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O acendedor de lampiões

Desde a Primavera Árabe, como anda a democracia tunisiana? (1/3) A Revolução de Jasmim e as suas promessas (2010-2014)

2 Octobre 2024 , Rédigé par David Brites Publié dans #Democracia, #África

Já faz quase quinze anos (era em 17 de Dezembro de 2010) que Mohamed Bouazizi, graduado desempregado com 26 anos de idade, imolou-se por fogo, num ato de desespero após a apreensão da sua mercadoria de frutas e legumas que vendia na rua. Um gesto que levou a semanas de motins e protestos, primeiro em Sidi Bouzid, a sua localidade, e depois em toda a Tunísia, a ponto de levar o chefe do Estado, Zine el-Abidine Ben Ali, a deixar o poder e ao exílio. Conhecemos o que seguiu, ondas de contestação semelhantes atingiram quase todos os países árabes, provocando a queda de vários chefes de Estado: no Egipto em Fevereiro de 2011, na Líbia en Agosto de 2011, e no Iêmen em Fevereiro de 2012. Em 2018-2019, com causas políticas e econômicas semelhantes, uma segunda onda de revoltas foi observada, com base o Sudão a partir de Dezembro de 2018, e a Argélia a partir de Fevereiro de 2019... Quinze anos após o falecimento de Mohamed Bouazizi, o que resta desses movimentos? No Egipto, a repressão que atingiu os Irmãos muçulmanos desde Julho de 2013 e o plebiscito presidencial do general al-Sissi em Maio de 2014 consagraram a vitória da reação contra-revolucionária. Na Argélia, o exército conseguiu controlar uma transição disfarçada pela organização de uma eleição presidencial que, logo em Dezembro de 2019, deixou-lhe as chaves do poder real. Na Líbia como no Iêmen, os processos constitucionais encorajadores, levados no Iêmen pela Conferência de Diálogo Nacional (2012-2014), e na Líbia pelo estabelecimento de uma assembleia constituinte eleita (2014), foram aniquilados pelo caos securitário que reina lá desde o verão de 2014, e que equivale claramente a uma guerra civil cuja conclusão não é para já. Igual no Sudão, onde o processo de transição revolucionário foi interrompido pelo golpe de Outubro de 2021 de Abdel Fattah al-Burhan, e pela guerra que abriu-se entre generais do exército a partir de Abril de 2023.

Neste contexto de tensões acentuadas pela guerra contra o Estado Islâmico no oriente Médio, durante a década de 2010, e pelas dificuldades econômicas, a Tunísia deu muito tempo a impressão de uma ilha de estabilidade e de democracia. Entre 2011 e 2014, o país adoptou uma nova Constituição e organizou a seguir eleições legislativas e presidenciais, com um relativo sucesso. Um regime parlamentar ou semi-presidencial (dependendo de se o chefe do Estado tinha a mesma cor política que a assembleia legislativa) implementava-se então, permitindo alternâncias sem crises políticas importantes. Durante esses primeiros anos pós-Primavera Árabe, laboriosamente, ao fim de um processo fidícil e às vezes doloroso, a Tunísia mostrou que a construção de uma democracia árabe era possível. Neste primeiro capítulo do nosso foco sobre a democracia tunisiana, voltamos sobre esta sequência fascinante da história deste país.

Tabarka, cidade costeira do nordoeste.

A Tunísia, situada entre o delta do Nilo e o Magrebe, entre a África e a Europa, entre o oeste e o este do Mediterrâneo, constitui uma encruzilhada com uma riquíssima história, no contexto mediterrânico como no do mundo árabe e muçulmano. A história da Tunísia, é obviamente Cartago, fundada em 814, destruida em 146 antes de J.-C., e os reinos númidas de tipo berbere que povoaram o interior desde os primeiros tempos da Antiguidade. É também a cristianização sob a dominação romana, os Vândalos, depois a ocupação bizantina e finalmente, entre 647 (data do primeiro ataque) e 698 (tomada de Cartago e Tunes), a invasão árabe. Esta última foi temporariamente dificultada pela resistência dos tribos berberes, em particular as lideradas por Koceila até 686 e pela princesa Kahina até 702 na região de Aurès (a qual corresponde à atual fronteira entre Tunísia e Argélia).

