A Europa e a fantasia do « Estado-nação »: quando as limpezas étnicas forjavam as fronteiras e as identidades
Em 11 de Julho deste ano, foi o triste aniversário do massacre de Srebrenica, que designa o assassinato de mais de 8 000 homens e adolescentes Bósnios muçulmanos pelas tropas sérvias de Bósnia, na região de Srebrenica, em Julho de 1995. A expressão « limpeza étnica » tem as suas origens nos conflitos na ex-Iugoslávia na década de 1990, onde Srebrenica representa apenas um dos exemplos os mais macabros. Este conceito é bastante complexo a identificar; é classicamente definido como uma purga com base critérios étnicos, em particular a língua, a religião e a cultura. A limpeza confessional é portanto incluido. O objetivo da limpeza étnica é constituir um território etnicamente homogéneo ou puro, e claro, a noção de « raça » pode interferir.
A História testemunha de movimentos esforçados que acontecem geralmente quando um território tem sido o teatro de um combate (com uma forma de brutalização), após uma revisão de fronteira, num contexto de conflito ou na altura que seguiu o fim dos hostilidades – com uma lógica de represálias. A noção de área a purificar, « a limpar », é central. Mas o conceito distingue-se do genocídio. Para a sua dimensão primeiramente. Depois, porque o genocídio tem por alvo um povo, e a limpeza um território. O genocídio constitui um fim em si, a limpeza um meio de modificar um povoamente, não de eradicar um grupo em si. Para entender a génese ideológica e a origem da brutalidade que tornaram possível os eventos recentes na ex-Iugoslávia, temos que reflectir sobre as limpezas étnicas da primeira metade do século XX.
Caricatura satírica inglesa (1912), mostrando as grandes potências europeias tentando asfixiar os conflitos nos Balcãs.
A limpeza étnica como ferramenta de construção do Estado-nação
No século XIX, impôs-se na Europa o conceito de « Estado-nação », pensado como uma entidade homogênea, com fronteiras lineares e contínuas, cuja população seria constituida, em teoria pelo menos, por um só grupo étnico, linguístico, religioso, constituindo a nação.
Neste esquema, o facto de « limpar » um território de um grupo particular (definido pela « raça », a língua, a religião, a cultura) que não corresponde à norma maioritária, constituiu uma ferramenta de criação dos Estados-nações, na medida em que a pesquisa de uma homogeneidade étnica e cultural era considerada como responsdando a um ideal político. Na França, a instrução pública obrigatória e a proibição das línguas regionais sob a III° República (1870-1940) contribuirem fortamente a « homogeneizar » o território, oprimindo os particularismos e divulgando a língua francesa a todas as suas componentes. Na Polônia, na parte anexada pela Prússia (e pela Alemanha após 1871), observa-se uma política ativa de germanização.
A partir da Primeira Guerra mundial (1914-1918) após a qual vários impérios foram desmentelados, e após o discurso do presidente norte-americano Wilson em 11 de Fevereiro de 1918 sobre o direito dos povos à autodeterminação, as limpezas étnicas tomam formas mais violentes ainda. Primeiro porque o Estado-nação é legitimado pela queda dos impérios multinacionais; segundo, talvez, porque o papel da brutalização trazida pela Grande Guerra. Por exemplo, o desmembramento do Império otomano nos Balcãs desde o final do século XIX já tinha provocado confrontos particularmente violentes entre os Estados recentemente criados, como a Grécia, a Sérvia e a Bulgária para o controlo da região de Macedónia e da Trácia ocidental.
Em 1934, Macartney, secretário ao comité para as minorias na Sociedade das Nações (SDN), publicou uma análise detalhada dos problemas de minorias na Europa, na qual ele afirma que « um Estado-nação e minorias nacionais são incompatíveis ». De fato, esta conclusão traduz uma mentalidade observado em muitos países, que ilustra-se com violências para romper com uma coabitação às vezes secular entre comunidades, como na Sérvia e na Croácia em 1941. A pureza étnica suposto ser o resultado da construção do Estado-nação, a existência de minorias nacionais em interno apresente obviamente o risco de destabilizar a unidade.
Desde o final do século XIX, a leitura darwinista com base a teoria da evoluição e da seleção natural tem sido abusivamente aplicada às relações entre as nações – sob a apelação de « darwinismo social ». Este movimento desenvolveu-se notavelmente nos países anglo-saxões, e numa menor medida na Rússia. O darwinismo social supoz que a hereditariedade (os caráteres inatos) teriam um papel preponderante sobre a educação e o ambiente (os caráteres adquiridos). Este prismo de vista considera portanto que deve-se aplicar às lutas civis, às desigualdades sociais e às guerras de conquista, os mesmos princípios que a seleção natural em relação às espécies vivas. As disparidades observadas entre as sociedades teriam portanto uma explicação biológica, com uma trajetória única da História humana: os povos os menos « adaptados » à luta para a sobrevivência permaneceriam « parados » no estado primitivo conceptualizado pelos portadores do evolucionismo antropológico.
