen, e da destabilização de regiões inteiras, de Estados ou de economias como na República democrática do Congo, na Somália, no Sahel... Essas situações de sofrimento irão destabilizar, mecanicamente, as sociedades europeias, e isso tudo não foi anticipado. Isso, num contexto de balkanização da Europa, de desmembramento parcial ou total das nações, de subida da violência, de radicalização em toda parte, de surgimento da xenofobia, e de queda da empatia.
A pressão migratória já é importante. Ela não é insuportável à escala comunitária – a União contava após a entrada da Croácia uns 512 milhões de cidadãos, portanto a chegada de quase um milhão de pessoas em 2015 representou menos de 0,2% da população total. No entanto, os imigrantes não « repartirem-se » em proporção do peso demográfico de cada país, pois alguns Estados – principalmente os países du grupo de Visegrád: Hungria, Polônia, Eslováquia, Répública Checa – recusaram assumir uma parte do acolhimento. Umas estatísticas merecem ser lembradas, para melhor entender a dimensão da imigração e ao mesmo tempo demistificar um pouco a fantasia a cerca de uma suposta « Grande Substituição », mas também para entender certos disfuncionamentos no sistema estabelecido pelo regulamento de Dublim. Entre 2014 e 2018, os Vinte e Oito registraram mais de 4,5 milhões de pedidos de asilo, entre os quais mais de um quarto para a única Alemanha – um número difícil a estabelecer porque são os pedidos que são contados, não as pessoas, por isso existe um número significativo de dobrões. Além disso, os Estados membros rejeitaram também, na mesma altura, 1,5 milhão de pedidos de asilo, e uma parte das pessoas que receberem uma rejeição permaneciam depois uma limbo devido às deficiências de Dublim, tentando sua chance de obter o asilo em outros países para não ser expulsos. No mesmo período ainda, 2,1 milhões de decisões positivas de proteção foram tomadas. Em Maio de 2019, mais de 878 000 procedimentos estavam ainda abertos, quase 380 000 só na Alemanha.
Tomando um nível nacional, vamos observar o caso da França, que tem a especificidade de ser ao mesmo tempo um dos país com mais migrantes na Europa, e um deles onde se vê mais debates a cerca da questão migratória. Para isso, podemos constatar as estatísticas oficiais do ministério do Interior para o ano 2018; foram dados então 250 550 autorizações de residência, repartidos assim: 89 185 em nome do reagrupamento familiar, 82 580 estudantes, 35 645 por causa humanitária, 32 815 autorizações de residência econômicas, e 15 325 diversos outros. Finalmente, as estimações sobre a imigração clandestina variam muito. Uma das mais recentes contaria umas 90 000 chegadas irregulares a mais cada ano, para um « stock » de mais ou menos 800 000 pessoas, só no território nacional francês (1,2% da população).
Na manifestação do 1eiro de Maio de 2019 em Paris, em França. Aqui, militantes em favor da abertura das fronteiras e do acolhimento dos migrantes e dos refugiados.
Tomar em conta a « capacidade de acolhimento » e os princípios de solidariedade e de humanidade
Repensar integralmente a nossa política migratória, é ao mesmo tempo a tornar mais humana, proteger os canais de imigração para evitar os dramas que conhecemos há anos no Mediterrâneo, acelerar os procedimentos adminitrativos, mais também tomar em conta, sem tabu, as relutâncias crescentes de cada vez mais Europeus quanto à chegade de novos migrantes. Além disso, é irresponsável trazer pessoas no seu território 1) se não garantirmos que elas instalam-se em condições dignas e materialmente aceitáveis, e 2) se as populações que as recebem são hostis à sua chegada. Todas as formas de migração não são identicas, e confunde-se muitas vezes as diferentes gerações de imigrantes, enquanto os Portugueses chegados nos anos 1960-1970, os Magrebinos instalados desde os anos 1970-1980, os Subsaarianos estabalecidos desde os anos 1980-1990, são em geral naturalizados franceses, as suas crianças foram criados em França e foram à escola da República, e a sua situação não tem simplesmente nada a ver com a questão do acolhimento das populações sírias, eritreias, caucasianas ou afegãs chegadas nos últimos quinze anos.
