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O acendedor de lampiões

Desde a Primavera Árabe, como anda a democracia tunisiana? (3/3) A viragem autoritária preocupante do presidente Kaïs Saïed (2020-2024)

2 Décembre 2024 , Rédigé par David Brites Publié dans #Democracia, #África

Desde 2021, a Tunísia conhece a crise a mais grave desde a Revolução do Jasmim e a queda do presidente Zine el-Abidine Ben Ali em Janeiro de 2011. Em 25 de Julho de 2021, num contexto particularmente tenso, o chefe do Estado, Kais Saied, eleito menos de dois anos antes, demitiu o governo, suspendiu a Assembleia dos Representantes do Povo, e confiscou a maior parte dos poderes, por uma série de decisões adoptada sob a cobertura de vias constitucionais legais, porém denunciada como um « golpe de Estado » por várias forças de oposição. Exatamente um ano depois, Kais Saied « normalizou » a situação institucional, fazendo adoptar por referendo uma nova Constituição, a qual presidencializa o regime tunisiano, e consagra definitivamente a viragem autoritária conduzida pelo chefe do Estado. E portanto hipoteca muito a situação democrática do único Estado que, após as Primaveras Árabes, tinha conseguido acabar com sucesso com a sua revolução – a eleição presidencial organizada em 6 de Outubro passado ilustrou perfeitamente o fracasso da democracia tunisiana.

Tabarka, na costa norte.

Tabarka, na costa norte.

Voltamos primeiro às origens da crise tunisiana. Por lembrança, a Tunísia é o único país a ter conseguido, após a revolução de 2010-2011 (no contexto das Primaveras Árabes), estabelecer, certamente com dificuldade, um regime democrático moderno. Após a eleição de uma assembleia constituinte em Outubro de 2011 e a implementação de um governo de coaligação dominado pelo partido islâmico Ennahda (próximo da Irmandade Muçulmana), o país entrou numa crise política com as dificuldades económicas decorrentes da revolução, mas também com o atraso tomado na redação de uma nova Lei fundamental, e com a subida das violências salafistas, em particular os atentados de 2013, de que foram vítimas duas figuras de esquerda, Chokri Belaid e depois Mohamed Brahmi. Saiu da crise com o plano de saída de crise proposto em Setembro de 2013 por quatro organizações da sociedade civil – a UGTT, a associação patronal UTICA, a Ordem Nacional dos Advogados e a Liga tunisiana dos Direitos Humanos – e com o estabelecimento de um governo técnico apartidário em Janeiro de 2014. Acima de tudo, em 27 de Janeiro de 2014, a nova Constituição entra em vigor, consagrando o nascimento da IInda República. Em 5 de Março de 2014, o estado de emergência em vigor desde a revolução acaba, e eleições são depois organizadas: legislativas em 26 de Outubro, com a proporcional integral, e a presidencial com dois tornos, em 23 de Novembro e 21 de Dezembro de 2014. Um novo partido, Nidaa Tounes, conglomerado barroco reunindo nostálgicos de Bourguiba e às vezes até de Ben Ali, democratas preocupados por defender um Estado laico, ou mesmo liberais, conquistou uma maioria no Parlamento, e o seu fundador, Beji Caid Essebsi, é eleito presidente; quanto a Ennahda, é forçado a aceitar o princípio de alternância.

A Constituição não era um texto ideal, certamente. Insteurou então um regime meio parlamentar, cuja tendência (mais ou menos parlamentar, mais ou menos presidencial) dependia sobretudo da prática política. Dava um reconhecimento limitado ao islão, e a igualdade entre todos os cidadãos e cidadãs. Era o resultado de um consenso – e das muitas concessões de Ennahda –, o que explicava que os seus artigos tinham sido para uma maioria deles aprovados por uma ampla maioria dos deputados da constituinte. Ela tinha as vantagens e as desvantagens de um texto de compromisso, o que permitia a todas as partes da sociedade tunisiana de identificar-se mais ou menos com ele, porém alargava também a gama de interpretações possíveis. Observadores denunciavam precisamente, naquela altura, as contradições entre certos artigos, sobre as quais os islamistas poderiam ter aproveitado, uma vez regressados ao poder. Para voltar sobre esses anos chaves e sobre a adopção e o conteudo da Constituição de 2014: Desde a Primavera Árabe, como anda a democracia tunisiana? (1/3) A Revolução de Jasmim e as suas promessas (2010-2014). Finalmente, não é tanto sobre os aspetos em relação à religião que a ameaça surgirá, em 2021, mas sobre os ferramentas excepcionais à disposição, em caso de crise – em teoria –, do chefe do Estado, em particular o artigo 80 da Constituição, sobre o qual voltaremos. Para voltar sobre os anos que seguiram a proclamação da II° República e os desafios que impunham-e naquela altura: Desde a Primavera Árabe, como anda a democracia tunisiana? (2/3) A Segunda República tunisiana posta à prova (2015-2019)