Entende-se facilmente que só havia um pequeno passo a fazer no pensamento hitleriano, para passar do conceito de « sobrevivência » ao de « dominação » das raças. A historiografia até falará de desenvolvimento de um « nacionalismo racial » para designar o processo que deve tornar indesiráveis as pessoas estrangeiras à norma e que pode logicamente provocar « limpezas » ou genocídios.
O quadro das limpezas étnicas: transformações políticas e mudanças de fronteiras
As operações de limpeza étnica aparecem-se muitas vezes como resultado de represálias após um conflito, uma ocupação ou ressentimentos nascidos de uma dominação passada. Foi observado isso nos Balcãs, após as guerras de 1912-1013 em relação aos muçulmanos, ou na Iugoslávia durante a Segunda Guerra mundial, quando a Croácia proclamou a sua independência em 10 de Abril de 1941 pela voz da organização nacionalista Ustasa – a qual beneficiava da profunda exasperação dos Croatas contra a monarquia autoritária iugoslávia, baseada em Belgrade. O seu discurso nacionalista tomou rapidamente as formas de um racismo ativista, e a Croácia praticou uma política anti-sérvia. Os Sérvios constituiam mais ou menos 30% da população do país, e o regime croata realizou uma limpeza étnica, expulsando por um lado em direção à Sérvia, por outro lado assimilando por conversão forçada ao catolicismo, ou ainda exterminando simplesmente.
A primeira metade de século vi também, após o desmembramento do Império otomano, trocas de população a grande escala, as quais já prefiguram o que serão os deslocamentos forçados de população na Europa central e oriental após a Segunda Guerra mundial. O mais famoso seguiu a assinatura do tratado de Lausanne em 1923, com limpezas étnicas por amplos deslocamentos de população entre a Bulgária, a Grécia e a Turquia, com a validação das grandes potências daquela altura e da Sociedade das Nações. Mais de um milhão e meio de Gregos devem assim deixar a Turquia, e 400 000 Turcos e muçulmanos o território grego; entre 92 000 e 102 000 Bulgaros deixam a República helênica, enquanto 35 000 Gregos e 67 000 Turcos deixavam a Bulgária. Cumulando esses movimentos após a Grande Guerra e a redefinição das fronteiras nos Balcãs, a Europa conta, em 1926, quase dez milhões de deslocados.
A Europa após a guerra também conhecerá fenômenos dramáticos similares, pois a Segunda Guerra mundial e a reorganização territorial que acompanha a vitória dos Aliados, observa-se muitos deslocamentos forçados de população após transformações políticas, em particular por causa de modificações de fronteiras. Na Albânia e na Iugoslávia, mais ou menos 140 000 Italianos devem ir-se embora. O tratado de Potsdam em 1945 autoriza as transferências: as populações alemãs ou de origem alemã são expulsadas por força da Polônia, da Hungria, da Romênia, da Iugoslávia, da Checoslováquia e da URSS. Os Soviéticos e os novos governos de Europa de Leste consideravam que as expulsões dos Volksdeutschen (conjunto dos povos partilhando a ascendência e a língua alemãs) e as transferências a grande escala de outras populações ajuderiam a consolidar os territórios redefinidos após a guerra.
Mais de doze milhões de Alemãos encontram-se então desraizados após a guerra. Do lado da Polônia, quase 2,1 milhões de pessoas foram deslocadas do território anexado pela URSS ao da Polônia. Claro, uma tal mudança deixou profundas cicatrizes no rosto da Europa, primeiramente com o ressentimento dos expulsados, que sentiram-se roubados. (Sem falar dos outros crimes cometidos, por exemplo o estupro de quase dois milhões de Alemãs pelo exército soviético, durante a conquista do território nazi.) Para milhões de Europeus, esta altura é então vivida como um rasgão identitário e uma espoliação clara da sua terra.
As regiões fronteiriças, objetos e teatro das « limpezas »
Contudo, os contextos permanecem muito diferentes segundo os países e as alturas. Constata-se em particular com o caso da URSS, que conservava as dimensões e as pretenções de um império multiétnico, mas que no entanto não hesitou a praticar políticas de limpeza étnica. A coletivização total a partir do Outono de 1929 tomou uma forte conotação étnica, como atesta a fome na Ucrânia em 1932-1933 (o holodomor, ou « exterminação pela fome ») que teria feito cinco milhões de vítimas – e que o Parlamento ucraniano qualificou de « genocídio » em 28 de Novembro de 2006. Adolf Hitler, chefe do governo alemão a partir de 1933, lança rapidamente uma campanha em favor das populações germanófonas que ele estima numa situação de necessidade na União soviética, e que são também afetados pela fome no território ucraniano. Esta abordagem ilustra para Moscovo o perigo que representam as minorias transfrontaleiras. Várias « limpezas » são conduzidas a partir de 1933-1934, que traduzem-se com uma campanha de colonização russa, de terror e de deportação sistemática contra Alemãos, Poloneses, Finlandeses, Carelianos ou Ijorianos. Mais de 800 000 pessoas são assim presas, deportadas ou executadas durante o « Terror étnico » que estendeu-se a todo o território soviético.