Entre os estudantes, os requerentes de asilo, os benefiriários do reagrupamento familiar, os clandestinos, ou ainda os migrantes econômicos legais, sem esquecer os « casamentos mistos » que levam à instalação do cônjuge estrangeiro (trata-se de 13% dos casamentos civis celebrados cada ano em França, por exemplo), as políticas não podem ser as mesmas. Pode-se modular de acordo com as necessidades e as capacidades de absorção do mercado do emprego, do parque de habitação, dos sistemas de educação e de saúde de cada país, mas também de acordo com o grau de humanidade e de solidariedade que temos que dar às nossas políticas de acolhimento, ainda mais quando os que chegam são, como foi o caso de muitos daqueles que vieram na Europa em 2015-2016, originários de países em guerra, de campos de refugiados ou de ditaduras sangrentas. Pode-se também repensar os diferentes canais migratórios em função dos imperativos do momento. Acabar também de opor sistematicamente os refugiados e os migrantes econômicos (como se um fosse louvável, e o outro inaceitável), embora esses dois tipos de fluxo, claro, não têm a mesma dimensão jurídica, não traduzem-se pelo mesmo estatuto administrativo. Aparece, por exemplo, que as empresas em falta de mão de obra, no hotelaria, a restauração, a grande distribuição ou ainda o setor da construção e obras públicas, recrutam cada vez mais pessoas que têm um estatuto de refugiado (Sírios, Eritreus, etc.), pois os requerentes de asilo constituem uma oferta interessante de competências – sem esquecer o desafio da integração dessas populações. Sem negligenciar os riscos de pressão descendente sobre os salários que essa situação pode induzir, quando os recrutadores tentam aproveitar a situação de vulnerabilidade de alguns migrantes, é preciso globalmente valorizar esses casos de integração econômica bem sucedida.
Finalmente, a política migratória europeia deve ser repensada no âmbito comunitário, a pesar da pusilanimidade das classes políticas europeias (Como acabar com os dramas da imigração no Mediterrâneo?), que mostram-se incapazes de coordenar-se para repartir-se de forma equilibrade a carga do acolhimento dos migrantes. Às vezes até a questão migratória é simplesmente instrumentalizada por motivos nacionalistas ou eleitoralistas, por exemplo nos países do grupoe de Visegrád, ou também na Itália quando Matteo Salvini, líder da Liga, um partido de extrema-direita, foi ministro do Interior, em 2018-2019.
A incapacidade de uma parte das esquerdas europeias de lidar com serenidade a questão da imigração, logo que não se defende a abertura total e sem restrições das fronteiras, pode deixar muito perplexo, em duas frentes. Em termos de debate democrático, primeiro – porque deixa tabu a formulação de qualquer critério de entrada no território, ou de regularização ou de naturalização dos indivíduos. Portanto, ela sufoca o debate, impedindo um questionamento construtivo e realista da atual política migratória, contudo muito insatisfatória. Segundo, essa postura só deixa, à frente, a palavra a umas direitas e extremas-direitas cujos representantes não têm receios por serem qualificados de xenófobos.
Além disso, a questão serve vezes demais a boa consciência de uma esquerda desconectada, que acha ai uma caução humanista « barata » (compensando talvez o abandono da questão social e da defesa dos obreiros pelas esquerdas europeias nas trinta últimas décadas) enquanto o seu estilo de vida (e as suas escolhas eleitorais) contradizem os valores defendidos. O economista francês Frédéric Lordon, diretor de pesquisa no Centro nacional da pesquisa científica (CNRS) e membro do coletivo Les Économistes Atterrés, descreve esse fenômeno, numa entrevista chamado « Dizer juntos a condição das classes populares e dos migrantes », publicado em Novembro de 2018 no site Internet da revista francesa Ballast. Ele explica que aqueles que ele qualifica de « cadeirantes » – chaisières em francês, uma palavra que designa aqui certos representantes de uma esquerda intelectual moralista que mulciplica as chamadas e as tribunas mediáticas sobre os migrantes – « não têm outro horizonte político senão a postura moral, e dispõem-se a prosperar nas "causas", pequenos acumuladores oportunistas de capital simbólico barato, ocupados da sua imagem aos seus próprios olhos ou aos dos seus micro-ambientes, na interseção da burguesia cultural e da burguesia socialista ao abandono, pronta para apropriar-se qualquer coisa que pode fazer esquecer a lista interminável de suas demissões.