O presidente Beji Caid Essebsi morreu em 25 de Julho de 2019, aos 92 anos. O seu falecimento acentuou a crise que conhece, já há certo tempo, Nidaa Tounes, abalada por dissensões internas, e sobretudo, perturba o calendário eleitoral, adiantando a eleição presidencial de dois meses, apenas o que é preciso para que as legislativas já não a precedam. O primeiro torno tem lugar em 15 de Setembro, e duas personalidades recentemente entradas na política qualificam-se então para o segundo torno: um jurista e acadêmico especialista do direito constitucional, Kais Saied, com 18,40% dos votos, e o homem de negávios Nabil Kaoui, com 15,48%. Conseguiram superar Abdelfattah Mourou (12,88%), o candidato de Ennahda, e Abdelkrim Zbidi (10,73%), um independente, ex-ministro e médico de profissão, apoiado em particular por Nidaa Tounes. A primeira coisa que podemos constatar com esse primeiro torno, é antes de nada uma dispersão do voto: nenhum candidato ultrapassou os 20%, e sete estão acima de 5%. Para comparar: em 2014, Essebsi e Marzouki obteiveram respetivamente 39,46% e 33,43% dos votos expressos, ou seja, mais dos dois terços. Segunda lição da eleição, a queda do nível da participação, a qual passou em cinco anos de 62,91% para 48,98% dos eleitores registrados. Finalmente, terceira lição, os dois partidos que dominaram o espectro político durante este primeiro quinquênio da IInda República, Nidaa Tounes e Ennahda, são excluidos do segundo torno, ao benefício de duas personalidades recentemente chegadas na vida política. Este balanço traduz globalmente uma grande desilusão dos eleitores que mobilizaram-se fortemente cinco anos mais cedo. No segundo torno em 13 de Outubro, Kais Saied é eleito com uma ampla maioria (72,71%), pois ele aproveita do apoio que lhe traz a maioria dos partidos eliminados no primeiro torno, e da dimensão divisiva e polêmica da personalidade de Nabil Karoui – indiciado em Julho de 2019 por branqueamento de capitais, e mantido em detenção entre o 23 de Agosto e o 9 de Setembro de 2019. Com 61 anos de idade, Kais Saied fez campanha – a baixa custo – com base uma visão que combinou conservatismo moral e religioso, soberania, postura anticorrupção, denúncia das desigualdades regionais e crítica da prática do poder legislativo.

Enquanto isso, em 6 de Outubro de 2019, as eleições legislativas foram organizadas, e elas consagram uma vitória cheia de contradições para Ennahda. De fato, se o partido islamista chega em primeiro lugar, com 19,63% dos votos, contra 14,55% para Qalb Tounes, a formação criada no mesmo ano por Nabil Karoui, todos os elementos reveladores de uma crise de confiança na presidencial estão igualmente presentes nas legislativas: queda da taxa de participação, a qual baixou de 68,36% para 41,70% em cinco anos; cinco partidos ultrapassaram os 5% dos votos expressos, porém nenhum os 20%; finalmente, o próprio movimento Ennahda, embora mantém uma base de eleitores leais, não consegue frear o seu contínuo declínio, já que em 2011 e em 2014, obteve sucessivamente 37,04% e 27,79% dos votos. Ou seja, uma queda de mais ou menos 8-10 pontos a cada eleição. Deve-se notar no entanto que o partido, ao favor deste ano de eleição, enraizou-se profundamente e definitivamente na vida política e democrática tunisiana. Não deixa de ser o primeiro partido em termos de votos recebidos e de peso no Parlamento. deu um passo além ao apresentar oficialmente um candidato próprio, membro do partido, à presidencial, embora foi sem grande sucesso. Por fim, a sua « eminência cinzenta », Rached Ghannouchi, assume finalmente o seu papel político ao sair das sombras, ao investir a arena, e aliás, ele torna-se presidente da Assembleia dos Representantes do Povo, em 13 de Novembro de 2019 – ocupará esta carga até a crise de 2021.

Resultado das eleições legislativas do 6 de Outubro de 2019. A participação colapsou em cinco anos, de 68,36% em 2014 para 41,70% dos inscritos em 2019. Contudo, essa queda pode ser relativizada (embora ela é real), pois, após uma forte queda entre 2011 e 2014 (passou então de 8 290 000 para 5 236 000) o número de eleitores inscritos subiu, em 2019, para 7 065 885. No final, o número de votantes não deixou de baixar continuamente, passando de 4 309 000 em 2011 para 3 579 000 em 2014, e para 2 946 628 em 2019. Nota-se também o resultado de Nidaa Tounes, o qual, dirigido pelo filho do presidente Caid Essebsi, o pouco amado Hafedh, recolheu apenas 1,51% dos votos, ou seja, 3 deputados (contre 37,56% e 83 deputados em 2014).

Resultado das eleições legislativas do 6 de Outubro de 2019. A participação colapsou em cinco anos, de 68,36% em 2014 para 41,70% dos inscritos em 2019. Contudo, essa queda pode ser relativizada (embora ela é real), pois, após uma forte queda entre 2011 e 2014 (passou então de 8 290 000 para 5 236 000) o número de eleitores inscritos subiu, em 2019, para 7 065 885. No final, o número de votantes não deixou de baixar continuamente, passando de 4 309 000 em 2011 para 3 579 000 em 2014, e para 2 946 628 em 2019. Nota-se também o resultado de Nidaa Tounes, o qual, dirigido pelo filho do presidente Caid Essebsi, o pouco amado Hafedh, recolheu apenas 1,51% dos votos, ou seja, 3 deputados (contre 37,56% e 83 deputados em 2014).