A Tunísia é, no entanto, rapidamente islamizada e arabizada. Na segunda metade do século VIII, a dinastia árabe dos Aglábidas reinou sobre o reino de Ifriqiya (deformação árabe do nome romano: Africa) antes de ser dominada pelos Fatímidas; no século XII, as invasões hilalianas completaram o trabalho de arabização do território tunisiano, pelo menos no plano socio-cultural. A família berbere dos Hafsidas, que controla esta terra a partir de 1207, não conseguiu conter esse fenômeno, assim como não conseguirá impedir que o Império Otomano ocupasse o país em 1574. Aquele ano, os Turcos tomam a cidade de Tunes, ocupada pelos Espanhóis desde 1534.

O resto é bem conhecido: a pretexto de lutar contra a pirataria, a França ocupa a África do Norte e transforma a Tunísia num protectorado, em 1881, à barba dos Italianos que também visavam este território. Entretanto, o país foi atravessado, no século XIX, por novas correntes de pensamento político vindas da Europa. Nascido em 1907, o movimento dos Jovens Tunisianos, corrente de pensamento nacionalista, reformista, secular e protestante, será a primeira forma de resistência à ocupação francesa; as suas ideias são retransmitidas por Le Tunisien, primeiro semanário tunisiano em língua francesa, fundado em 7 de Fevereiro de 1907 por Ali Bach Hamba e Abdeljelil Zaouche. A Tunísia conhece os seus primeiros protestos anticoloniais na década de 1930, mas é a partir de 1952 que o movimento de independência ganha força. De acordo com as convenções franco-tunisianas do 3 de Junho de 1955, o país torna-se finalmente totalmente independente em 20 de Março de 1956.

Estátua do presidente H. Bourguiba (1957-1987), Tabarka.

Cinco dias depois, o povo tunisiano elege uma Assembleia Constituinte. O partido Neo-Destour vence as eleições, Lamine Bey torna-se chefe do Estado, e Habib Bourguiba Primeiro ministro. 1957 é um ano decisivo: em 13 de Agosto, é aprovado um Código do Estatuto Pessoal particularmente progressivo, e em 25 de Julho, a República é proclamada. Habib Bourguiba assume então a carga de chefe do Estado, que ocupará por trinta anos. A sua presidência é marcada pelo fortalecimento dos direitos das Tunisianas: a abolição da poligamia e do repúdio, o direito ao divórcio e mais tarde ao de avortar são exemplos disso, e acrescentam-se a uma prática moral muito progressista. Contudo, o regime revela-se autoritário, pratica a tortura contra os inimigos designados pelo Estado (sindicatos, comunistas, islamistas...), e controla todos os setores da economia. Apesar de uma política intervencionista, a economia nacional conhece uma certa instabilidade, como o ilustram os « motins da fome » de 1983.

A ascensão de um islão radical no meio da década de 1980 favorece o surgimento, na cena política, do então ministro do Interior, Zine el-Abidine Ben Ali: nomeado Primeiro ministro em Outubro de 1987, ele depôs Habib Bourguiba um mês depois, oficialmente sob o pretexto de senelidade. Eleito em 1989, ele será reeleito cada cinco anos, com resultados que variam entre 89,62% (em 2009) e 99,91% dos votos (em 1994). A prática da tortura, os abusos contra a liberdade de expressão, e os limites du pluralismo político são amplamente denunciados pelas associações e pelos partidos de oposição. O forte crescimento económico, estimulado pela indústria e pelo turismo, não impede uma persistência de desigualdades importantísssimas. A inflação e o desemprego afetam duramente toda a população, e novos « motins da fome » são observados em 2008, na localidade de Gafsa. A realidade do regime favorece o desenvolvimento do clientelismo e da corrupção. Em 2011, a descoberta na residência do presidente Ben Ali e da sua mulher Leila Trabelsi, de grandes quatidades de drogas, de elementos arqueológicos roubados e de valores delirantes de dinheiro revelará o nível de um sistema cujo nepotismo e a dimensão confiscatória tinham sido até então sob-estimados. Os eventos de 2011 também levantarão o véu sobre as expropriações forçadas, sobre as desclassificações de sítios protegidos para fins pouco escrupulosos, ou sobre o uso do imposto discricionário do Fundo de Solidariedade Nacional, a famosa « conta 26-26 » – uma ferramenta de luta contra a pobreza que fez sobretudo a felicidade do partido-Estado, a Reunião Constitucional Democrática (RCD). Em 2011, a fortuna do clã Ben Ali-Trabelsi tinha atingida várias dezenas de bilhões de dólares.

