A indignação « virtual », fator de imobilismo no real?
Em Junho de 2019, uma fotografia publicada no quotidiano mexicano La Jornada conheceu uma fama impressionante. A imagem, imortalisada pela jornalista mexicana Julia Le Duc, mostra dois corpos, Oscar Alberto Martinez Ramirez e sua filha de menos de dois anos de idade, Valeria, de barriga deitados na água entre os juncos, afogados. Vinham de El Salvador, e tentaram imigrar ilegalmente pelo Rio Grande, o rio que separa os Estados Unidos do México. Uma fotografia choquante que, claro, lembrou aos Europeus aquela do pequeno Aylan, Sírio de três anos cujo corpo tinha sido fotografiado, morto, na costa da Turquia em Setembro de 2015. E como como com o Aylan, a indignação exprimiu-se ao nível mundial, alegremente, em particular nas redes sociais virtuais. Muitas pessoas que nunca tinham atuado em favor desta causa, e que provavelmente nunca mais o farão, descobriram-se naquele momento uma consciência militante e, corajosamente, « partilharam » ou deixaram um « like » em tal frase-choque ou tal imagem em solidariedade á causa da imigração e do acolhimento. Um combate ainda mais simbólico, pois o presidente norte-americano Donald Trump, espantalho encarnando o « mal » estado-unidense (imperialista e capitalista), estava então desenvolvendo uma política migratória muito pouco acolhedora.
Este exemplo é o último dos numerosos casos de movimentos de emoção efêmeros que mexeram as redes sociais – o último sendo, mais recentemente ainda, a indignação internacional sobre os incêndios na Amazônia. Como os outros, este caso obriga-nos a nos questionar sobre este fenômeno que vamos chamar indignação virtual, e que permite a certas pessoas de erigir-se em porta-vozes de causas, às vezes próximas, às vezes longes, e sobre as quais eles não têm – voluntariamente ou pela força das coisas – nenhum impacto na vida real.
Ainda andam os Facebook, Instagram ou outros Twitter, nos quais uns e outros exprimam-se atrás das telas. Os fenômenos de indignação coletiva parecem às vezes um pouco ridículo, por efeito do mimetismo nos comportamentos. Há ai um duplo-problema. Primeiramente, as vagas de emoção são raramente seguidas de ações concretas para ser coerente com os valores mostradas. E em segundo lugar, porque os assuntos que provoquem um zumbido nunca o fazem muito tempo. No nossa sociedade-Kleenex onde o zapping é rei, passamos de uma atualidade à outra, de um evento ao outro, de uma moda à outra. Sucederam-se nos últimos anos e desaparecerem das nossas telas de televisão, de computador ou de celular, muitas atualidades que jà não são – pois o fervor da indignação ficou sem fôlego. No outono de 2017, tivemos direto a uma vaga de emoção – certamente bem legitima – sobre o caso, brutal e choquante, da redução em escravidão e da venda de migrantes de África subsaariana em Líbia. Este exemplo é emblemático. Todo o mundo parecia descobrir o horror da escravidão na basa um vídeo gravado neste país cuja situação política e militar deve muito aos Ocidentais. As pessoas indignaram-se publicamente, no seguimento dos mídias mainstream. O horror era visível, sim. Mas esta situação não é nova. Seres humanos são vendidos, já há muito tempo, sobretudo mulheres aliás, e é uma realidade que não data desta espontaneidade dos utilizadores de Internet.
A crítica de estes efeitos de moda é complexa, pois a indignação é justificada. Ninguém pode pensar que exprimir a sua oposição à escravidão seja por princípio um problema. É o carácter pontual e demonstrativo que está aqui em questão. Há algo de muito (demais) confortável nesta postura que consista em limitar-se numa partilha de foto de perfil com uma bandeira « Não à escravidão em Líbia ». Primeiramente porque esta ação não implica nenhum compromisso real, nenhuma minuto consagrado, nenhum risco tomado, nenhum acto militante, nenhum sacrifício para aquele ou aquela que a faz. É duma grande inutilidade, pois não afecta duma qualquer maneira nem os escravistas, nem os escravos. Em resumo, a solidariedade exprimida... é exprimida para os seus contactos nas redes sociais. Além disso,os casos de escravidão ou de exploração de seres humanos são universais e impõem então a questão da nossa ação para lutar contra este fenômeno, não só atrás das nossas telas, a milhares quilômetros duma Líbia onde, como cidadãos lambda, não temos nenhum impacto, mas no real. Mas quem se preocupa das prostituas nigerianas ou moldavas que cruzamos nas nossas ruas em Itália, em Portugal, em Espanha ou em França, vítimas da exploração e dos tráfegos? Nenhum vídeo cria uma moda emocional à cerca das suas condições de trabalho. A escravidão está em baixa das nossas janelas tanto como nas nossas telas, mas é mais confortável de indignar-se por um clique.