Postura ainda mais hipócritas, que na seu estilo de vida, muitos são aqueles que não aplicam os princípios que eles defendem com tanta veemência. O geógrafo francês Christophe Guilluy também descreveu isso no seu ensaio Fraturas francesas (2010): em meio urbano, as classes ricas, os quadros sobretudo, adoptam estratégias para evitar populações pobres, muitas vezes de origem imigrante. Numa mesma cidade ou num mesmo bairro, vai-se por exemplo distinguir o parque de habitação privado, às vezes resultado da gentrificação, que atrai as novas classes altas « inteletuais » urbanas, das habitações sociais onde a presença de imigrantes (ou das suas crianças) é importante. As crianças não irão nas mesmas escolas, ou não nas mesmas aulas. Os espaços de lazer não são os mesmos, às vezes até os modos de vida. Em resumo: a promoção da mobilidade social e da diversidade, muito presente nos discursos, é de fato comprometida.
A histeria nesse assunto vale bem a impotência da classe política, e talvez é essa impotência, e a « distância » da figura do migrante, que agrada às « cadeirantes ». Assim Lordon o explica, ainda na entrevista de Novembro de 2018 : « O migrante, é a figura da alteridade a mais distance, portanto, é um caso de pura paixão. Quero dizer: o afastamento é tal, que excepto a compaixão devida à vítima absoluta, nenhum outro afeto circunda a figura do migrante. Afinal, há outros dramas silenciosos, mas nenhuma tem essas propriedades. [...] Por que quase nunca vimos celebridades ou personalidades das artes tomar posições públicas para outras causas do que a paz/a guerra, a fome, a Terra, as doenças, em resumo para coisas preferencialmente distantes, sem consequência na frente política interna? » Ele constata « a impossibilidade, a cerca da questão dos migrantes, de qualquer coisa que não seja do tipo da unanimidade moral », acrescendo: « A compaixão pura chama a unanimidade pura. Mas as "questões" dividem. [...] O afeto puro da compaixão [...] opera a redução moral da política, a despolitização entendida como a recusa de assumir a essência conflituosa da política. »
« Para essa burguesia farisaica que conhece só as cuasas humanitárias, escreve ele, o mínimo que podemos dizer, é que a figura do obreiro não é apaixonadamente pura: já encontramos uns, não gostamos muito das suas maneiras, são suspeitos de votar na [extrema-direita], etc., muitos afetos contrários que atenuam o da compaixão. » Esse constato faz particularmente eco ao tratamento do movimento dos Coletos amarelos pelas grandes mídias em França, e pelos simpatizantes do liberalismo econômico. As classes médias baixas e populares são continualmente culpadas por não juntarem-se ao coro humanista sobre a questéao do acolhimento. O liminar moral é a ferramenta dos prescriptores de opinião para lutar contra o racisma – uma estratégia que já revelou o seu fracasso, dado o sucesso dos partidos nacionalistas e xenófobos em quase toda a Europa. Seria tempo questionar-se sobre as orientações políticas e econômicas que alimentam o declínio da indústria europeia e aumentam desde mais de trinta anos os comunitarismos, por um lado, e os rancores identitários e as fantasias xenofóbicas, por outro, favorecendo ao mesmo tempo as condições que, nos países de partidas, levam as pessoas ao exílio.