Zine el-Abidine Ben Ali, chefe do Estado (1987-2011).

Da centelha revolucionária à eleição da Assembleia Constituinte

Esta é a situação política da Tunísia às vésperas da Revolução. O contexto económico e social deste país de onze milhões de habitantes, incapaz de integrar todos os seus jovens no mercado do trabalho,é explosivo, como o ilustram os protestos observados após a auto-imolação de Mohamed Bouazizi. A contestação aumenta rapidamente. Ela é facilitada pela coordenação de internautas ativos, como o blogueiro Slim Amamou e a web-ativista Lina Ben Mhenni. Acompanhada por uma greve geral e pontuada por confrontos com as forças policiais ou de segurança que fazem uns 300 mortos, a Revolução do Jasmim culminou, entre o 12 e o 14 de Janeiro de 2011, a uma série de anúncios conciliatórios do chefe do Estado, que declarou que não seria candidato à sua reeleição na presidencial prevista em 2014: promessa de criação de milhares de empregos, destituição do ministro do Interior, preços mais baixos de bens de primeira necessidade, liberdade de expressão, libertação dos prisoneiros políticos, convocação de eleições legislativas antecipadas. É declarado o estado de emergência, mas a revolta não se acalma. Em 14 de Janeiro, o chefe do Estado, precedido por sua família (e sua fortuna), exila-se na Arábia Saudita.

Os protestos prolongam-se várias semanas, e obtem mais duas vitórias: a constituição de um governo de união nacional que reune essencialmente pessoas da oposição ao regime, e em 27 de Fevereiro, a demissão de Mohammed Ghannouchi, Primeiro ministro desde 1999. Antigo ministro sob a era Bourguiba, Beji Caid Essebsi toma a liderança do governo e gere a transição em marcha: é proclamada uma anistia geral logo em Fevereiro de 2011, e no início de Março, a polícia política e a RCD, o partido de Ben Ali, são dissolvidos. Em Junho e Julho de 2011, e ainda em Abril de 2013, o ex-presidente é condenado à revelia pelos tribunais tunisianos, na concluasão de quatro processos. Acumuladas, as penas são muito pesadas, intransigentes: 71 anos de prisão e uns 190 milhões de dinares de multa (mais ou menos 95 milhões de euros), designadamente por desvio de fundos, tráfico de estupefacientes, abuso de bens públicos e corrupção. Acrescenta-se em 14 de Junho de 2012 a sua condenação por um tribunal militar a 20 outros anos de prisão, por « incitação à desordem, assassinatos e saques » em Ouardanine, e à prisão perpétua por o seu papel na sangrenta repressão dos protestos em Thala e em Kasserine, duas localidades emblemáticas da Revolução do Jasmim. Penas puramente simbólicas, claro, pois o principal envolvido continuava então exilado na Arábia Saudita. Ele faleceu em 19 de Setembro de 2019 em Djeddah, à beira do mar Vermelho.

Avenida Habib Bourguiba (aqui na praça renomada « do 14 de Janeiro de 2011 »), epicentro da contestação contra Ben Ali em Tunes.