É portanto neste contexto de crise política latente, marcado por um ressurgimento da mobilização eleitoral contra a figura contestada de Nabil Karoui na presidencial (a participação aumenta de 48,98% na primeira volta para 56,80% na segunda), que se abre o novo mandato. Tal como nos dois anteriores, o governo constituido então é fruto de uma coligação heterogénea que não tem verdadeiramente sentido, nem político, nem ideológico, pois integra membros de formações vencedores das eleições como de outras que as perderam. A novidade sendo que o chefe do governo, desta vez, nem é realmente escolhido pelo partido que saiu em primeiro lugar. De fato, Habib Jemli, membro de Ennahda, falha entre Novembro e Janeiro a formar um governo. É portanto o chefe do Estado que retoma a mão para designar o Primeiro ministro – o que prefigura as escolhas de Kais Saied a partir do Verão de 2021, a sua vontade de recuperar o controlo diante de um Parlamento fragmentado. Elyes Fakhfakh assume a liderança do governo em 27 de Fevereiro de 2020 porém, acusado de conflitos de interesses, e em plena crise de gestão do Covid-19 e das suas consequências económicas e sociais, ele é obrigado a demitir-se em Julho do mesmo ano; e Hichem Mechichi, também designado pelo chede do Estado num contexto de ausência de maioria clara na Assembleia, exercerá a função de Primeiro ministro entre o 2 de Setembro de 2020 e a crise do 25 de Julho de 2021. Quanto a Kais Saied, cujo mandato abriu-se em 23 de Outubro de 2019, ele conhece durante os meses que seguem as eleições uma popularidade crescente, sobretudo graças à sua imagem sóbria, até austera, de personalidade independente, afastada dos partidos, encarnando a probidade; a sua personalidade contrasta com a cacofonia que parece reinar no Parlamento.

A crise de 2021-2022: como a « salvador » da democracia tunisiana tornou-se o seu coveiro

Dez anos após a queda de Ben Ali e o fim da ditadura, a data do 25 de Julho de 2021 representa uma virada no período pós-revolução, um ponto de ruptura. De fato, o dia da Festa da República, no qual milhares de manifestantes reclamam a dissolução da Assembleia e uma mudança de regime, Kais Saied, com base a Lei Fundamental, monopolizou todos os poderes. Em nome do artigo 80 da Constituição, ele obtem os plenos poderes pelo estado de emergência, a suspensão da IInda legislatura da Assembleia dos representantes do povo – ele retira a imunidade dos seus membros, os seus salários como também qualquer outra vantagem. Ele demite o governo Mechichi com efeito imediato, anuncia a formação de um novo governo (o será responsável diante dele), como também a sua decisão de governar por decretos e de assumir a presidência da Procuradoria. Recuperou de facto os poderes legislativos e executivos. As reações de júbilo então observadas nas ruas de Túnis revelam o cansaço de muitas e muitos cidadãos diante do que podeíamos chamar um « regime dos partidos », misturando ineficacidade,, instabilidade governamental, escândalos judiciários, politicagem e acordos políticos opacos. Muitas vozes, da oposição política, de advogados, de magistrados, exprimem-se então para denunciar um « golpe de Estado » – uma qualificação partilhada por analistas políticos e juristas, em particular no que tem a ver com a suspensão do trabalho dos parlamentares. Os deputados são literalmente impedidos de entrar dentro do Parlamento. As medidas tomadas em 25 de Julho são prolongadas sine die em 24 de Agosto de 2021.

Em 22 de Setembro de 2021, evocando um « perigo iminente » que pesa sobre a nação, Kais Saied promulga uma série de decretos que fortalecem seu poder ao custo do governo e do Parlamento, ao qual ele se substitui de facto quando legifera por decretos. As decisões adoptadas então transferam, de fato, o poder que era ainda exercido pelo governo, para a presidência da República. Além disso, o chefe do Estado anuncia a dissolução do órgão provisório encarregado do controlo da constitucionalidade dos projetos de lei.

Ennahda, o qual domina a vida política por uma década e participou de uma maneira ou de uma outra (mesmo sob a presidência Essebsi) em todos os governos desde 2011, sofre particularmente com a imagem que os os partidos políticos agora têm na opinião pública. É sem dúvida por isso, ainda que Ennahda tinha chamado a votar para ele no segundo torno da presidencial, e que era fácil identificar proximidades idológicas entre Kais Saied e a formação islamista (em particular sobre os aspetos societais e religiosos), o chefe do Estado vai, na repressão que inicia-se, particularmente atacar este partido – havemos de voltar neste ponto no final deste artigo. Muitos deputados, não só membros de Ennahda, são detidos ou processados pela Justiça por várias razões, por exemplo no âmbito de « investigações da justiça militar ». Acaso ou não, no final de Setembro de 2021, uma centena de quadros sai do partido, denunciando as decisões do chefe histórico desta formação, Rached Ghannouchi, e a sua liderança, acentuando a crise que conhece então Ennahda. Em 30 de Março de 2022, uns 120 deputados reunem-se durante uma cessão virtual e « votam » o fim das medidas de excepção; no mesmo dia, Kais Saied dissolve o Parlamento, o que, contudo, a Constituição proibe quando o estado de excepção é aplicado. Desde 2023, várias dezenas de políticos são detidos e perseguidos, por motivos graves como a « violação da segurança do Estado », a « colaboração com potências estrangeiras », ou ainda a « intenção de modificar a natureza do regime ».