No entanto, a necessidade de salvar vidas integra-se também na noção de realismo: estabelecer critérios de entrada no território europeu não impede assumir uma política de acolhimento humana para as e os que, às vezes correndo o risco das suas vidas, percorreram milhares de quilômetros para vir procurar perspectivas de futuro, ou simplesmente pela sobrevivência. Tentar prevenir os fluxos futuros, ou gerir os fluxos atuais, não é contraditório com uma política de acolhimento humana, pelo contrário. Aliás, seria necessário organizar os fluxos de imigração de tal maneira que os infelizes que atravessam o Mediterrâneo tenham vias alternativas, seguras, legais, para poder vir. Vir, ir-se, voltar. A mobilidade, se ela não pode ser total, no entanto não deve ser vista como uma ameaça. As pessoas vão-se muitas vezes mais facilmente se têm a segurança de poder voltar de novo, se for preciso e se o desejarem. Além disso, é normal, e é a honra dos países europeus que o fazem, que por dispositivos locais ou nacionais, os estrangeiros, legais e às vezes até os ilegais (é o caso em França por exemplo, com a Ajuda Medical de Estado, Aide Médicale d’État em francês, muito criticado pela extrema-direita), possam curar-se – por humanidade e por princípio, antes de tudo, mas também porque as sociedades europeias não tem, de forma objetiva, nenhum interesse em ter no seu território pessoas doentes, sejam elas estrangeiras ou não, aliás.
E isso aplica-se em outros aspetos. Por exemplo, o Tribunal de cassação francês relaxou parcialmente, em Dezembro de 2018, o cidadão Cédric Herrou, que tinha ajudado em 2016 umas dezenas de Sudaneses e de Eritreus (entre os quais uns eram menores) que tentavam passar a fronteira entre a França e a Itália. Essa decisão do Tribunal é justa – ela baseava-se num princípio do direito francês estabelecido pelo Conselho constitucional em 6 de Julho de 2018, o « princípio de fraternidade » (a ajuda, sem interesse nem contrapartida ou por razões humanitárias, a um migrante), que desde então permitiu outras liberações do mesmo tipo. A decisão foi confirmada uma primeira vez pelo Tribunal de Recurso de Lyon, em 13 de Maio de 2020, e de forma definitiva pelo Tribunal de Cassação, em 31 de Março de 2021. Uma coisa é um Estado estabelecer quem pode ou não entrar no seu território, mas o princípio de realidade (e de humanidade, mais uma vez) obriga-nos, como indivíduos, a ajudar as pessoas em situação de vulnerabilidade ou de sobrevivência; e a nação pode honrar-se de contar esses indivíduos, claro. Da mesma forma, as ações de salvação dos migrantes no Mediterrâneo são justas e honram as pessoas que as conduzem, como por exemplo o resgata, no âmbito de duas operações, de quase 147 migrantes, em 26 e 27 de Fevereiro de 2021, ao largo da costa da Líbia, realizado pelo barco Sea-Watch 3 (o qual, desde a sua entrada em serviço em Novembro de 2017, já salvou então mais de 3 000 migrantes), da ONG alemã Sea-Watch. No início do mesmo mês, é uma outra organização, SOS Mediterrâneo, baseada em Marseille (França), que tinha salvado mais de 400 pessoas com o seu barco-ambulância, o Ocean Viking. Por lembrança, apenas em 2020, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM), são pelo menos 1 200 migrantes que afogaram-se no mar, tentando atravessar para chegar na Europa. E apenas durante os seis primeiros meses de 2021, são quase 2 100 pessoas que morreram desta forma, tentando atingir a Espanha – um número cinco vezes superior ao dos seis primeiros meses de 2020.