Avenida Habib Bourguiba (aqui na praça renomada « do 14 de Janeiro de 2011 »), epicentro da contestação contra Ben Ali em Tunes.

Entretanto, a abertura das mídias, a libertação ou o regresso de exílio dos oponentes políticos, e a liberdade de expressão permitem lançar as primeiras bases para a democratização do país.. Apesar do clima de insegurança e dos saques violentos observados em Abril e em Maio do mesmo ano, uma Assembleia Constituinte é éleita em 23 de Otubro de 2011. Criado por Rached Ghannouchi (voltado de um exílio de vários anos), o partido islamo-conservador Ennahda, forte da sua imagem de adversário histórico ao antigo regime e de formação honesta, sai vencedor desta primeira eleição, muito à frente dos seus concorrentes, com 37,04% dos votos e 89 deputados. Contudo, a sua maioria relativa obriga-o a formar uma coligação com dois outros partidos. Com conclusão um acordo entre as suas formações, Mustapha Ben Jaafar (Ettakatol), Moncef Marzouki (Congresso Para a República) e Hamadi Jebali (secretário geral e número 2 de Ennahda) ocupam respetivamente os cargos de presidente da Assembleia Constituinte (22 de Novembro), chefe do Estado (13 de Dezembro) e Primeiro ministro (24 de Dezembro).

A transition está bem encaminhada, mas as eleições de 2011 revelaram deficiências notáveis, em particular porque a participação foi relativamente baixa (51,97% dos eleitores inscritos), e porque a proliferação de candidaturas (mais de 200 partidos, para mais de 10 000 candidatos) levou a uma dispersão do voto. Mais de um terço dos eleitores ficam sem os representantes de sua escolha na nova Assembleia.

Resultados da eleição da Assembleia Constituinte em 23 de Outubro de 2011. O PDP e Afek Tounes unem-se em Abril de 2012 para criar o Partido Republicano (PR) que reclama-se liberal e centrista ; porém esta decisão provoca a partida de certos deputados destas duas formações. Isso é um exemplo, entre vários outros, dos muitos « movimentos » observados em 2023 e em 2023 – defecções, fusões de partidos, etc. –, os quais fazem então evoluir significativamente a paisagem política e o equilíbrio das forças; nos partidos presentes no governo, só Ennahda não conhece, no Parlamento, nenhuma deserção (e nenhum adesão).

Resultados da eleição da Assembleia Constituinte em 23 de Outubro de 2011. O PDP e Afek Tounes unem-se em Abril de 2012 para criar o Partido Republicano (PR) que reclama-se liberal e centrista ; porém esta decisão provoca a partida de certos deputados destas duas formações. Isso é um exemplo, entre vários outros, dos muitos « movimentos » observados em 2023 e em 2023 – defecções, fusões de partidos, etc. –, os quais fazem então evoluir significativamente a paisagem política e o equilíbrio das forças; nos partidos presentes no governo, só Ennahda não conhece, no Parlamento, nenhuma deserção (e nenhum adesão).

Logo de Ennahda em Cairuão, no centro-Leste do País.

As dificuldades económicas e securitárias

A fraca maioria parlamentar do partido Ennahda o obriga a multiplicar as concessões. Em 26 de Março de 2012, Rached Ghannouchi anuncia renunciar a uma modificação do artigo 1 do projeto de Constituição, o qual garante os princípios de um Estado civil. Ennahda renuncia, assim, a inscrever no corpo constitucional o princípio de estrita aplicação da Sharia. Um outro artigo preverá, porém, que o islão é a religião do Estado, o que significa, do ponto de vista dos deputados islamistas, que o direito positivo não pode entrar em contradição com a Lei corânico: uma interpretação que sugeria apreciações diferenciadas e polêmicas no futuro, embora em Março de 2013, um artigo integrado aos princípios gerais definirá a Tunísia como um « Estado civil » baseado no princípio da cidadania, sobre a vontade do povo e sobre o Estado de direito, dando assim mais pesos a uma interpretação secular. Entretanto, em 14 de Agosto de 2012, pelo menos 10 000 manifestantes defenderem em Tunes o princípio de igualdade homens-mulheres, e denunciaram a opinião dos islamo-conservadores neste assunto. Ennahda finalmente abandona a noção de « complementaridade entre os homens e as mulheres », que os islamistes queriam incluir na Constituição, para a de « igualdade » entre as cidadãs e os cidadãos. Igualmente, em Outubro de 2012, a ideia de inscrever na Constituição a criminalização de qualquer « ataque ao sagrado » também é descartada, e o partido islamista aceita, após meses de braço de ferro com as mídias, de aplicar decretos sobre a liberdade de imprensa.