Os países de África subsaariana, onde numerosas vozes exprimiram-se contra a escravidão em Líbia, não fazem excepção: em Estados como a Mauritânia, onde a prática da escravidão (doméstico ou agrícola) e suas conseqüências perduram, ou como a Gâmbia, onde o turismo pedófilo constitua uma praga, o que fazem os utilizadores de Internet que fazem « posts » ou « tweets » os seus sentimentos de revolta? Ninguém pode ser envolvido em todas lutas, mas se uma causa nos preocupa e queremos lutar por ela, é simples demais de limitar-se a seguir um efeito de moda para satisfazer sua boa consciência.
Acrescentamos que a boa consciência não está sempre onde o pensamos. Lembramos do caso de Aylan, esta criança kurda de três anos, falecido afogado em 2 de Setembro de 2015, e cuja a foto pegada numa praia turca tinha dado volta ao mundo. Querendo denunciar uma sociedade que virou insensível ao destino de milhares de refugiados, os utilizadores de Internet que partilharam esta foto-choque obedeceram ao diktat duma sociedade dominada pela imagem. E à final, esta moda passou, como todas outras. Mas talvez o pai de Aylan, que sobreviveu à viajem terrível no Mediterrâneo, não queria ver a foto do cadáver do seu filho, ainda mais em sociedades do sensacional onde refugiados como ele são desconsiderados; ao mínimo, a questão do direito à imagem, do respeito ao falecido, é legítima. E pode ser formulado também no caso de Oscar e da sua filha Valeria, mortos no Rio Grande, à fronteira norte do México, pois a mãe (e esposa) talvez não queria que a imagem dos corpos fosse transmitida e compartilhada.
Claro, partilhar uma foto não impede de atuar – e felizmente, alguns fazem uma coisa e outra. Aliás, o peso das imagens não é sem importância, e já aconteceu certas fotos, como aquela de Kim Phuc, esta criança fugindo o napalm largado pelo Americanos na guerra do Vietnã, em 1972, ou ainda aquela do manifestante de Tiananmen, em Pekin, em 1989, tiveram efeito mobilizador ou até fizeram tomar consciência à comunidade internacional da gravidade da situação. Mas à hora do uso massivo de Internet, claro é possível « partilhar » e ao mesmo tempo agir, no entanto, temos que constatar que fazer um não encoraje outro. Partilhar a foto do pequeno Aylan no Facebook, colocar um tweet sobre ele, é como ir à igreja rezar para os pobres: alivia a consciência. No dia a dia, as pessoas que apoiam os refugiados e os migrantes contam-se com dificuldade, enquanto aqueles que partilham esta foto, numa forma constrangente de culto à criança falecido, contam-se por milhares. Em vez de propagar a foto de uma criança falecida, ou de condenar os efeitos da guerra em Síria, perguntam-se as pessoas o que fazem no dia a dia para ser menos insensível ao destino dos refugiados? Há crianças sírias e famílias que pedem esmola na rua ou no metro, nas grandes capitais deste mundo. Estes ainda são vivos, e não é tarde demais para manifestar a sua solidariedade com eles.
Isto vale para o cerco de Alep em 2016, ou ainda em 2018, o cerco da Ghuta oriental, uma periferia de Damas. As reações numerosas dos utilizadores de Internet sobre os ataques do exército de Bachar el-Assad, podem questionar. Primeiramente porque aquelas e aqueles que comentam sobre esses casos têm muitas vezes uma indignação selectiva. Os efeitos de moda provocam descargas emocionais sobre tal ou tal assunto, às vezes de uma forma estranha – em Síria, o que pensar de uns, numa revolta de um dia sobre um conflito de sete anos que fez mais de 350.000 mortes? –, mas os comportamentos conformam-se rapidamente a uma forma de zapping estranha no plano intelectual. Por exemplo, no contexto das Intifadas, a Palestina ainda estava muito presente nos telejornais, até o início dos anos 2000. O Sudão e a Somália também, por outras razões. Hoje, quem preocupa-se ainda destes assuntos? Sem falar dos conflitos esquecidos ou ignorados. Desde uns vinte anos, o conflito ao Leste do Congo-Kinshasa fez centenas de milhares de mortes, com práticas de guerra terríveis, com o uso massivo do estupro sobre os civis, num contexto de exploração das minas congoleses por empresas ocidentais (nós somos então diretamente envolvidos), mas todo a gente parece ser totalmente indiferente a isto.
Isto não tira nada ao horror conhecido pelos Sírios, há três anos em Alep, ano passado na Ghuta, mas é importante lembrar-se que não escolhemos a informação que recebemos. Ela nos é transmitida, muitas vezes em função de interesses particulares e por prismes diversos. O destaque de maneira excessiva dum drame ou duma luta deixa ainda mais choquante a sua desaparição, uns dias ou umas semanas depois, nos mídias e nas redes sociais.