Outro exemplo, desta vez na Alemanha, muito recentemente, em Junho de 2021, a religiosa alemã Julia Seelmann, 38 anos, foi condenada pelo Tribunal de Würzburg a pagar uma multa de 500 euros por ter acolhido duas Nigerianas que tinham fugido as redes de prostituição na Itália, e que, segundo o Tribunal, deviam ser expulsadas. A cidadã alemã tinha regularamente recebido migrantes clandestinos no monastério de Oberzell, na Baviera, onde ela morra. Estupida e injusta, esta decisão do Tribunal envia um péssimo sinal a qualquer pessoa que esteria com vontade de ajudar pessoas em perigo ou em situação de precaridade, logo que são estrangeiras ilegais. A decisão chocou, num país onde o princípio do asilo religioso tem um certo peso na cultura popular.
Em resumo, é preciso distinguir os imperativos das políticas governementais (falando disso, as políticas de imigração europeias precisariam muito ser revisitadas) da escala individual, na qual exprimem-se formas diversas de solidariedades (que são bem-vindas). Assim, determinar o número de pessoas autorizadas a entrar no território, é uma coisa, deixar indivíduos morrer no mar em nome do realismo e da capacidade (restrita) de acolhimento, é outra coisa. A situação de alguns barcos (e das dezenas ou centenas dos seus passageiros clandestinos) obrigados a velejar de uns portos para outros, até os Estados europeus decidirem os « repartir », é simplesmente uma vergonha para o continento europeu, que teria amplamente as capacidades humanas, materiais, financeiras de os acolher e de tratar administrativamente do seu caso. Determinar quem entra e permanece no seu território não impede os próprios Estados de oferecer via legais de pedido e de entrada à imigração, sem desenvolver uma política migratória baseada na dissuasão e na morte dos viajantes...
Um debate esclerótico e instrumentalizado, que merece ganhar um pouco em qualidade
Já o dissemos, tratar a questão da imigração a separando da análise e do tratamento das causas (e das condições de mobilidade), ou seja, falar sobre imigração sem mencionar a relação dos países europeus com os territórios de partida, é absurdo, tal como é absurdo querer dissociar ecologia e economia. E o debate binário que opõe os em favores do No border, de uma abertura das fronteiras, correspondando muitas vezes às « cadeirantes » (chaisières) descritas pelo economista francês Frédéric Lordon, dos que querem fechar totalmente as fronteiras, como se isso fosse uma opção possível (materialmente, filosoficamente), essa clivagem, portanto, é estéril. As mídias reduzem a classe política a essa lógica absurda, e demasiados políticos aceitam essa caricatura de debate com satisfação, por interesse ou por perguiça intelectual. Jornalistas e programas de informações pretendem assim que, sobre as fronteiras, é preciso escolher, ou somos em favor, ou somos contra, sem meio termo. Por exemplo com títulos de debates desse tipo: « Europe fortaleza ou Europa filtro? », « Fronteira: em favor ou contra? » ou ainda « Europa: aberta ou fechada? » (os debates na campanha eleitoral europeia de 2019 foram, nesse sentido, muito ilustrativos). Se você é para o acolhimento, você é utopista, e se você é contra, você é xenófobo... E o debate acaba ai, resumendo em uma dicotomia entre os que consideram a imigração como algo positiva, e outros que a consideram de forma negativa, como se a imigração não fosse algo complexo e diverso, e sem tomar em conta as condições de acolhimento, ou as causas de partidas dos migrantes. O nível zero da reflexão.
Repensar os fluxos migratórios seria também a ocasião de explicar a política migratória europeia. Globalmente, et coletivamente. Entender as relutâncias de uns e outros frente aos fenômenos de imigração que parecem tão mal controlados, mas também assumir uma forma de pedagogia, uma vez que foram aceitados os estrangeiros no solo europeu. Isso significa, por exemplo, lembrar que a contribuição da migração às nações europeias não é só uma questão contábil. Há coisas, em termos social, cultural, identitário, que não contabilizam-se – o que induz, segundo a nossa opinião, a dimensão vã dos diferentes estudos realizados por aqui ou por ali esses últimos anos para tentar fazer um « balanço » econômico da imigração (independentemente dos resultados desses mesmos estudos, sejam eles globalmente « positivos » ou « negativos »).