Durante o Outono de 2012, os debates da Constituinte cristalizaram-se também sobre o tipo do futuro regime: aos islamistas que reclamavam um sistema parlamentar, sem eleição direta do presidente e onde o sua dominação seria, assim pensavam eles, assegurada graças aos bons resultados eleitorais de Ennahda, os deputados de esquerda respondem exigindo um um regime semi-presidencial, para evitar que seja consagrada um chefe do governo hegemônico. É finalmente este último modelo que prevalecerá na Tunísia, após uma última concessão de Ennahda em 3 de Maio de 2013: o chefe do Estado, eleito pelo povo, terá a carga « de determinar as ^políticas gerais da defesa, das relações exteriores e da segurança nacional », e embora a sua margem de intervenção na política interior é limitada, ele pode impor um voto de confiança ao Primeiro ministro, e terá um direito de dissolução do Parlamento. Rapidamente, os debates constituintes são retardadas pela gestão da atualidade. As dificuldades económicas, herdadas da ditadura, rapidamente se sobrepusam às polêmicas constitucionais. O desemprego permanece muito importante e afeta todos os setores, « a tal escala que o desenvolvimento da economia paralele ameaça a capacidade do governo de cumprir os seus compromissos financeiros, explicou em Fevereiro de 2013 o blogueiro Ali Guidara, em Nawaat, um webjornal. Resultado: o país assite ao colapso da notação da sua dívida soberana e do seu sistema bancário. Esta realidade afeta os negócios e os investimentos. » Os motins constatados em Sidi Bouzid, em Agosto, e em Siliana, em Novembro de 2012, são alimentados pela incapacidade do governo a relançar a economia. A poderosa federação sindical da Uniéao Geral Tunisiana do Trabalho (UGTT) apoia a mobilização e os protestos. Apenas em 18 de Abril de 2013, veremos o governo tunisiano anunciar uma queda drástica dos preços de uns produtos de consumo cotidiano.

Ausentes das eleições de Outubro, os meios salafistas, a pesar de serem ultra minoritários na Tunísia, fazem-se ouvir durante no Outono de 2011: multiplicam-se os confrontos nas universidades, para hastear a bandeira negra salafista e incentivar as mulheres ao uso do véu; ataques contra sedes de órgãos de imprensa são constatadas, e mais de 40 mausoléus sufis considerados heréticos são destruidos. O fim da ditadura libertou a palavra pública, incluisive dos mais radicais. Os motins protagonizados pelos meios saladistas, em Maio e Junho de 2012, levam as autoridades a decretar um recolher obrigatório em 13 de Junho, em Tunes e em quatro regiões. O inverno de 2012-2013 é marcado pela multiplicação das ações das Ligas de Proteção da Revolução (LPR), milícias particularmente violentas compostas de ativistas islamistas e amplamente toleradas pelo partido Ennahda. Essas últimas conduzem uma verdadeira « caça às bruxas » contra qualquer um suspeito de cumplicidade contra o antigo regime, e também participam ativamente à repressão dos movimentos sociais que proliferam então, atacando ativistas sindicais ou manifestantes em total ilegalidade. É igualmente preocupante o ataque orquestrado contra a Embaixada dos Estados-Unidos de América, em 14 de Setembro de 2012, o qual matou quatro pessoas e feriu dezenas.