Felizmente, certos casos vêm lembrar-nos que ainda há pessoas que são capazes de mobilisar-se ao mesmo tempo por Internet e na vida real. Acima, uma manifestação em favor da causa palestiniana em Paris, em Janeiro de 2018. Essa reunião não tinha nenhuma chance de ter resultados concretos, mas pelo menos aaui ultrapassamos o estado da indignação « virtual ». Na segunda fotografia, um protesto contra a política do governo Bolsonaro em São Paulo, em Março de 2020.
O imobilismo que provoca a indignação « virtual » não vem por acaso. Claro, muitas pessoas que abusam das redes sociais, mesmo sem Internet, não seriam ativistas duma causa ou duma outra no real. Mas poderíamos ter esperado que o desenvolvimento das redes, o acesso à uma informação massiva, os câmbios acelerassem a tomada de consciência dos cidadãos e favorecessem as lutas. Mas Internet serve de receptáculo às raivas, às indignações, com efeitos perversos. Pois exprimir suas emoções e suas ideias dá uma impressão de trabalho realizado que não convide a ultrapassar a indignação virtual. Isto corresponda ao constato feito em 1933 por uma equipa de psicólogos, e ainda em 2009 por um professor de Universidade de Nova York, Peter Gollwitzer. Demostraram que mais o numero de pessoas a conhecer um projeto é elevado, menos grandes são as possibilidades para que ele se realiza, porque os portadores de projeto « faladores » têm o sentimento de ter-se aproximados do objetivo pelo simples fato de ter falado; aqueles que não comunicam sobre o projeto têm o sentimento contrário.
« Quando uma pessoa fala dos seus objetivos com o seu círculo social, seu subconsciente os considera como uma realidade », explicava naquela altura Peter Gollwitzer. Falar dos seus projetos dá a ilusão de estar na ação. Uma confusão que explica-se por parte pelos retornos positivos dos próximos. Este fenômeno similar aplica-se provavelmente à publicação de fotos ou de posts nas redes sociais: uma indignação, a expressão duma raiva ou duma forma de solidariedade, dá uma sensação de dever meio-realizado... e recolha logo uma vaga de « likes » e de comentários que dá ao seu autor que os psicólogos chamam um senso prematuro de realização.
Claro, as pessoas são livres de acompanhar as indignações do momento, e ninguém contesta isso. Mas a hipótese é feita aqui que as indignações « virtuais » a repetição deixa as pessoas preguiçosas no real, ou os dá a ilusão de agir. Esta facilidade recente trazido por Internet cansa a nossa capacidade de revolta, e talvez de mobilização, no real. É preciso ficar atento a esta indignação « segundo o sentido do vento »: indignar-se só a medida das atualidades que recebemos ou que dominam as redes sociais, isto significa também não escolher realmente as suas indignações. São mídias de massa ou canais de informação sobre Internet que vão decidir que, amanhã, poderemos nos indignar sobre os escravos em Líbia, e não sobre outras formas de exploração humana na Ásia, no Golfo ou ainda na Europa. Esta realidade é extremamente perniciosa.
Desde a Primavera árabe, é muitas vezes considerado que Internet, as redes sociais e os blogues em particular, podem constituir instrumentos eficientes ao serviço das lutas políticas e sociais. Em realidade, são ferramentas de mobilização ao mesmo tempo que um lugar de expressão e de informação maravilhosa; mas se são usados como um fim, por cidadãos que seriam ativos « virtualmente », então eles tornam-se um fator de imobilismo e servem ao contrário o sistema. Os exemplos como aquele do assassinato de Marielle Franco no Rio de Janeiro em 2018, vêm mostrar que, de fato, indignações virtuais podem dar manifestações de protesto espontâneas – e foram importantes no Brasil, a pesar da mobilização cansou-se rapidamente. Mas globalmente, não é o que observamos.
As pessoas limitam-se a mostrar um militantismo formal, virtual, não são perigosos. Simplesmente, inúteis, porque uma vez o zumbido acabado, já não os ouvimos. No final desta reflexão, parece razoável dizer três coisas. Primeiro, o princípio duma expressão das solidariedades que mude em função da atualidade é, já o dissemos, pernicioso, porque significa que não as escolhemos realmente. Segundo, as redes sociais canalizam muita energia que teria mais o seu lugar no terreno. Terceiro, a solidariedade mostrada traz interrogações sobre a motivação real, pois uma vez os efeitos de moda acabados, a indignação desapareceu. É legítimo e sã de formular este tipo de questões. Uma plataforma em linha como O acendedor de lampiões não seria credível se não o fizesse, para ela mesmo, e para os seus autores. Pelo menos, interrogamo-nos sobre isto.