Alguns elementos básicos devem ser integrados para pensar todas essas questões: a promessa da « imigração zero » é uma mentira, nem possível nem desejável; o desaparecimento total das fronteiras e de qualquer controle, no mínimo às margens da Europa, é também uma fantasia, e não é do gosto de uma grande maioria da população, além de ser uma ameaça para o próprio funcionamento de muitos dos serviços públicos locais e nacionais (escolas, hospitais, etc.); o número de chegadas atual não é, de maneira nenhuma, uma submerção, no entanto a multiplicação das crises nos países de partidas poderia tornar o acolhimento cada vez mais difícil, o que deve obrigar os Europeus a revisitar a sua leitura das relações Norte-Sul para anticipar o colapso das sociedades as mais vulneráveis; e, na Europa, o questionamento do estilo de vida, a eventual contração das economias – em eco, nessa mesma Europa, à revisão do consumo energético, da capacidade de abastecimento e de recolocação da produção de bens industriais e agro-alimentares – e uma valorização das noções de sobriedade e de frugalidade, devem fazer-se de forma planejada, por solidariedade com os países do Sul mas também pela própria sobrevivência dos Europeus, pela resiliência das sociedades europeias. Obviamente, os Europeus não apropriaram-se esses postulados todos. Não entender os sintomas do colapso é provavelmente característico das civilizações em crescimento e prósperas, como no Ocidente atualmente (Será que a União Europeia é o quadro adequado para repensar o nosso modelo de sociedade e garantir a nossa prosperidade?). « Um político pensa na próxima eleição, enquanto o homem de Estado pensa na próxima geração », disse em 1870 o teólogo e autor norte-americano James Freeman. Parece que falta-se atualmente, muito mesmo, de homens (e mulheres) de Estado.
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Logo após a sua tomada de posse, no início de 2021, o novo presidente norte-americano Joe Biden anunciou a adopção de uma ampla reforma da imigração, esperada há quase quinze anos, desde a presidência Obama. Previa uma regularização por etapas de uns 11 milhões de imigrantes ilegais morando nos Estados-Unidos. É a maior reforma relativa a imigração, desde a regularização de 3 milhões de ilegais por Ronald Reagan em 1986. Além disso, o projeto restabeleceu o direito aos que chegaram nos Estados-Unidos antes de 16 anos de idade, de permanecer nos Estados-Uniros, em conformidade com um decreto tomado por Barack Obama, mas revogado por Donald Trump. Antes do final do mandato, o Congresso deve votar uma legislação que lhes permitirá obter a cidadania norte-americana. Outras medidas relativas à moradia de Haitianos e Centro-americanos, foram também incluidos no mesmo projeto. Uns dias mais tarde, em 12 de Fevereiro, a administração norte-americana anunciou que a política de reenvio automático dos requerentes de asilo para o México, implementado em 2019 por Donald Trump, ia a ser interrompida – desde 2019, pelo menos 70 000 pessoas (sobretudo centro-americanas) tinham sido obrigadas a esperar pela resposta para um asilo norte-americano no território mexicano, criando do outro lado da fronteira uma crise humanitária. Muito mais recentemente, em 11 de Maio de 2023, o fim de um dispositivo adoptado pela administração Trump, que permitia expulsar migrantes irregulares sem examinar o seu pedido de asilo, foi um outro sinal forte.