Entretanto, um novo ator entrou na arena política tunisiana: o partido Nidaa Tounes, (« Chamada da Tunísia »), fundado em Junho de 2012 por Beji Caid Essebsi, o qual dirigiu o governo entre Fevereiro e Dezembro de 2011. O partido reclama-se da herança de Habib Bourguiba e quer unir, inclusive atraindo membros da ex-RCD do presidente deposto. « Com exceção dos que são processados pela Justiça », afirma ele. Esta posição leva a agressões das Ligas islamistas contra membros desta nova formação, em Outubro e Novembro de 2012 – em 18 de Outubro, Lotfi Nagdh, figura do partido, é espancado até a morte. Tendo em vista as futuras eleições legislativas, Nidaa Tounes faz aliança com quatro outros partidos de esquerda ou centristas para criar uma plataforma eleitoral, a « União para a Tunísia ». Nas mesma perspetiva, doze partidos e associações de esquerda (socialistas, ecologistas, soberanistas, etc.) e inteletuais fundam, em 7 de Outubro de 2012, a Frente Popular, cujo objetivo é levar adiante as reivindicações sociais da Revolução de 2011. O surgimento dessas duas coligações eleitorais contribui então amplamente à reestruturação da cena política tunisiana.

Desenho em Tunes representando Chokri Belaïd.

Os atentados de 2013: as crises superadas

Dois atentados fream temporariamente o processo de transição tunisiano. O primeiro ocorreu em 5 de Fevereiro de 2013. Naquele dia, um dirigente histórico da oposição, Chokri Belaïd, membro da Frente Popular, é assassinado. Sendo este assassinato imediatamente atribuido às milícias toleradas por Ennahda, milhares de manifestantes protestam violentamente no dia seguinte, em Tunes e em Sidi Bouzid, e, a partir do 7 de Fevereiro, em Gafsa, matando dois polícias. O 8 de Fevereiro, dia do funeral de Chokri Belaïd, é a ocasião de protestos enormes em todo o país, e de uma greve geral convocada pelos partidos políticos e pela UGTT.

As reuniões e manifestações multiplicam-se, uns em apoio a Ennahda, a maioria para denunciar o partido o poder. Em 19 de Fevereiro, Hamadi Jebali demissiona após não ter conseguido a formar um governo apolítico (uma reclamação dos manifestantes anti-islamistas), contra a opinião do seu próprio partido. Ali Larayedh, ministro do Interior e também membro de Ennahda, torna-se Primeiro ministro em 13 de Março, ou seja, quase um mês depois; a coligação é então reconduzida, porém Ennahda aceitou finalmente de entregar a personalidades apolíticas os ministérios soberanos (ou « realengos ») que membros do partido controlavam até ai: Interior, Justiça, Negócios Exteriores. Após a imolação de um jovem pobríssimo em Tunes em 12 de Março, e após o prazo dos 40 dias de luto de Chokri Belaïd em 17 de Março, as tensões diminuem.

A partir do 2 de Maio, o exército tunisiano investe um maquis jihadista: este campo de treinamento salafista, o primeiro posto à luz desde a Revolução, situado em duas montanhas tunisianas (no monte Chambi, e na região de Kef) perto da Argélia, é desmantelado após violentes combates que demoram uma semana. Os laços entre guerrilheiros salafistas e Al-Qaeda no Magrebe são oficialmente estabelecidos em 7 de Mario. Entre Abril e Julho, a caçada de jihadistas entrincheirados no monte Chambi faz várias vítimas no exército e na Guarda Nacional, e parece exprimir uma vontade sincera do governo de acabar com a ameaça terrorista do país. Segundo o deputado Selim ben Abdesselem (ex-Ettakatol que tornou-se membro de Nidaa Tounes) mencionado em 19 de Dezembro de 2013 em RFI-África, esta reação do governo chega bem tarde, e revela os erros e os riscos da estratégia de Rached Ghannouchi em relação ao movimento salafista tunisiano: « Eu uso a expressão de tolerância culpada. Quando vomos que Rached Ghannouchi, num vídeo que vazou na Internet, recebia jovens salafistas e explico a eles que Ennahda e o seu movimento salafista eram os mesmos, que os seus objetivos de infiltração da sociedade eram os mesmos, e que o seu trabalho não era um problema e que eles tinham a sua validação para o fazer, hoje, são as mesmas pessoas que chamamos de terroristas. Vemos o percurso feito e vemos os erros que foram cometidos. O Senhor Ghannouchi chamava essas pessoas "nossas crianças", dizendo: "eles me fazem lembrar a minha juventude". Esta juventude de hoje, são pessoas que praticam o terrorismo. Os laços eram claros. Sobre Internet, nas mesquistas, há claramento chamadas ao assassinato contra certos oponentes e vimos que é o que aconteceu. Chokri Belaïd foi assassinado e depois foi o torno de Mohamed Brahmi. »