A viragem autoritária acaba igualmente afetando a Justiça, quando, em 6 de Fevereiro de 2022, o presidente dissolve o Conselho Superior da Magistratura (CSM), órgão independente encarregado de nomear os juizes e de assegurar o bom funcionamento da Justiça, o acusando de parcialidade ao serviço de interesses particulares. Nota-se então, embora ela não cria unanimidade, que esta decisão foi bem recebida por muitos, pois o CSM era considerado como ineficaz e em conivência com Ennahda, em particular por ter abrandado a investigação sobre o assassinato, em 2013, dos ativistas de esquerda Chokri Belaid e Mohamed Brahmi. (Em Março de 2024, onze anos após o seu assassinato, vinte e três pessoas foram condenadas por este crime, umas à prisão à vida. Por lembrança, em Fevereiro de 2014, as autoridades tunisianas já tinham anunciadas a morte – numa operação anti-terrorista – de Kamel Gadhgadhi, considerado como o principal autor do assassinato de Chokri Belaid.)

Uma semana mais tarde, em 13 de Fevereiro de 2022, Kais Saied promulga um decreto para substituir ao CSM um órgão provisório, composto por juizes que devem ser aprovados pelo Primeiro ministro e pelo chefe do Estado, o qual pode também os revocar ou pedir a sua mutação. Além disso, um outro decreto adoptado no mesmo dia permite-lhe demitir os magistrados e proibir a esses últimos de fazer greve. Da mesma forma, em 1 de Junho de 2022, Kais Saied destitui quase uns sessenta juizes, sobre o pretexto que eles fazem obstrução a investigações; embora o Tribunal Administrativo cancelou umas cinquenta desses despedimentos, o governo recusa-se a restabelecer os juizes nas suas funções. Entretanto, a Associação dos Magristrados Tunisianos denunciou as pressões do governo sobre a magistratura tunisiana após a detenção de ativistas políticos, de magistrados, de advogados, de sindicalistas, de jornalistas. Na mesma altura, na Primavera de 2022, são igualmente denunciados os métodos de censura, de pressão, dos quais são vótimas também jornalistas e mídias locais. Ponto culminante da repressão da imprensa, o decreto-lei promulgado em 13 de Dezembro de 2022, relativo à cibercriminalidade e à luta contra as falsas informações, prevê penas de prisão pesadas e dá ao governo amplos poderes de censura. Em 2023, a Tunísia caiu, no índice mundial de liberdade da imprensa de Repórteres Sem Fronteiras, ao 180° lugar, perdendo 48 lugares em apenas dois anos.

Enquanto o presidente Kais Saied fez da luta contra a corrupção a sua prioridade desde o 25 de Julho, os meios económicos preocupam-se ao longo dos meses da ausência de visibilidade política no longo prazo. Apreensões espetaculares são feitas – o número de perquisições aduaneiras explode durante o Verão de 2021 –, globalmente a estratégia do presidente, inclusive em matéria de corrupção, permanece incerta. Isso, num contexto pós-Covid que será, em 2022, fortemente agravado pela crise de abastecimento em trigo ligada à invasão da Ucrânia pela Rússia. A sua incapacidade a resolver os problemas económicos e sociais, tal como a distância entre os seus discursos populistas e a ausência de melhoria das condições de vida dos cidadãos, conduzem irremediavelmente ao declínio da popularidade de Kais Saied, e à subida das críticas contra ele, obrigando-o a reagir e a apresentar um roteiro. Em 22 de Setembro de 2021, o dia em que ele fortalece os seus poderes e prorroga o estado de excepção, ele anuncia a criação de um « órgão nacional consultativo para uma nova República », encarregada de redigir um projeto de Constituição. Em 13 de Dezembro, para prefigurar um calendário de fim de crise, ele confirmará no meio do ano de 2022 a organização de um referendo constitucional. Entretanto, em 29 de Setembro, ele pede a Najla Bouden, engenheira e acadêmica, de formar um novo governo. Ao prestar juramento em 11 de Outubro de 2021, ela torna-se a primeira mulher a ocupar a carga de Primeira ministra na história do mundo árabe.

Durante o mês de Junho, a nova Constituição é acabada por uma comissão conduzida por um jurista, Sadok Belaid, e apresentada ao presidente, com uma base clara: presidencialização do regime, contrariando a inspiração parlamentar que tinha caraterizada a década de 2011-2021; e regionalização, com grande novidade, a criação de assembleias regionais eligidas diretamente, dedicadas ao desenvolvimento económico local, e que enviarão representantes ao que passará a ser a Câmara Alta do Parlamento. No início de Julho, o conteudo do texto torna-se público, após ter sido mudado nos dias anteriores diretamente por Kais Saied num sentido que o próprio Salok Belaid julgará autoritário e perigoso para o Estado de direito – em 3 de Julho, ele fala, entre outras coisas por causa das referências ao islã acrescentadas por Kais Saied, « dos riscos e das deficiências consideráveis » da versão do texto submetida a referendo. Enfim, estamos bem longe do (longo) processo constituinte que caraterizou a redação da Constituição de 2014. Precisamente um ano após o golpe constitucional do presidente, em 25 de Julho de 2022, um referendo – uma « ferramenta da ditadura », dizem umas pessoas na oposição – é organizado, marcado por uma abstenção recorde de 69,5%, e o novo texto é adoptado por 94,60%. O referendo foi antecedido por uma consulta eletrónica – um método que questiona, num país onde uma ampla proporção da população nem utiliza Internet – relativa à natureza do regime político e ao método de votação das eleições legislativas.