Essas decisões de início de mandato de Joe Biden não resolvem tudo – a crise migratória enfrentada pelos Estados-Unidos nos últimos meses, com o boom das chegadas (e das interpelações) pelo México, o ilustra bem –, mas mostram que coisas podem avançar no bom sentido. Na Europa como nos Estados-Unidos, os migrantes clandestinos pagam regularmente a « fatura » dos discursos xenófobos e das políticas estaduais de repressão policial e judicial. Por isso, a postura do novo chefe do Estado norte-americano, em ruptura com a política desumana do seu predecessor sobre o dossier do « acolhimento », é claramento louvável. Contudo, ela não responde a todas as questões, e em particular aos desafios globais que são a fonte dos fluxos contrangidos de migração Sul-Sul e Sul-Norte, e das relações de dominação e de opressão que exerçam-se no âmbito da economia extrativista globalizada. A ideia, em particular, que a « prosperidade » do Ocidento base-se na exploração dos países do Sul, a pilhagem dos seus recursos, o apoio a elites locais autoritárias e corruptas, ou ainda em relações comerciais desequilibradas, nunca é contestada, nem pela presidência Biden. E de fato, os problemas permanecem: logo no início do seu mandato, Joe Biden enfrentou uma grande crise migratória, com a chegada à sua fronteira sul de milhares de crianças e adolescentes, migrantes ilegais vindo de América central; em uma mês, em Março de 2021, mais de 10 000 já eram identificados, um nível inédito desde 2024, que colocou os serviços federais sob tensão, ainda mais no contexto da pandemia de COVID-19.
No seu projeto chamado « The Vulnérabilité Series », criado em 2017, Abdalla Al Omari, refugiado sírio, imaginou os dirigentes das grandes potências mundiais no lugar dos deslocados. Agora baseado em Bruxelas, o artista queria lembrar-nos que somos todos seres humanos vulneráveis. Aqui, o ex-presidente da República norte-americano Donald Trump.
O texto a seguir é tirado do livre Aquelas que esperam (2010), escrito por Fatou Diome. Aqui, a autora francesa e senegalese fala primeiramente de Coumbia, moça (e recentemente mãe) que está a espera já desde vários anos o seu marido, Issa, que tentou a viajem para a Europa. Ela escreve o destino de toda uma geração que, tal como Issa e Coumbia, originários de uma ilha senegalese, crescerem no balanço entre empregos ancestrais em declínio ou desprezados, e um sistema educativo deficiente e sem perspectiva.
[Coumba] tinha estudado até o segundo grau, Issa também. Eles eram dessas crianças deixadas de lado pela escola, depois de ter fracasso no [final do segundo grau]. […] Eles eram dessas crianças desviadas da vida agrícola e demais mal ferramentadas para esperar ter um destino de burocrata. Não vendo nenhum caminho podendo os conduzir num futuro tranquilizador, os rapazes jogam-se no Atlântico, correm na Europa […]. As raparigas, elas, agarram-se a esses loucos do exílio que as conduzem numa deriva onde a utopia serve de base aos sentimentos. A escolaridade acorda as meninas e alimenta nelas outras aspirações. Horrorizadas pela desastrosa condição da sua mãe, elas imaginam a sua salvação com alguém que ousa a aventura [...].
Nesse segundo extrato, Fatou Diome volta sobre as causas do declínio da pescaria na pequena ilha onde acontece a história do livro, a partir do caso de Abdou, um comerciante que tem uma loja. Ela lembra em primeiro lugar que Abdou, « filho de pescador » para quem « o mar foi [a] única escola », « alimentado de cereais e de peixes frescos », substituiu o pai dele na liderança da « frota familiar », detalhando: « Fala-se que aos pobres, ainda permanecem os presentes da natureza. Mas o Atlântico foi tão generoso que os insulares sentem-se abençoados pelos deuses. [...] Mesmo quando a pegada era boa, eles guardavam a felicidade tranquila dos que sabem que a sua família é bem alimentada. »
Essa serenidade foi perturbada, e destruida, quando os arrastões ocidentais exploraram os recursos pesqueiros locais. As sardinhas que as crianças grelhavam cantando acabaram nas latas vendidas nos supermercados dos países ricos. Abdou, o capitão, tinha pressentido o problema: as suas pegadas reduziam-se, as suas finanças colapsavam. Em toda a costa senegalese, os pescadores voltaram com canoas cada vez menos enchidas. Douradas e espadartes, que esperavam as suas esposas, eram ajuntados pelos barcos europeus para papilas mais ricas. E enquanto as populações do Norte enchiam-se, a escassez instalava-se no Sul.