Pois de fato, o segundo assassinato vei perturbar a vida política tunisiana. Em 25 de Julho de 2013, Mohamed Brahmi, líder de esquerda póximo de Frente Popular, é matado, provavelmente por um ativista salafista. O seu funeral, em 27 de Julho, deixa lugar a uma grande manifestação popular em Tunes, e os dias a seguir, em particular em 6 e em 13 de Agosto, são a ocasião de grandes protestos contra o governo e a Assembleia – confrontos contra a polícia até fazem um morto em Gafsa. A central sindical UGTT organiza um protesto em frente do Parlamento. Em 7 de Agosto, a mobilização cidadã levou à suspensão temporária dos trabalhos parlamentares ligados à Constituição, até o 11 de Setembro. A resolução da crise política só será possível quando Ennahda aceitará (28 de Setembro) e assinará (6 de Outubro) um plano de saída de crise proposto em 17 de Setembro por quatro organizações da sociedade civil: a UGTT, a associação patronal UTICA, a Ordem Nacional dos Advogados, e a Liga Tunisiana dos Direitos Humanos. Após umas últimas negociações, um novo governo, apolítico e conduzido por um independente, Mehdi Jomaa (ministro da Indústria no governo anterior), é formado em Janeiro de 2014.

Desenho em Aïn Draham, pequena localidade do nordoeste da Tunísia.

Desenho em Aïn Draham, pequena localidade do nordoeste da Tunísia.

A implementação da IInda República

O terceiro aniversário da queda do regime de Ben Ali é a ocasião, em Tunes, de grandes desfiles dos principais partidos políticos – Ennahda, a Frente Popular e Nidaa Tounes em particular –, os quais anunciam a campanha eleitoral a seguir. Num contexto social ainda deletério (motins em Gafsa ni início de janeiro), a Constituição é finalmente aprovada pelos deputados da Assembleia Constituinte em 16 de janeiro de 2014, o que permite a sua adopção sem passar por referendo.

O novo regime é oficialmente proclamado em 27 de Janeiro quando a Constituição é assinada pelo chefe do Estado, pelo Primeiro ministro e pelo presidente da Assembleia. Após a de de 1959, a Constituição de 2014 instaura um regime semi-presidencial e democrático, que recebe críticas de um lado e de outro da cena política, e além.

O corpo judiciário, entre outros atores, permanece céptico: a magistratura perde a sua imunidade, ao contrário dos poderes legislativo e executivo, e um mecanismo de revocação do juiz é constitucionalizado, o que, no futuro, pode comprometer a sua independência. Contudo, os deputados islamistes falharam em criar um Conselho Superior Islâmico que teria em particular o poder de emitir fatwas, o que teria esvaziado o Ministério dos Assuntos Religiosos das suas prerrogativas em favor de um órgão independente da área política, capaz de instrumentalizar as questões religiosas.