No espectro político, as posturas foram muito diversas, certas formações (como o Movimento do Povo) chamando a votar em favor da Constituição desejada por Kais Saied, a maioria chamando mais a votar contra, e outras ainda (como Ennahda e o Partido Desturiano Livre) chamando a boicotar. Os representantes da sociedade civil e dos corpos intermediários são muitos a convidar a rejeitar o texto, pois o consideram como regressivo em termos de direitos e de liberdades públicas. Aliás, cerca de quarenta são também signatários da Coligação civil para a liberdade, a dignidade, a justiça social e a igualdade, criada em 18 de Julho de 2022 para « lutar contra o referendo e defender os princípios universais dos direitos humanos ». Todos os recursos contra o referendo são rejeitados pelo Tribunal administrativo, e os resultados definitivos são anunciados em 16 de Agosto de 2022. A Constituição entra em vigor nesta data..

A Praça do Governo, em Tunes.

A Praça do Governo, em Tunes.

O que diz a Constituição tunisiana de 2022?

Kais Saied dá à nova Constituição uma inspiração religiosa. Por lembrança, o texto de 2014 dava um lugar reduzido à religião muçulmana. O preâmbulo da Constituição começava por « Em nome de Deus », concluiu por « Em nome do povo », e baseava a Constituição nos « princípios dos direitos humanos universais de acordo com as especificidades culturais do povo tunisiano ». Os dois primeiros artigos, não modificáveis, definiam a Tunísia como uma República guiada pela « primazia do direito », um Estado « livre, independente, soberano »« com caráter civil » cuja religião é o islão, a língua o árabe e o regime a república. Pelo contrário, o texto de 2022 vai mais longe. No seu artigo 5, a Tunísia é descrita como membro da « nação islamica », e é dito: « Apenas o Estado deve trabalhar, num regime democrático, à realização das vocações do islão autêntico que consistem em preservar a vida, a honra, os bens, a religião e a liberdade. » Isso, é para a questão da relação à religião.

Já o dissemos, o texto de 2022 é caraterizado por um poder executivo forte, um regime presidencial e um Parlamento monocameral. O chefe do Estado designa o governo sem precisar um voto de confiança do Parlamento. A Assembleia dos Representantes do Povo é eligida por sufrágio universal, enquanto a Assembleia Nacional das Regiões e dos Distritos, equivalente a um senato, é eligida por sufrágio indireto pelos conselhos regionais. Vários artigos permitem ao presidente da República de dissolver a Câmara baixa, de governar por decreto e apropriar-se os plenos poderes sem limite de tempo e sem quadro imposto por instituições independantes. A estabilidade governamental depende apenas do presidente. O controlo do governo pelo Parlamento é limitado, anedótico. Para uma moção de censura ser adoptada, ela deve ser adoptada pelos dois terços dos membros das duas câmaras do Parlamento reunidas. Ou seja, a queda do governo revela-se quase impossível, e a ideia que o governo é responsável diante do Parlamento é uma total ilusão.

Os projetos de lei levados pelo presidente da República são examinados com prioridade sobre os textos legislativos propostos pelos deputados; os quais podem ser revocados (para isso, basta um décimo do corpo eleitoral mobilizar-se), e não podem levar uma proposta de lei se ela se traduz por mais despesas do que receitas... O objetivo global é claro: lutar com o « regime dos partidos », com a desordem parlamentar, enfim, criar, para retomar uma expressão usada na V° República francesa, um parlamentarismo racionalizado, com um conjunto de técnicas de direito constitucional e eleitoral com alvo « deixar o governo governar », de uma certa forma. Vê-se além da única Constituição, pois em 15 de Setembro de 2022, uma nova lei eleitoral foi publicada na Tunísia. Antes disso, a eleição, para um total de 217 assentos de deputados eleitos, era dita proporcional multinominal, ou seja, um escrutínio de lista com uma volta. Agora, a Assembleia dos Representantes do Povo é composta por apenas 161 assentos (uma redução do número de deputados bastante típica de uma abordagem anti-parlamentar), consagrados por cinco anos num escrutínio maioritário uninominal, com duas voltas, organizado em tantas circonscrições. O vencedor é aquela ou aquele que recebeu uma maioria absoluta de votos no primeiro torno, ou, se ninguém venceu no primeiro torno, aquela ou aquele que receveu mais votos no segundo torno... ou seja, um modo de eleição parecido com aquele visto em França, no Reino-Unido e nos Estados-Unidos, e que favorece a constituição de uma maioria absoluta no Parlamento, deixando pouco lugar para os pequenos partisdos.

Do lado do terceiro poder, o controlo do executivo é considerável: na nova Constituição tunisiana, já não se fala mais de poder, mas sim de função judiciária. O Tribunal Constitucional tunisiano tem os seus membros integralmente nomeados pelo chefe do Estado.

Golpe de misericórdia dado ao « regime dos partidos »: em 29 de Setembro de 2022, a Instância Superiora Independante para as Eleições (ISIE) anuncia que os partidos já não têm autorização de fazer campanha nas eleições legislativas, e que os candidatos devem conduzir a sua campanha a título individual; ela acrescenta que é proibido aos candidatos indicar no seu dossier de candidatura o partido que eles representam. Independentamente do que podemos pensar de um regime que poropõe uma configuração na qual o Parlamento é todo-poderoso diante do governo, vemos bem o oportunismo escondido por trás desta orientação demagógica, anti-partidos políticos. De fato, Kais Saied procura sobretudo evitar a reconstituição de uma oposição claramente identificável, com um partido ou uns partidos em particular, e que poderia constituir uma frente contre o seu poder ou a sua política. Além disso, os partidos políticos não podem ser reduzidos a ferramentas de conquista do poder nas mãos de uns políticos ambiciosos. Na história da democracia, eles são também corpos intermediários, com um papel político e social importante, encarregados de reunir e organizar os indivíduos para defender opiniões, ideologias, ideias, e na medida do possível puxar para a vitória dessas ao poder.