A essas vítimas do estalinismo acrescentarão-se certos povos do suloeste da URSS após a Segunda Guerra mundial, acusados pelo regime de colaboração com os Nazis – embora a presença alemã foi lá muito breve –, tal como os Arménios foram acusados em 1915 de traição pelos Turcos no âmbito da Grande Guerra onde exércitos russos e turcos lutavam no Cáucaso. Os principais povos afetados, além dos Alemãos da Volga deportados logo em 1941, foram os Chechenos, os Inguches, os Tártaros de Criméia, os Jarachais e os Bálcaros do Cáucaso, e populações turcófonas do Cáspio, todos deportados entre Outubro de 1943 e Junho de 1944. A deportação em direção do Cazaquistão de quase 387 000 Chechenos e de 91 000 Inguches (segundo estatísticas oficiais do regime soviético, mas outras estimações contam uns 600 000 indivíduos deportados), realizada em apenas seis dias pelo NKVD (Comissadiado do Povo aos Negócios Interiores) em Março de 1944 após um insurrecção, representa a deportação a mais intensiva jamais realizada – oficialmente por colaboração com os Nazis, que no entanto só ocuparam um terço do território checheno durante um tempo de apenas três meses.
Quando o motivo era puramente racial: da limpeza à exterminação
A Segunda Guerra mundial em particular, uma vez iniciada, constituiu uma base fértil para um processo que transformou o etnicismo ordinário (ou seja, a essencialização das caraterísticas reais ou supostas de grupos étnicos) em um racismo verdadeiro. O ódio inter-étnico tradicional era levado a um nível de repulção legitimado pela essência biológica detestável e criminal ligada ao « outro ». Por parte, é o que explica o grau de ferocidade nos confrontos entre Sérvios e Croatas, de depois a ida de uns 100 000 Croatas de Sérvia em 1945.
O genocídio dos judeus e o dos Roma, constituem casos que necessitariam um outro nível de análise – e que, no caso da Shoah, já foi objeto de uma ampla literatura. Ainda mais porque as persecuções contra dos judeus ou os Roma não datam de 1941, mas de vários séculos – inclusive em conjuntos multiétnicos como o Império russo. Contudo, operações de « limpeza » afetaram essas comunidades, além do genocídio durante a Segunda Guerra mundial. Por lembrança, o último pogrom anti-judeu na Europa teve lugar na Polônia em 1946, em Lielce. Espontaneamente ou graças à organização rigorosa de emissários sionistas na Europa central, os sobreviventes da Shoah começaram a ir para a Europa ocidental em 1945, juntando-se na Europa central e depois na Itália. Muitos deles esperavam, dai, ir na Palestina. Este movimento, baptizado a brikhah (« fuga » em hebraico), acelerou-se após o pogrom de Lielce, engordado por dezenas de milhares de judeus que tinham conseguido esconder-se na Polônia e em outros países da Europa oriental durante a guerra, ou que tinham-se refugiado na URSS e que abandonavam então a ideia de ficar ou de voltar na Polônia. Até 1948, esta situação permaneceu; naquele ano, contava-se ainda mais de 250 000 judeus desraizados na Europa central.
Um trabalho de memória sobre a história dessas tragédias que foram as limpezas étnicas e osq genocídios na primeira metade do século XX é necessário para entender como surgiu e desenvolveu-se o diteiro internacional entre as duas guerras mundiais, e mais ainda após a Segunda Guerra mundial: após a Carta da Organização das Nações Unidas em 1945, é adoptada em 1948 a Declaração universal dos direitos humanos e a Convenção de prevenção e de repressão do crime de genocídio. Desde os conflitos na ex-Iugoslávia na década de 1990, até os crimes cometidos contra as comunidades muçulmanas no Myanmar ou na província do Xinjiang na China, passando pelas persecuções dos Cristãos e dos Iezidis no Oriente Médio, ou ainda pelo genocídio no Ruanda em 1994 e as suas repercussões no Burundi na mema altura, ou o do Darfur a partir de 2003, tudo mostra que a tarefa é ainda colossal e que muito fica para fazer. Exemplo ainda mais recente: em 2020, a guerre que aconteceu no Nagorno-Karabalh, no Azerbaijão, ainda provocou o deslocamento de milhares de Arménios até então presentes nos territórios perdidos pelos secessionistas. Como um último eco do genocídio arménio acontecido em 1915-1916 (com crimes perpetuados até 1923). A História repete-se, dramaticamente.