Ni final, a Lei Fundamental cristaliza ao mesmo tempos críticas dos islamistas, para quem ela assimila-se mais a uma Constituição ocidental do que a um projeto adequado numa terra de islão, e por outro parte, dos partidos em favor ao secularismo, os quais denunciam as contradições entre certos artigos, na base dos quais os islamistas poderão aproveitar para impor a suas vistas no futuro. (Veremos que finalmente, em 2021, a ameaça contra a democracia não virá da questão da relação à religião, mas dos poderes dados, teoricamente de forma excepcional, ao chefe do Estado.) Apesar dessas críticas todas, a Constituição é sobretudo o resultado de um consenso – e das muitas concessões de Ennahda – o que explica que os seus artigos foram na maioria aprovados por uma ampla maioria dos deputados. O Preâmbulo começa por « Em nome de Deus », conclui por « Em nome do povo do povo », e base os funamentos da Constituição sobre « os princípios dos direitos humanos universais de acordo com as especificidades culturais do povo tunisiano ». Os dois primeiros artigos, não modificáveis, definem a Tunísia como uma República regida pelo « primazia do direito », um Estado « livre, independente, soberano »« civil » cujo islão é a religião. « Todos os cidadãos e as cidadãs têm os mesmos direitos e os mesmos deveres. Eles são iguais perante a lei sem discriminação nenhuma ». O princípio da paridade nos órgãos eleitos até é inscrito. Uma emenda proposta por Habib Herguem, deputado Ettakatol, dizia que a família era baseada « no casamento entre um homem e uma mulher », sob o pretexto de conter uma pseudo-teoria do gênero cuja propagação « favoreceria o casamento homossexual », mas finalmente não foi conservado.

Em termos de liberdade de culto, se o artigo 6 proclama que « o Estado garante a liberdade de crença e de culto religioso »« a garantia de consciência », o mesmo artigo dá-lhe o papel de « protetor do sagrado » e de « gardião da religião ». Uma emenda proíbe « as acusações de apostasia », e dá portanto o direito de mudar de religião ou de tornar-se ateu. Contudo, apenas um muçulmano pode aceder à carga de chefe do Estado. Além disso, a pena capital é mantida.

Em 2013, certas vozes na sociedade civil tinham defendido, diante das incoerências do texto, o retorno à Constituição de 1959, para contentar-se de a modificar para acrescentar os direitos e as liberdades. Esta ideia foi logo abandonada, e em 2014, era preciso contentar-se do que não deixa de ser, após a sua adopção, uma das Constituições as mais progressivas do mondo árabe. Ela tem a vantagem e os inconvenientes de um texto de compromisso, o que permite a todas as partes da sociedade tunisiana de identificar-se nela, mas também alarga o leque de interpretações possíveis.

Em 5 de Março de 2014, o estado de emergência em vigor desde a Revolução é levantado. Neste contexto, podem finalmente ser organizadas as eleições legislativas, o que é o caso em 26 de Outubro. E enquanto Ennahda reclamava um sistema de votação maioritário com apenas um torno, a proporcional integral é escolhida, segundo o desejo da oposição. A eleição presidencial permite concluir a transição. Os dois tornos têm lugar em 23 de Novembro e em 21 de Dezembro de 2014. Voltaremos em detalhe nessa dupla sequêncis eleitoral – legislativas e presidencial –, que abriram o mandato de 2014-2019, no próximo artigo desta série consagrada à democracia tunisiana.

De uma certa maneira, o gesto de Mohamed Bouazizi despertou as consciências e desabou a barreira do medo. É o síndrome Gavrilo Prinzip, o nome deste estudante sérvio que cometeu o atentado à origem da Primeira Guerra Mundial : a auto-imolação é a faísca que acendeu o baril de pólvora nascido da situação política e social tunisiana. Raros são os indivíduos que tiveram, em uma só ação, um impacto tão grande na História.

De uma certa maneira, o gesto de Mohamed Bouazizi despertou as consciências e desabou a barreira do medo. É o síndrome Gavrilo Prinzip, o nome deste estudante sérvio que cometeu o atentado à origem da Primeira Guerra Mundial : a auto-imolação é a faísca que acendeu o baril de pólvora nascido da situação política e social tunisiana. Raros são os indivíduos que tiveram, em uma só ação, um impacto tão grande na História.

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