O próprio processo de redação da Constituição da III° República questiona: uma assembleia constituinte foi eleita em 2011, para redigir um projeto de Constituição cuja aplicação foi finalmente curta, oito anos; a redação da nova Lei Fundamental fez-se fora de qualquer quadro eleitoral renovado, num contexto legal, jurídico, amplamente contestável, e, embora foi depois « legitimada » por um referendo que deu um importante « sim » em favor do texto submetido aos eleitores, a Constituição sofre críticas pesadas no longo prazo. O colapso da taxa de participação acentuou, aliás, o sentimento de uma ilegitimidade da ação do presidente Kais Saied, como se esta só tinha-se tornado possível pela resignação dos milhões de eleitores tunisianos que viraram as costas às urnas.

As eleições legislativas convocadas depois pelo chefe do Estado ainda são ilustrativas desta deserção do eleitorado tunisiano. De fato, com apenas mais de 11% de participação em cada um dos dois tornos das legislativas, em 17 de Dezembro de 2022 e em 29 de Janeiro de 2023, atingimos recordos nunca vistas na Tunísia, mesmo na época da ditadura. Finalente, o número de votantes, que era de 4,3 milhões em 2011, de quase 3,6 milhões em 2014, e de mais de 2,9 milhões em 2019, colapsou com 1 025 418 em Dezembro de 2022, na primeira volta das legislativas, e isso apesar dos esforços do poder para inscrever as cidadãs e os cidadãos nas listas eleitorais durante o Outono de 2022 – o número de inscritos ultrapassa, nesta eleição, o número de 9 milhões, bem longe dos 5 milhões de 2014 e dos 7 milhões de 2019. Em 13 de Março, é uma Assembleia dos Representantes fragmentada, espartilhada, não realmente representativa, que entra em função; nesta ocasião, o chefe do Estado sugere aos deputados de não criar grupos parlamentares, enquanto a Constituição proibe apenas de mudar de grupo durante o mandato.

Tabarka, na costa Norte.
Tabarka, na costa Norte.
Tabarka, na costa Norte.
Tabarka, na costa Norte.
Tabarka, na costa Norte.

Tabarka, na costa Norte.

Desde 2022, há uma saída?

Apesar das suas manobras constitucionais e eleitorais para evitar o surgimento de uma oposição política séria, pouco provável que o rais tunisiano permanece em capacidade de perpetuar o seu poder além do seu mandato atual. De fato, a situação tunisiana é bastante catastrófica. Único estrondo do chefe do Estado nos últimos meses, o rejeito do projeto de empresto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI); ele denunciou as condições propostas, as qualificando de « ditames estrangeiros », em particular as impondo um desmantelamento das subvenções aos produtos para necessicades básicas. Embora esse rejeito, simbolicamente muito forte, pode ter confortado a dimensão soberanista da sua postura, que ele já pretendia ter defendido durante a sua eleição de 2019, não ajuda, contudo, o governo tunisiano, o qual enfrenta grandes dificuldades financeiras na gestão do país.

Em Junho de 2023, a União Europeia, com a visita da presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen, acompanhada da presidente do Conselho italiano e do Primeiro ministro neerlandês, anunciou um apoio muito importante ao país, principalmente sob a pressão de uma Itália muito preocupada pelo aumento dos migrantes e refugiados chegando da Tunísia – mais de 26 500, nos cinco primeiro meses de 2023, ou seja, sete vezes mais do que em 2022. Uma « parceria global » incluindo várias temáticas (economia, energia, migração, formação...) foi então lançada. O objetivo dos Europeus: por Kais Saied em confiança para ele aceitar o projeto de empresto do FMI, o qual tem a ver com um valor de 1,9 bilhão de dólares. As negociações ainda estão em curso desde então, conduzidas por uma figura política não partidária, antigo jurista no Banco Central tunisiano, Ahmed Hachani, desde a sua tomada de posse na carga de Primeiro ministro em 1 de Agosto de 2023.

Os desafios não deixam de ser consideráveis na Tunísia atual. Desde o início do mandato de Kais Saied, até agravarem-se, sob a conjunção da crise do Covid-19 em 2020-2021, da guerra na Ucrânia em 2022, e da crise política, latente há anos e tornada óbvia desde as eleições gerais de 2019 e a instabilidade governamental que seguiu. E o atentado do 10 de Maio de 2023, no qual um antigo guardo de um centro naval assassinou cinco pessoas perto da sinagoga da Ghriba, na ilha de Djerba, vei nos lembrar que o risco securitário ainda permanece.

Num tempo de turbulências, o presidente Kais Saied lançou-se numa dinâmica repressiva e demagógica. O exemplo o mais dramático disso é o tratamento da questão migratória pelo chefe do Estado há vários meses. Num comunicado publicado em 21 de Fevereiro de 2023, ele afirmou que a imigração era um « plano criminal para mudar a composição da paisagem demográfica na Tunísia ». Durante um conselho de segurança nacional convocado sobre esse assunto, ele evocou « hordas de migrantes clandestinos » cuja presença na Tunísia seria fonte de « violência, crimes e atos inaceitáveis ». Até então disfarçado em general Charles de Gaulle (na sua visão soberanista e o seu gosto pela concentração dos poderes nas mãos do presidente da República), Kais Saied muda finalmente de roupa para vestir-se em Éric Zemmour tunisiano (em referência ao líder de extrema-direita francesa, adepto de uma teoria de uma grande substituição da população francesa pelos imigrantes subsaarianos e norte-africanos). Aliás, Éric Zemmour também saudou, num tweet publicado o dia a seguir, o fato que « os próprios paises do Magrebe começam a soar o alarme diante da onda migratória ». Um clima racista e de ódio que encontra seguidores, seja nas redes sociais (com o surgimento do muito recente Partido nacionalista tunisiano), ou ainda pela voz de certos deputados. Esta orientação nojenta não se limita a elementos retóricos pois, em 16 de Fevereiro de 2023, várias associações tunisianas de defesa dos direitos humanos denunciaram a detenção, em apenas uma semana, de trezentos migrantes. « Eles foram detidos após um controlo de identidade "à cara" ou mesmo após a sua presença nos tribunais para apoiar os seus próximos », sublinhava o comunicado. Ainda no início do Verão de 2023, mídias recolheram testemunhos que atestam que dezenas de migrantes presentes na cidade portuária de Sfax foram conduzidos pelas forças de segurança tunisianas à fronteira da Líbia, e expulsos em direção ao deserto. Como o explicou o jornalista Frédéric Bodin num artigo para o diário francês Le Monde publicado em 7 de Julho de 2023, o ódio anti-migrantes exprimida em Sfax « ilustra a armadilha fechando-se nos candidatos ao exílio originários de paises da África [subsaariana], presos entre o bloqueio da 'fortaleza Europa" e o enrijecimento racista das sociedades do Magrebe. » (Por lembrança, a Tunísia contaria entre 30 e 50 000 migrantes subsaarianos, segundo as ONG locais, uma estatística a pôr em perspetiva com os 12,3 milhões de habitantes do país.)

No início de 2024 e desde o Outono de 2023, notou-se uma queda das partidas desde a Tunísia, as quais foram, pelo contrário, em aumento do lado libiano. Isso explica-se por uma vigilância aumentada das autoridades tunisianas, o que ilustra os primeiros impactos do pré-acordo de parceria global UE-Tunísia. Sem surpresa, as rotas da migração nunca param, apenas são desviadas em áreas mais frágeis e menos vigiadas.

Desde o início de 2023, a situação democrática ainda se deteriorou, quebrando as últimas esperanças de uma « volta ao normal » rápida, uma vez a nova Constituição adoptada e o Parlamento eleito entrado em função. Mais do que nunca, a chama que a Tunísia tinha mantida acesa, na sequência das grandes repressões que caraterizaram os movimentos das Primaveras Árabes (os de 2011, como também os na Argélia e no Sudão em 2019), vacila e parece destinada a apagar-se. Num contexto de forte crise económica e social, as resistências são raras e laboriosas. Em 4 de Março de 2023 por exemplo, milhares de pessoas manifestaram, à convocação do poderoso sindicato UGTT (co-ganhador do Prêmio Nobel da Paz em 2015), contra a deriva autoritária do presidente da República e ao grito de palavras como « Liberdade, liberdade, abaixo o Estado policial », « Chega o empobrecimento », ou ainda para defender os direitos dos migrantes. Cena reveladora do novo clima político: com excepção as mídias de Estado, nenhum jornalista teve a possibilidade de entrar dentro do novo Parlamento em 13 de Março, para assistir à sessão inaugural – é a primeira vez desde 2011. A oposição teve o mérito, neste período perturbado, de ter procurado organizar-se e ganhar em visibilidade para falar de uma só voz. Em 31 de Maio de 2022, várias formações políticas: Ennahda, Al-Amal, Hizb el-Harak, Coligação da Dignidade, Qalb Tounes, mas também sete coletivos e movimentos da sociedade civil anti-golpe, fundaram a Frente de Salvação Nacional (FSN), presidida por Ahmed Néjib Chebbi, o qual vem, aliás, de um movimento pró-democracia. A coligação afirmou oficialmente não reconhecer o novo Parlamento « resultante da Constituição de um golpe de Estado [...] e de eleições boicotadas por uma esmagadora maioria ».

Diante dos sindicatos e da rua, diante da imprensa e da sociedade civil, diante da oposição política, o chefe do Estado mantem a direção, custe o que custar. Isto, apesar do insucesso da sua governação, e apesar da reprovação que simbolizou, em 2022-2023, a taxa de participação nas diferentes eleições para as quais ele convocou as e os eleitores. A repressão ainda acentuou-se depois. Em Fevereiro de 2023, várias personalidades políticas, em particular membros da Frente de Salvação Nacional, e um responsável sindical que tinha chamada a uma greve, foram detidos pela polícia. Desde então, cerca de vinte oponentes, sob o pretexto que eles tiveram trocado com representantes ocidentais, são processados por « atentado à segurança do Estado » (portanto eles incorrem a pena de morte, apesar da dimensão infundada das acusações), o que equivale a criminalizar de fato os contatos com os diplomatas estrangeiros. Finalmente, em 18 de Abril, um dia após a detenção do próprio Rached Ghannouchi, as autoridades decidiram fechar a sede da FSN em Túnis.

Em paralele, a repressão continua particularmente contra Ennahda. Em 5 de Setembro de 2023, Mondher Ounissi, presidente por interim do partido, e Abdelkrim Harouni, presidente do conselho da chura, ou seja, os dois mais altos dirigentes da formação islamista, foram detidos. A estratégia de repressão contra Ennahda é diferente daquele observada no passado, na ditadura, pois ela ataca a direção, não a base. O objetivo não é eradicar Ennahda, mas o domesticar. Uma estratégia que aproveita as crises internas enfrentadas no próprio partido. Desde então, Kais Saied insistiu sobre o seu objetivo de « purificar a administração » dos islamistas que a infiltraram, diz ele, desde 2011. Ex-ministros foram assim entrevistados e tiveram que justificaram nomeações dentro da administração durante os seus mandatos respetivos. No início de 2024, o chefe do partido islamista Rached Ghannouchi, detido desde Abril de 2023 por ter mencionado um risco de « guerra civil », e acusado de financiamento estrangeiro ilicito, viu a sua condenação (de quinze meses) aumentada por três anos – após ter chamado os policiais de « tiranos ». O partido Ennahda também foi condenado, na mesma altura, a uma multa de mais de um milhão de euros. Pois a legislação proibe qualquer financiamento estrangeiro e estabelece regras estritas relativas às despesas de campanhas eleitorais. (Em 2020, o Tribunal de Contas tinha apontado várias irregularidades observadas nas eleições de 2019, com base informações publicadas pelo Departamento da Justiça norte-americano, revelando que Ennahda tinha concluido mais de um milhão de euros de contratos entre 2014 e 2019 nos Estados-Unidos para a sua comunicação e obter apoios de dirigentes estrangeiros.) No âmbito das investigações contra os financiamentos ilegais de campanhas, o ex-candidato à eleição presidencial, Nabil Karoui, também teve que exilar-se em Agosto de 2021. A Justiça tunisiana o condenou por contumácia em Abril de 2023 a um ano de prisão e a uma multa pesada num caso de lobbying semelhante ao de Ennahda. Em 19 de Fevereiro de 2019, Rached Ghannouchi anunciou começar uma greve da fome, para protestar contra a detenção arbitrária e abusiva de oponentes políticos – por exemplo Jawhar Ben Mbarek e Issam Chebbi, responsáveis da Frente da Salvação Nacional, que tinham começado uma greve da fome oito dias antes do Ghannouchi.

Globalmente, permanecem dezenas de pessoas, políticos, antigos altos funcionários, ativistas, advogados, juizes ou jornalistas, ainda processadas em justiça, priobidas de viajar ou obrigadas a partir em exílio, acusados de corrupção, ataque contra a segurança do Estado, laços com potências estrangeiras, ou branqueamento de capitais, por exemplo. (Uma das últimas oponentes detidas – em Outubro de 2022 –, Abir Moussi, a presidente do Partido Desturiano Livre, uma formação que reune nostálgicos dos regimes de Bourguiba e de Ben Ali.) Com esses métodos, Kais Saied conseguiu enfraquecer todos os corpos intermediários, partidos políticos, sindicatos, organizações da sociedade civil e mídias. Em 6 de Outubro deste ano, a organização da eleição presidencial vei confirmar a queda da democracia tunisiana, e marcou um novo passo na consolidação de um poder pessoal que nem se preocupa mais das formas. O antigo professor de direito constitucional dispôs da Constituição e das leis segundo os seus caprichos, o que vei ilustrar a alteração por último minuto da lei eleitoral, a qual alteração despojou a justiça administrativa, frágil ponto de resistência, das suas competências em termos de contencioso ligado ao voto. Além disso, Kais Saied conseguiu impor a invalidação de várias candidaturas de oposição, dando à sua reeleição – com 90,69% dos votos, mas apenas 28,80% de participação – um ar de farsa, pois o presidente em campanha só enfrentou dois candidatos pouco conhecidos (um deles tendo sido condenado a doze anos de prisão por falsificação de patrocínios). Toda a sequência política consagrou portanto o fortalecimento da repressão, e a manipulação das intituições judiciárias e eleitorais ao serviço do chefe du Estado. Quase 170 ativistas da oposição ou cidadões críticos permanecem detidos, segundo Human Rights Watch, as mídias são silenciados e as associações atadas. Adepto de teorias conspiracionistas, o chefe do Estado justifica essa escalada repressiva pela luta contra conspirações urdidas no estrangeiro.

As Tunisianas e os Tunisianos ainda têm que suportar a governância deste presidente, incapaz de garantir os direitos fundamentais do seu povo, a estabilidade social e o desenvolvimento do país. Mesmo no contexto da campanha eleitoral, a União Europeia não alimentou nenhuma pressão verdadeira, pois ela satisfaz-se da colaboração com Kais Saied na contenção dos fluxos migratórios em direção da Itália. A presidente do Conselho italiano, Giorgia Meloni, até a apresenta como um modêlo de externalização dos controlos às fronteiras da UE. Acrescenta-se o receio que qualquer ofensa feita a Kais Saied o leva a aprofundir as suas relações com a Rússia, a China e o Irão. Diante do silêncio da Europa, os democratas tunisianos só podem apenas confiar em si mesmos.

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